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As novas formas de fazer cinema

Aquele que tem sido chamado de “novíssimo cinema brasileiro” opera em diferentes dinâmicas de produção e tem redefinido as relações do nosso audiovisual com o resto do mundo

TEXTO Luciana Veras

01 de Outubro de 2015

Ilustração Karina Freitas

"O ponto de partida para uma planificação cinematográfica brasileira seria ter em vista para um futuro bastante próximo a produção anual de 50 filmes, cifra que deverá alçar-se gradativamente a 100”, escreveu Paulo Emílio Salles Gomes (1916–1977), no Suplemento literário do Estado de S.Paulo, em texto publicado em 18 de março de 1960 – mais de meio século atrás, portanto. Tratava-se de uma quimera; nos parágrafos anteriores, Salles Gomes, até hoje tido como um dos maiores críticos e pensadores cinematográficos do Brasil, falava em explícita rebeldia: “A modalidade e o grau de estratificação que a conjuntura cinematográfica brasileira atingiu tornam ineficazes os ensaios tímidos de reformismo. O que a situação presente sugere e comporta é uma revolução”.

“A revolução é muito menos vanguardística do que à primeira vista parece”, prosseguia Salles Gomes, no artigo intitulado Uma revolução inocente. “Quando se torna possível, é porque já se encontra pronta dentro do corpo social, ao cabo de longa e complexa gestação. Sua eclosão tem a harmoniosa inelutabilidade do nascimento”, raciocinava. Os idos de outubro atestam que a utopia daquela previsão virou concretude: no mês que concentra dois eventos importantes do calendário consagrados à fruição cinematográfica no país, são expressivos os números da produção nacional no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Na sua 17ª edição, entre os dias 1º e 14, o Festival do Rio exibirá 19 curtas e 41 longas-metragens brasileiros. A 39ª Mostra Paulista, que começa dia 22 deste mês e se estende até 4 de novembro, abrirá espaço na sua programação para cerca de 50 longas nacionais. E, quando dezembro chegar, 2015 terá sido, de acordo com o Filme B, portal dedicado à compilação de dados sobre cinema no Brasil, o ano de estreia de 109 filmes com DNA nacional – “fitas”, como escrevia Salles Gomes, completamente rodadas e produzidas em solo tupiniquim ou coproduções com companhias estrangeiras. Até setembro, apenas uma delas, Loucas para casar, de Roberto Santucci, integrava o ranking dos 10 filmes de maior bilheteria neste ano.


Cena de O homem que não dormia (2011), de Edgard Navarro. Autor baiano filma agora sua despedida dos sets. Foto: Calil Neto/Divulgação

Também em setembro, Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, aumentou sua participação no circuito de exibição em 90%, crescendo das 91 salas da estreia, em 27/8, a 156 delas, três semanas depois. Que horas ela volta? Boi neon, do pernambucano Gabriel Mascaro, estiveram onipresentes nas notícias do mês passado justo por espelhar recorrências cada vez mais evidentes no cinema brasileiro: curva ascendente em audiência e o reconhecimento em festivais estrangeiros – Boi neon, descrito pelo diretor como “uma pesquisa sobre corpo, luz e a transformação da paisagem humana” a partir de um grupo de vaqueiros que transportam bois para vaquejadas, ganhou menção honrosa em Toronto e o prêmio especial da mostra Orizzonti, em Veneza. Ambos os filmes poderiam se encaixar no que alguns críticos, professores e pesquisadores denominaram “novíssimo cinema brasileiro”.

O “novíssimo cinema brasileiro” seria o pós-Retomada (cujo marco zero costuma ser atribuído a Carlota Joaquina – Princesa do Brasil, de Carla Camuratti, de 1995), o pós-Central do Brasil, de Walter Salles (1998) e também o pós-Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2002), outras obras que, de certa forma, redesenharam a relação do audiovisual nacional com o resto do mundo. Compreenderia os filmes realizados com mais liberdade estética, sem amarras estilísticas ou temáticas, com um olhar aguçado para problematizar questões contemporâneas e de relevante componente autoral – não importa se com a assinatura de um único cineasta ou de um coletivo. O rótulo, que empreende um jogo de palavras com o cinema novo de Glauber Rocha (1939–1981), Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos, aparece tanto como título de uma disciplina eletiva do curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco como no nome de uma mostra promovida pelo Cinema da USP Paulo Emílio (Cinusp).

FORA DO EIXO
“Vivemos um momento importante do audiovisual como um todo. De um lado, esforços significativos de consolidação industrial, tirando proveito da chamada ‘lei da TV fechada’, abrindo um caminho interessante, por exemplo, para a produção de ficção seriada de qualidade e alto nível técnico e estético (espero que num futuro os frutos do impacto dessa lei também consigam se ampliar para além do eixo Rio/SP). Por outro lado, vemos filmes circularem em festivais e salas menos comerciais, que mostram um arejamento estético e das formas de produção. Esses projetos vêm seguramente de fora do eixo tradicional; destaco Pernambuco, Ceará e Minas Gerais. Nesse sentido, sim, podemos falar de um novíssimo, mas o termo em si só existe na medida em que é útil para diagnosticar esse arejamento estético e de propostas e visões do cinema”, observa a doutora em Comunicação Mariana Baltar, professora da graduação em Cinema e Audiovisual e da pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq.

A pluralidade de propostas e visões aproxima filmes como Já visto jamais visto, o novo de Andrea Tonacci; o supracitado Boi neonJoaquim, que o diretor pernambucano Marcelo Gomes acabou de rodar em Minas Gerais; ou ainda O signo das tetas, do cineasta maranhense Frederico Machado, lançado em setembro na Indie – Mostra do Cinema Mundial, em Belo Horizonte. Não adianta, contudo, enfeixá-los; deles, pode-se dizer que procedem de uma lavra única e intransferível. “Quem é novíssimo são as pessoas. A classificação externa é sempre coisa de crítico. Qualquer categoria é um pouco de tudo e, como tudo no mundo de hoje, é retalhada. Mas com certeza há pessoas trabalhando a forma, redescobrindo, um pouco, a subjetividade do cinema”, vislumbra Tonacci, autor, entre outras, de Bang-bang (1971) e Serras da desordem(2006), obras que desafiam etiquetas.


Boi Neon, de Gabriel Mascaro, ganhou menção honrosa em Toronto e prêmio especial na Orizzonti, no Festival de Veneza. Foto: Desvia Filmes/Divulgação

“Com Já visto jamais visto, percebi que a ideia de autor é uma construção externa em cima do que acontece. As imagens foram feitas por mim, o que me deu a percepção de que se tratava de coisa maior do que eu, de um tempo e de um corpo maiores. Me senti mais como uma antena a captar os sinais que se juntam e fazem sentido”, elabora Tonacci, cujo filme parte de seu próprio acervo em película, resgatado da deterioração após décadas. “As pessoas têm dito que é um documentário, mas eu o considero uma pequena ficção”, complementa o diretor. A fronteira tênue, quase invisível ou inexistente, entre o que é o registro documental e o enredo ficcional também serve para balizar o “novíssimo cinema brasileiro”.

A filmografia do pernambucano Gabriel Mascaro, que abrange Um lugar ao sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010), A onda traz, o vento leva (2012) e Ventos de agosto (2014), traduz essa permeabilidade. “Meus trabalhos refletem parte do que eu sou e muitos outros que estão no entorno. Me interessa muito trabalhar com reapropriação do imaginário. Às vezes, preciso me expressar filmando, como em Boi neon; em outros, não, como em Doméstica, documentário em que entreguei a câmera para que adolescentes, filhos dos patrões, filmassem suas empregadas por uma semana e eu, em seguida, editasse as imagens. Ou ainda no trabalho mostrado na Bienal de São Paulo, chamado Não é sobre sapatos, que envolve supostamente vídeos filmados pelos policiais militares contra os manifestantes. São trabalhos com processos de partilha”, expõeMascaro à Continente.

Ele rechaça a importância da autoria: “A palavra ‘autor’ ganhou um escopo teórico na nouvelle vague e não exerce fascínio em mim. Mas acho que vivemos um momento muito especial no Brasil, no qual as gerações produtivas coexistem, fazendo trabalhos desafiadores e que não se encaixam nessa ‘gaveta’ geracional. Talvez este rótulo de um suposto ‘novíssimo cinema brasileiro’ tenha um estatuto de política afirmativa, e por isso legítimo, mas não me sinto confortável com qualquer rotulação de uma experiência inclassificável, orgânica, viva e mutante”.


O signo das tetas, longa do maranhense Frederico Machado, estreou em Tiradentes, em mostra que privilegia o "novíssimo cinema brasileiro". Foto: Lume Filmes/Divulgação

CANTO DO CISNE
A organicidade a que Gabriel Mascaro se refere encontra guarida e tradução na trajetória do baiano Edgard Navarro, do antológico média-metragem Superoutro (1989) e do premiado longa Eu me lembro (2005). Navarro está filmando na Bahia, com recursos obtidos via edital da Agência Nacional do Cinema/Ancine, Abaixo a gravidade, aquele que ele julga ser seu “canto do cisne”. “O filme é uma tentativa de tornar menor o sentido trágico da vida, seja a doença, a velhice ou a morte. O homem que não dormia, meu último filme, é bastante grave e trágico. Quero brincar com essa contradição de querer mandar descer a gravidade, que já põe tudo para baixo”, antecipa Navarro, um veterano que não se incomoda de ser chamado assim, ou mesmo de “Dom Quixote”.

Contudo, o cineasta baiano, embora se confesse “um quixotesco cineasta”, já não se vê com tanto fôlego. “Acho que Tonacci e eu pertencemos a uma mesma geração e fazemos um cinema bastante peculiar. Mas sinto que já não alcanço a tecnologia. Em Superoutro, eu mesmo manuseava a câmera em super-8, nem usava tripé. Na hora em que tinha uma ideia, ia lá e filmava. Hoje não domino nada e nem quero dominar. Não quero mais neurônios. Para minha consciência, creio que representei bem a passagem de bastão para essas novíssimas gerações. Não quero estar na corrida oficial do cinema brasileiro. Sempre haverá novos jovens, novos baianos”, comenta.

Para o cineasta carioca Eduardo Valente, desde 2011 no comando da assessoria de relações internacionais da Ancine, “sem dúvida existe, no novo cinema brasileiro, um retrato geracional, mas que não tem a ver com a idade”. “É uma geração de pessoas que passaram a operar de maneira importante mais ou menos no mesmo momento. Há algumas características específicas: a digitalização, os modos de produção, o estabelecimento de redes de trabalho, de trocas de informação e de influências. Existe, acima de tudo, uma geração com sentimento de pertencimento e de trabalho comum. E esse é um momento forte, para além do Brasil. Chamar esse círculo de ‘gueto’ é diminuir esse movimento natural. Um ‘gueto’ que vai a Rotterdam, a Locarno, à Quinzena dos Realizadores, de Cannes, e a Veneza? Difícil de chamar”, pondera.

Ele faz uma comparação com o Cinema Novo. “Nenhuma matéria sobre os filmes de Glauber ou de Ruy Guerra começavam falando sobre como cada diretor era diferente. Ora, os filmes são diferentes e o fato de o serem não impede de se falar nisso. As diferenças e individualidades não só aproximam, como criam contrastes, como sempre acontece em movimentos. Enxergo esse momento como um dos mais interessantes, porque permitiu o sentimento de fazer parte de alguma coisa, de ultrapassar a produção pessoal. Um dos aspectos mais interessantes é que esse ‘novíssimo cinema brasileiro’ não está localizado como Cinema Novo, no Rio, ou a nouvelle vague, em Paris. É espalhado pelo Brasil. Você percebe isso com muita força nos festivais, no clima dos debates”, reforça Valente.


Em seu primeiro filme, Os dias com ele, Maria Clara Escobar confrontou sua trajetória e a versão oficial da História do Brasil ao entrevistar seu pai. Foto: Divulgação

Um dos polos onde vicejam as discussões e onde se consolidou o conceito de “novíssimo cinema brasileiro” é a Mostra de Cinema de Tiradentes, que, em janeiro próximo, festejará a 19ª edição. “Quando lançamos o evento, estavam começando as leis de incentivo e havia poucos festivais dedicados exclusivamente ao cinema brasileiro. Nossa meta sempre foi ser um grande aliado dessa produção, bem como um reflexo das tendências, da estética e da linguagem. Era uma proposta ousada, que muitos disseram que não conseguiríamos sustentar”, recorda Raquel Hallak, uma das coordenadoras da mostra. “De 1998 para cá, Tiradentes se consolidou como plataforma de lançamento do cinema brasileiro independente, sempre atenta a essa nova geração e ao cinema de autor. O festival é o retrato da evidência do novíssimo cinema brasileiro e mantém o propósito de cavar espaço para esse cinema, que muitas vezes não chega ao circuito comercial”, defende.

Foi em Tiradentes, por exemplo, que os cineastas Maria Clara Escobar e Frederico Machado escolheram lançar seus projetos mais recentes. Em 2013, Os dias com ele – no qual a jovem diretora carioca rompe convenções e embaralha as esferas pública e privada, ao radiografar o próprio pai, o dramaturgo, professor e escritor Carlos Henrique Escobar, ex-militante contra a ditadura militar e hoje autoexilado em Portugal – foi escolhido o melhor filme da mostra pelos júris da crítica e dos jovens. Em 2015, Machado levou até lá seu O signo das tetas, a segunda parte da trilogia iniciada com O exercício do caos (2012), também uma investigação acerca da figura paterna – aqui, a partir da obra literária do poeta Nauro Machado. Em ambos os casos, são escolhas íntimas, pessoais, que se vertem para narrativas fílmicas muito além do convencional.

FILMES PESSOAIS
“O cinema brasileiro sempre foi muito mais geográfico do que temporal. Sempre se fez filmes com água, favela, sertão. Mas a questão interior, relacionada ao tempo e à existência, era relegada a segundo plano. O que percebo é que essa nova geração se preocupa muito com esse tempo, em filmes bastante pessoais. Acredito que mesmo esses temas caros, perigosos e difíceis, podem ser revelados com apuro para que não espantem o público. O equilíbrio entre arte e indústria tem que ser mais pensado pelos realizadores. Usei erradamente, em uma apresentação, a palavra ‘hermético’ para descrever meus filmes. Acho que seja justamente o contrário: há uma necessidade de complementação que será feita pelo público que assiste à minha obra. Ela é aberta a diversas possibilidades de interpretação e complemento”, relaciona Frederico Machado, produtor, diretor de filmes e da distribuidora Lume, do Cine Lume e da Escola Lume de Cinema em São Luís.


Joaquim, novo filme de Marcelo Gomes, em fase de montagem, examinará a figura de Tirantes antes da Inconfidência. Foto: Letícia Simões/Divulgação

Cerca de 3 mil quilômetros o separam de Maria Clara Escobar, que trabalha e mora em São Paulo. No entanto, o modus operandi é parecido: ela fez a fotografia, o som, o roteiro e a direção do seu filme; Frederico cumpre dezenas de funções no set. “Acho que o barateamento da tecnologia facilitou, e muito, a difusão desse tipo de cinema. Não teria feito meu filme em película, por exemplo. Com o digital, é mais fácil as pessoas poderem acessar e interpretar arquivos de película e assim reinterpretar narrativas. E significa, também, não gastar tanto dinheiro”, crê Maria Clara, cujo filme possui o selo de laboratórios de festivais como o deBerlim, o Bafici, de Buenos Aires, e o DocMontevideo. “Quando Os dias com ele ficou pronto, foi uma decisão política estrear em Tiradentes, que é um espaço que revela e valoriza esse tipo de cinema. Em um outro festival, sinto que talvez o filme ficasse jogado”, diz ela à Continente.

Se estivesse vivo, talvez Paulo Emílio Salles Gomes definisse a cineasta, e tantos outros, como um híbrido entre os “artesãos e autores” que tentou evidenciar na coluna de abril de 1961 doSuplemento literário do Estado de S.Paulo: “a obra do artesão tende a ser social, não no sentido de crítica revolucionária ou reivindicadora, mas como expressão de ideias coletivas já estruturadas. A autoral tem inclinação psicológica e sugere uma natureza humana conflitiva”. De fabrico artesanal, autoral, coletivo e individual, ou mesmo despido de quaisquer incursões de categorização, o fato é que o “novíssimo cinema brasileiro” espelha uma nação gigante, fértil, entrópica e contraditória. “Um Brasil no cotidiano dos sujeitos, nas experiências sensíveis e afetivas desses sujeitos nas telas com a cidade que os cerca, com as pessoas, com seu dia a dia, e isso tratado na dimensão mais estética e política possível”, situa a pesquisadora e professora da UFF Mariana Baltar.

O mesmo fio de raciocínio é seguido pelo cineasta pernambucano Marcelo Gomes, às voltas com a emersão pós-filmagem de Joaquim, um recorte sobre a vida do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. “As pessoas não apenas discutem a linguagem, como produzem reflexão sobre o momento político e social do país dentro dos seus filmes, a exemplo do próprio Os dias com ele e de Brasil S/A, de Marcelo Pedroso. Também aumentou a quantidade de escolas e o volume de reflexão. A discussão sobre cinema passa pela formação. Há um questionamento muito rico da forma e dos fatos dentro da sociedade. Quando você tem o que dizer, as tecnologias ajudam, em qualquer cinema, no velho, novo ou no novíssimo”, sintetiza Gomes. 

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