O recorte curatorial engendrado por Thyago Nogueira, editor da revista ZUM e coordenador de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Salles, transcende os encontros de Andujar com os brasileiros. Abarca as quedas d’água do Rio Jari e outras exuberantes paisagens amazônicas; a Rua Direita, no centro de São Paulo, e os transeuntes que por lá circulavam, sacolas na mão, olhar de espanto para a câmera localizada no ângulo do chão; as cirurgias espirituais do médium Zé Arigó, cujo principal modus operandi consistia em enfiar uma faca entre a pálpebra e olho do paciente; a paixão interditada entre dois homens gays e os lugares por eles frequentados; o sagrado momento em que uma parteira acolhe o bebê, metade já pertencente a esse mundo, a outra metade ainda a sair do corpo da mãe; o “trem do diabo”, expresso que saía de São Paulo e demorava sete dias para voltar à Bahia, “devolvendo” passageiros que não haviam tido êxito na sua experiência migratória; e os experimentos no ensaio A Sônia, com adoção de filmes infravermelhos e sobreposições na sua investigação do corpo feminino.
Ensaio experimental A Sônia reúne série de nus feita com filme infravermelho.
Foto: Claudia Andujar
Trata-se de uma produção circunscrita entre o início dos anos 1960 e meados de 1970, que abrange, por exemplo, os anos em que a fotógrafa integrou o escrete da revista Realidade e precede o seu mergulho na vida dos yanomamis. “A exposição lança um olhar para um período pouco visto e estudado de sua carreira. Todo mundo conhece as fotos de Claudia com os yanomamis, mas se você repara nessas imagens, percebe que a originalidade, a complexidade, o domínio da técnica e a generosidade em procurar entender o outro, em se relacionar com aquelas pessoas, já estavam ali”, expõe Nogueira à Continente. Sua aproximação com ela deu-se a partir de 2012, quando trabalharam juntos para o segundo número da ZUM.
Registro das cirurgias espirituais do médium Zé Arigó. Foto: Claudia Andujar
Surgiu a ideia de trazer à tona essa produção, de uma certa maneira eclipsada pela potência e pelo alcance das imagens dos índios – bem como pelo fato de que a própria história de vida dela passou a se confundir com a dos yanomamis que se comprometeu a defender, visibilizar e proteger. Thyago Nogueira conta que foram dois anos de visitas semanais com o propósito de exploração de acervo. Era quase uma prospecção arqueológica: “Toda segunda-feira, eu ia à casa dela e ficávamos a olhar o material que ela guardava no arquivo. Fomos fazendo uma revisão de tudo, separando por eixos, mas nunca com o pensamento de fazer algo cronológico. Claudia nunca quis que a exposição tomasse um rumo explicativo ou óbvio demais, digamos assim. Há imagens na exposição que nunca haviam sido impressas, muito menos mostradas antes”.
Claudia Andujar – No lugar do outro opera menos como o registro de um Brasil que buscava se (re)construir em época de ditadura militar (muito embora existam registros que simbolizem essa urbanidade tão tupiniquim, como as fotografias de uma São Paulo que remete a um cenário de ficção científica, ou mesmo os instantâneos de florestas e cachoeiras prestes a ser extintas na Amazônia, e costumes que hoje parecem obsoletos) e mais como impressionante testemunho da produção artística e política de uma das maiores fotógrafas em atividade no país. “Acredito que as imagens também deixam transparecer a verdade e a coragem de Claudia, que, no início dos anos 1960, ainda sem falar quase nada em português, viajava sozinha de barco apenas para conhecer uma simples família de pescadores, ou que depois encarava sete dias em um trem, dormindo nas mesmas condições que os passageiros, só para poder retratar aquela jornada”, conclui o curador Thyago Nogueira.
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“Fiz todo esse trabalho com muito afeto”