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Quem matou Odete Roitmann?

Presença forte na cultura de massa brasileira há cinco décadas, a novela continua arregimentando o interesse do público, é o que comprovam reprises como a de 'Vale tudo'

TEXTO Cleodon Coelho

01 de Junho de 2011

Em 1988, o Brasil parou para saber quem havia matado a vilã interpretada por Beatriz Segall, na novela 'Vale tudo'

Em 1988, o Brasil parou para saber quem havia matado a vilã interpretada por Beatriz Segall, na novela 'Vale tudo'

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 126 | junho 2011]

Recentemente, na entrevista coletiva
que marcou o lançamento de Cordel encantado, atual cartaz do horário das seis da Rede Globo, o fundador do Teatro Oficina e estreante nos folhetins eletrônicos, Zé Celso Martinez Corrêa, pegou o microfone para falar em alto e bom som que odeia novelas. “Se eu tivesse juízo, não teria vindo”, bradou o diretor. Estaria ele arrependido por ter aceitado a empreitada ou simplesmente queria transformar o evento num happening à moda dos que caracterizam seu importantíssimo grupo? Polêmica à parte, a opinião de Zé Celso nos faz lembrar do quanto, assim como no futebol, as novelas podem suscitar relações de amor e ódio. Presença tão forte na cultura de massa brasileira, difícil mesmo é manter-se indiferente a elas.

Como afirma o antropólogo Roberto DaMatta, “toda novela diz muito”. Há 23 anos, uma trama com o título de Vale tudo ganhava o horário nobre das oito para discutir a ética (e a falta de) do povo brasileiro. O país vivia uma hiperinflação, as classes sociais não se misturavam, não havia telefonia celular, nem tampouco o famigerado “politicamente correto”, o que permitia que os personagens fumassem e bebessem à vontade em cena. Os tempos são outros, mas nada disso compromete o sucesso de sua reprise, em cartaz no canal Viva, ainda que num horário ingrato: 0h45. Se toda novela diz muito, com certeza as discussões sobre ética continuam as mesmas. O fato chega a assustar.

Não por acaso, Vale tudo é considerada por muitos especialistas como a melhor trama de todos os tempos, justamente por tratar de um assunto que nunca sai de moda. E a sua volta tem provocado um comportamento curioso: mesmo quem já viu a novela – exibida pela Globo em 1988 e reprisada quatro anos depois –, acompanha os capítulos com a mesma curiosidade de quem conhece a história pela primeira vez. Foi Leila, personagem de Cássia Kiss, quem matou a vilã-mor Odete Roitmann, uma das perguntas mais repetidas em todos os tempos no mundo da televisão. Isso numa época em que não existiam TwitterFacebook e que tais. O mistério em torno do nome do assassino liderava mesmo era o ranking dos trend topics dos botecos, dos salões de beleza e das salas de aula.

Após mais de 20 anos, conhecer o final da história de Gilberto Braga e Aguinaldo Silva é o que menos importa. Parafraseando o Programa do Jô, ninguém vai mais para a cama sem Raquel, Ivan, Maria de Fátima e César, o quarteto fantástico que põe em cena todas as vertentes em que o bem e o mal possam se manifestar. Enquanto o perfil dos personagens continua próximo do que a gente vê nos noticiários, é possível perceber claramente o quanto o aparato que envolve a realização de uma novela mudou, dos anos 1980 para cá. Para melhor.

Naquela época, os estúdios da Globo funcionavam no prédio do Jardim Botânico, zona sul do Rio, onde hoje fica o setor de jornalismo. Era tudo junto e misturado. O local em que Odete foi “assassinada” – atualmente ocupado pela equipe do Jornal Nacional – é quase uma atração turística. As novelas, minisséries e seriados tomam agora as dependências do Projac, complexo de estúdios inaugurado em 1995 em Curicica, na zona oeste. Com espaço à vontade, é lá onde ficam as fábricas de cenários, os acervos de figurino e mobiliário e as cidades cenográficas, que nada devem às dos estúdios hollywoodianos. Ficaram para trás os tempos em que a casa de um personagem era enfeitada com móveis tubulares e samambaias, como o apartamento de Solange, papel da atriz Lídia Brondi (que falta que ela faz!) em Vale tudo.


O complexo de estúdios Projac começou a funcionar em 1995, em Curicica, zona oeste do Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

UNANIMIDADE
Novela pode não ser uma unanimidade, está aí o Zé Celso para endossar. Mas houve um dia em que o Brasil parou diante da TV para ver Rosana Reis ser desmascarada. A revelação sobre a falsa identidade de Simone, personagem de Regina Duarte na versão original de Selva de pedra (1972), deu à trama a espetacular marca de 100% no Ibope. Todos os aparelhos ligados no país acompanhavam o tão esperado momento. E esse é um feito que jamais se repetiu. Mesmo assim, ao longo dos anos 1970 e 1980 as novelas continuaram marcando pontos altíssimos, até que a chegada da TV por assinatura – no início da década de 1990 – e a oferta de dezenas de canais ao alcance do controle remoto mudassem o panorama.

Os fãs do gênero, no entanto, não precisam se amedrontar. Ainda está longe o dia em que as novelas deixarão de fazer parte do cardápio televisivo. Atualmente, por exemplo, a Globo exibe quatro tramas (incluindo Malhação), a Record tem duas e o SBT, uma. Sem contar com as reprises nos mesmos canais e as atrações do Viva, um verdadeiro parque de diversões para quem não se cansa de rever os clássicos do gênero.

A televisão chegou de mala e cuia ao Brasil em 1950, mas as novelas no formato diário apareceram um pouco mais tarde: em 1963, mais precisamente em 22 de julho. O marco zero foi 2-5499 Ocupado, na extinta TV Excelsior, protagonizada pelo mítico casal Tarcísio Meira e Glória Menezes. Na verdade, a trama era mostrada às segundas, quartas e sextas, em seus dois primeiros meses. Só a partir de setembro daquele ano é que ganhou veiculação diária. Rapidamente, as outras emissoras quiseram se lançar no formato. A Tupi estreou Alma cigana no comecinho de 1964, ano que marcou o primeiro grande sucesso do gênero, O direito de nascer, no mesmo canal. E a TV Globo, que entrou em cena em 1965, abriu os trabalhos com Ilusões perdidas, com Leila Diniz, Reginaldo Faria e Norma Blum nos créditos.

Em todas as emissoras, os dramalhões dominavam. As histórias se passavam ora na Espanha, ora no Japão. Os casais penavam nas mãos de vilões maquiavélicos, daqueles de fazerem inveja aos contos de fada. Tudo bem, o sofrimento continua, pois a base de uma boa novela é fazer o público torcer para que os pombinhos enfrentem todas as adversidades em busca do final feliz. Bráulio Pedroso, com Beto Rockfeller(1968), e, um pouco depois, Janete Clair, com Véu de noiva (1969), deram os primeiros passos na modernização da linguagem, conferindo às tramas tintas bem verde-amarelas, ainda que em tempos de TV em preto e branco.

As condições de trabalho, claro, eram pré-históricas. As cenas externas tinham que ser realizadas nas próprias dependências da emissora. O ator e diretor Marcos Paulo, que estreou na TV Excelsior em 1967 e acompanhou todas as mudanças, lembra que a equipe tinha que ser bastante criativa para solucionar o que era escrito pelos autores. O figurino vinha, em sua maioria, do guarda-roupa dos próprios atores. Mesmo assim, aos trancos e barrancos, as novelas foram conquistando fatias generosas de telespectadores, transformando-se numa paixão nacional.

BASTIDORES
Diante de um produto que provoca tanta admiração, não faltam fantasias sobre seu modus operandi. Mas os bastidores de uma novela não têm nada do glamour que muita gente imagina e que as revistas de celebridades tentam alimentar. Para fazer a tal fábrica de sonhos funcionar, o trabalho é árduo. Uma jornada que se estende por longos oito ou nove meses, em média, com dezenas de cenas gravadas por dia, de segunda a sábado, e pilhas de textos para serem decorados em pouco tempo. Cenários são montados e desmontados diariamente. Equipes de cabelo e maquiagem estão sempre a postos, assim como contrarregras, faxineiros e bombeiros. É um exército em ação.


Atualmente, o SBT exibe Amor e revolução, que retrata a repressão a militantes de esquerda durante a ditadura (1964-1985). Foto: Reprodução

Mas tem um ponto interessante que não pode ser esquecido: quem manda é o freguês, como dizia o velho anúncio da famosa rede de lojas Casas José Araújo. Por ser uma obra aberta, durante os meses em que está no ar, a novela fica ao bel-prazer da audiência. Se o público não embarca, o mais sensato a fazer é seguir a vontade coletiva e realizar os ajustes. Mesmo tendo a melhor das premissas, se a novela não conquista o telespectador, não há grande interpretação ou direção rebuscada que dê jeito.

Um bom exemplo é As filhas da mãe (2001), de Sílvio de Abreu, comédia rasgada com personagens criados especialmente para seus intérpretes (Fernanda Montenegro, Raul Cortez, Regina Casé, Andréa Beltrão, entre outras estrelas), mas que teve índices bem abaixo das expectativas e saiu do ar antes de completar cinco meses. Até hoje ninguém sabe o que deu de errado na receita. E Sílvio – autor da histórica e hilariante Guerra dos sexos (1983) – segue fazendo sucesso em outra vertente: as tramas de suspense, como Belíssima (2005) e Passione (2010).

Há quem fale em esgotamento do gênero, mas é inegável que autores como João Emanuel Carneiro e a dupla Duca Rachid e Thelma Guedes se esforçam para colocar pitadas de originalidade numa receita já testada com todos os ingredientes possíveis nos últimos 48 anos. Com uma trama em que, até o capítulo 60, ninguém sabia quem era a mocinha e quem era a vilã, João fez de A favorita(2008) um dos grandes títulos do gênero. Enquanto Duca e Thelma vêm brincando com muita graciosidade na mistura de reino encantado com sertão nordestino do Cordel das seis da tarde.

E o que ainda pode ser mostrado nas novelas? Em maio, os telespectadores da novela Amor e revolução, do SBT, foram surpreendidos pelo beijo entre Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre). Esse pode ser considerado o primeiro beijo gay numa novela brasileira. Antes, houve “ensaios”, como o selinho de Clara e Rafaela em Mulheres apaixonadas (2003), é verdade, mas as duas estavam encenando Romeu e Julieta, quando aconteceu. O jovem Bruno Gagliasso lamenta até hoje não ter entrado para a história das telenovelas como o primeiro ator a dar um beijo em outro homem numa novela – no caso, América (2005), em que seu personagem, Júnior, se apaixonava pelo peão Zeca (Erom Cordeiro). A expectativa foi enorme; a frustração (para muitos), idem.

Para imaginar o alcance de uma novela, é só tirar dois dedos de prosa com um ator, mesmo aquele que não aparece nos créditos principais. Até gente que pavimentou sua trajetória no teatro e no cinema viveu a dor e a delícia de ser confundido com personagens televisivos. Enquanto filmava o premiado Central do Brasil, em Cruzeiro do Nordeste, interior de Pernambuco, Fernanda Montenegro era reconhecida nas ruas como a Zazá da novela homônima. Em Monte Belo do Sul, no Rio Grande do Sul, onde rodava Saneamento básico, Lázaro Ramos era chamado pela população de Foguinho, seu papel em Cobras & Lagartos.

O diretor Zé Celso Martinez Corrêa, como a gente já sabe, odeia novelas. E a sua curta participação em Cordel encantado não o permitiu experimentar um dos maiores efeitos colaterais do produto: esse reconhecimento da grande massa. Se iria odiar ou amar, não vamos saber, infelizmente. 

CLEODON COELHO, jornalista, roteirista de TV, autor de biografias da novelista Janete Clair e da atriz Lilian Lemmertz.

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