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“A figura do diretor-autor ainda domina o espaço crítico”

Reconhecido pesquisador do cinema brasileiro, Ismail Xavier analisa o novo momento do audiovisual nacional

TEXTO Luciana Veras

01 de Outubro de 2015

Ismail Xavier

Ismail Xavier

Foto Aline Arruda

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 178 | out 2015]

Ismail Xavier é autor de livros como
 O discurso cinematográfico: A opacidade e a transparência (Paz e Terra, 1977), Alegorias do subdesenvolvimento – Cinema novo, tropicalismo, cinema marginal (Brasiliense, 1993) e O olhar e a cena (CosacNaify, 2003), entre outros, e referência nos estudos do cinema brasileiro. Sua atuação no campo da pesquisa é reconhecida, inclusive, com o prêmio especial de preservação do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, dado pela Academia Brasileira de Cinema, e pela Ordem do Mérito Cultural, comenda do Ministério da Cultura. De formação multidisciplinar – graduação em Comunicação Social, mestrado e doutorado em Teoria Literária, todos pela Universidade de São Paulo, e pós-doutorado em Cinema Studies pela New York University, Xavier atua como professor-associado na Escola de Comunicações de Arte/USP, sendo figura de proa na análise fílmica na América do Sul. Sempre coerente e generoso ao apresentar suas formulações teóricas em congressos ou mediar debates em festivais, ele foi igualmente acolhedor ao receber as questões propostas pela Continente. Embora acredite que “o que há de mais vivo e com maior força de intervenção não chega ao reconhecimento tão nítido em festivais estrangeiros como já aconteceu no passado”, afirma categóricamente: “O cinema brasileiro tem uma longeva tradição de predomínio do filme de autor sobre o que seria um estilo de produtora”.

CONTINENTE Como percebe este momento do cinema nacional? Acredita que, de fato, e como alguns críticos rotulam, estamos diante de um “novíssimo cinema brasileiro”?
ISMAIL XAVIER O momento atual, como tem acontecido nos últimos 20 anos, desde a retomada, é de produção diversificada, com filmes com maior aporte de recursos pela Lei do Audiovisual e, quando comédias ou com algum outro ingrediente de maior atração de público, em coproduções que envolvem a Globo Filmes. Em termos estéticos, o panorama, antes já variado conforme o esquema de produção, inclui agora um novo esquema no dito “novíssimo cinema”, em que os cineastas ganham maior independência atuando de forma cooperativa e partilhando as funções na equipe, inclusive a direção, em filmes de baixíssimo orçamento e que partem desse princípio de tomar a minimização de recursos como alavanca para uma maior liberdade no método de trabalho e criação, o que gera uma estética inovadora. Um cinema jovem com essas características é o setor mais incisivo na afirmação de uma nova tendência dentro da produção brasileira.

CONTINENTE Quais seriam, então, as balizas desse “novíssimo cinema brasileiro”?
ISMAIL XAVIER Além do modo de produção citado, há as escolhas particulares de temas, estilos e formas de intervenção no espaço cultural, que dependem de cada grupo em questão. Não há a busca de uma unidade de estilo em sentido estrito, mas a procura da forma e do tema que se inserem na formação e percurso de cada cineasta, em distintas direções. Esta é uma tônica que, sendo um traço do cinema de maior invenção e risco realizado a partir da dita retomada (1994-95), ganhou maior impulso e radicalização, com forte teor de improviso no chamado novíssimo cinema.

CONTINENTE E quem seriam os cineastas e os respectivos filmes mais simbólicos dessa “nova onda”, por assim dizer?
ISMAIL XAVIER Há realizações de coletivos que assinam a produção, a direção e a montagem, como no caso de Estrada para Ythaca, de Guto Parente, Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (grupo Alumbramento/Ceará), ou filmes mais focados em um ou dois diretores, como Doce amianto, direção de Guto Parente e Uirá dos Reis, do mesmo grupo. No Rio de Janeiro, uma produção exemplar desse novíssimo cinema é Desassossego: Filme das maravilhas, coordenado por Felipe Bragança e Marina Meliande, filme em episódios dirigidos por Helvécio Marins Jr, Clarissa Campolina, Carolina Durão, Andrea Capella, Ivo Lopes Araújo, Marco Dutra, Juliana Rojas, Marina Meliande, Caetano Gotardo, Raphael Mesquita, Leonardo Levis, Gustavo Bragança, Felipe Bragança, Karim Aïnouz. Cada um dos diretores de episódios tem outros trabalhos, como é o caso de Alegria, de Felipe Bragança e Marina Meliande, no Rio;Trabalhar cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas, e de O que se move, de Caetano Gotardo, em São Paulo. Não podendo ser exaustivo nesta lembrança de experiências, como você disse, mais simbólicas, e sabendo inevitável esquecer aqui outros exemplos de igual valor simbólico dessa vertente, posso acrescentar a operação Sonia Silk, de Bruno Safadi e Ricardo Pretti, com que dialoga e homenageia os líderes da Produtora Bellair (1969-1970), Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, e tem como destaque a trilogia O uivo da gaitaO Rio nos pertence e O fim de uma era.

CONTINENTE Pode-se afirmar que a noção de autor ganha força neste contexto atual de produção do cinema brasileiro?
ISMAIL XAVIER O cinema brasileiro tem já uma longeva tradição, que inclui o período Embrafilme nos anos 1970 e 1960, de predomínio do filme de autor sobre o que seria um estilo de produtora. Claro que com nuances, conforme o esquema de produção, sendo mais radical tal predomínio autoral nos filmes de baixo orçamento. Falo no sentido de termos uma cinematografia não dominada pela figura do grande produtor (embora estes existam no Brasil, mas não com a estabilidade e política de produção de um efetivo esquema industrial). E a figura do diretor-autor continua dominando o espaço crítico, como acontece desde a “política dos autores” da revista Cahiers du cinéma nos anos 1950. Esse predomínio de que falo tem suas nuances, do ponto de vista do grau de autonomia do cineasta e do ponto de vista das posições assumidas, sendo característica a esse período mais recente a ausência de programas estéticos zelosos de uma unidade de estilo e a ausência de um projeto político como aconteceu em movimentos dos anos 1960-70.

CONTINENTE De que maneira o barateamento dos modos de produção e as novas tecnologias tendem a influenciar essa nova produção – tanto de imagens como de discurso?
ISMAIL XAVIER A questão fundamental é a liberdade, tanto no plano da relação com as fontes de recurso, quanto no sentido de uma não aceitação de demandas do mercado exibidor. A partir daí, o que vale é a escolha de cada cineasta, no plano estético e temático, escolha que ele vai conduzir procurando afastar as ditas interferências da lógica da mercadoria. O fato de predominar no Brasil um modelo de produção com base em lei de incentivo fiscal cria espaço para uma produção que não sente as pressões de retorno do investimento. E há ainda o novíssimo cinema que leva mais longe a ideia de afastar qualquer vínculo gerador de pressões sobre o processo de criação.

CONTINENTE Por fim, você considera que o Brasil de hoje, com suas contradições e entropias, é refletido e problematizado pela produção contemporânea?
ISMAIL XAVIER O setor em que essa conexão com o Brasil contemporâneo se faz mais nítida é a produção do documentário, cuja riqueza e variedade de estilos é muito ampla e cujos principais autores são bem-conhecidos. Além disso, digamos que, como tendência geral, isso tem acontecido no cinema de ficção nas últimas décadas de forma mais consistente – mas não exclusiva, pois há exemplos de filmes do Sudeste – no cinema pernambucano, que nos traz, no conjunto, uma percepção muito lúcida das novas experiências da urbanização selvagem e predatória, com as sobrevivências do passado – patriarcalismo mandonista, formas de dominação de classe e de gênero, ausência de cidadania –, enfim, o Brasil tratado por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e pelos sociólogos de esquerda dos anos 1950 e 1960, cujas pesquisas serviram de referência para o Cinema Novo e que agora continuam uma referência, não só na percepção das relações de poder no campo, mas também na cidade. Esta exibe sua aparência moderna e se insere num quadro temperado por uma maior mobilidade social, com migrações com outro padrão de motivações num país já consolidado como um espaço mercantil globalizado, porém não deixa de conviver com valores e formas de violência já tradicionais que imperam mesmo nas grandes cidades, seja no Recife, São Paulo ou Rio de Janeiro. O cinema pernambucano se compõe como uma constelação que conduz um debate que marca o diálogo entre filmes diferentes, uma vertente de que fazem parte filmes de autor, como nos casos de Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Karim Aïnouz (cearense que incluo aí pela efetiva interação dele com os outros cineastas citados). Eles atingiram significativa resposta da crítica e, como no caso de O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, também de público. A obra de Kleber se fez filme-chave na consagração da polaridade Casa-grande/senzala, retomada por Casa grande, de Fellipe Barbosa (RJ), e Que horas ela volta?, de Anna Muylaert (SP). 

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