Num país – e num estado – em que o futebol desperta paixões mesmo em quem não se interessa por esporte, nada mais natural que a maioria dos aficionados não frequente as arquibancadas e adote outras formas de, digamos, amar. Uma pesquisa da Pluri Consultoria, realizada em 2012, afirma que, juntos, Sport (2, 2 milhões), Santa Cruz (1,4 mi) e Náutico (0,8 mi) têm 4,4 milhões de torcedores. Números do IBGE, divulgados no mesmo ano, são convergentes: a maior parte de quem escolheu um time de futebol para chamar de seu não pode ser vista levando baculejo da polícia nos campos.
Tem gente que não frequenta o estádio porque mora fora da cidade – ou do país. Há quem tenha sido afastada deles por conta da violência, do aperto, da má qualidade do futebol ou da lei seca que proíbe a cervejinha no intervalo da pelada. Ou mesmo os torcedores de paixão duvidosa, que simplesmente acreditam que têm programas melhores para fazer no domingo à tarde.
“Sou tão apaixonado quanto qualquer torcedor. Acompanho as notícias, procuro saber os resultados. Apenas não curto ir a campo”, afirma Leo Crivellare. Torcedor do Sport, o diretor de audiovisual nem lembra a última vez em que pôs os pés na Ilha do Retiro. “Não me sinto à vontade na multidão, sempre acho que pode acontecer alguma coisa errada. Além do mais, prefiro mesmo assistir às partidas pela televisão. Há mais câmeras, replay, essas coisas. Na arquibancada, às vezes, você vai conversar e acaba perdendo o melhor momento do jogo.”
Videasta Leo Crivellare evita ir ao campo por conta da multidão. Acompanha as partidas pela TV. Foto: Tiago Barros
“A vantagem de ficar em casa é de sentar-se com o conforto que os estádios não têm, e tomar uma cerveja sossegado”, argumenta o jornalista Eduardo Guerra, doente pelo Santa Cruz que, desde 2005, não põe os pés no Arrudão. “Como é que vou levar meus filhos a uma partida de futebol e passar todo o tempo na tensão, pensando na segurança deles, sem prestar atenção ao jogo?” questiona.
Há quem alegue motivos emocionais para continuar amando a distância, como é o caso da cineasta Andrea Ferraz, ex-ferrenha integrante das fileiras tricolores. “Deixei de ir porque senti que ficava com o humor muito alterado. Não estava me fazendo bem. Ia a campo porque amava estar no meio da torcida, sentindo o calor e, sobretudo, os picos de emoção. Da alegria à tristeza, em minutos. Isso me alimentava. Com o tempo, esse estado começou a me perturbar mais do que alimentar. Parei, há uns seis anos”.
Andrea permanece defendendo sua equipe, sofrendo junto, fazendo cara feia para quem disser que sua torcida não é a maior de Pernambuco. Mas não compra mais ingresso. “Torcer a distância deve ser como amar a distância. A gente acompanha o outro de longe, alegrando-se e sofrendo com os destinos traçados. A gente se mobiliza, cria esperanças, sonha e fantasia, mas se protege também. A distância é uma proteção.”
FORA DO BRASIL
“Na verdade, a paixão aumentou com a distância”. Quem diz isso é o vendedor Lynésio Augusto, há 12 anos morando entre Portugal e Espanha. Frequentador de sites sobre futebol e fóruns virtuais, em que se discute assuntos relacionados ao Sport, o expatriado recebe de bom grado as novas tecnologias.
“Logo que me mudei do Recife, a coisa era muito difícil. Aos poucos, fomos conseguindo ouvir rádios pela web e, agora, muitos jogos já são transmitidos por canais internacionais de TV por assinatura. Não perco um”, garante o torcedor.
Radicado no Canadá, João Paulo Leitão conta que usa a internet para assistir a jogos e ler notícias. Foto: Divulgação
Dono de uma vasta memorabilia rubro-negra (com toalhas, DVDs, camisas e moletons), o aficionado só voltou ao Recife duas vezes em todos esses anos. Na Ilha, só conseguiu estar uma vez. “Assisti Sport 0x0 Salgueiro. Um jogo horrível, verdadeira pelada. Mas valeu a pena.”
Desde 2007 morando em Montreal, no Canadá, o administrador João Paulo Leitão também confia na internet para ficar por perto do seu Náutico. “Dá para ler à vontade sobre o time, debater com outros torcedores, opinar em sites, blogs”. A maior dificuldade é para assistir a jogos ao vivo, quando a única alternativa é recorrer a sites que pegam “emprestadas” imagens da tevê e transmitem por streaming. “É difícil achar sites para ver os jogos com qualidade de imagem razoável. Tenho uns sete sites nos favoritos, para sempre ter certeza de que vou achar o jogo. Pior é quando trava a imagem, e você perde lances da partida.”
Torcedores no “exílio”, como Lynésio e João Paulo, acabam também servindo como “embaixadores informais” de seus clubes no exterior. “Ando sempre com a camisa do glorioso. Os gringos daqui sempre perguntam que time é e, hoje, toda a vizinhança conhece o Timbu por minha causa”, diz Leitão. Lynésio não se contenta em desfilar e tirar fotos com o uniforme do Leão. “Dou muitas camisas de presente aos meus amigos. Por minhas mãos, já tem gente divulgando o Sport em Portugal e até em Moçambique”, orgulha-se.
Nem todo mundo lida com a distância tranquilamente. Atuando há cerca de nove meses como juiz trabalhista, em São Paulo, Leonardo Burgos não esconde sua tristeza em estar longe do Santinha. “Sempre procuro marcar minhas vindas ao Recife levando em conta os finais de semana de jogo no Arruda.” O tricolor é daqueles que pegam ônibus de madrugada para ir ver o time jogar em Mossoró, pela série C e, agora, conta os dias para poder acompanhar, em Campinas, o embate contra o Guarani, no segundo semestre. “Vou, com certeza. Assim como fui, também, com alguns amigos, assistir ao jogo entre Santa e São Raimundo pela Copa São Paulo de Futebol Junior, em Sumaré, a 115 quilômetros da capital.”
Burgos tem mais de 15 camisas do Santa, mas não pode vestir no trabalho, nem costuma usar nos dias em que o time não joga. “Sou um torcedor discreto”. Se o Santa está em campo e a partida não for transmitida pela TV, a discrição transforma-se em agonia. “Não tenho coração para acompanhar pelo rádio, nem pelo celular.” A tensão é tanta, que, em 2012, enquanto seu clube goleava o Águia de Marabá por 6x1, pela série C do Brasileirão, isolou-se do mundo. “Desliguei o celular e fui ao cinema sozinho.”
A torcedora Andrea Ferraz deixou de ir a campo porque ficava com o humor muito alterado
EM BUSCA DE GENTE
Diferentemente do relacionamento amoroso, em que os encontros a dois são os mais ansiados, a paixão pelo futebol normalmente requer muita companhia. Exclusividade no relacionamento é a última coisa que deseja quem costuma gabar-se de ter a maior torcida – nem que seja a do quarteirão.
“Num jogo contra o Brasiliense, em 2010, o Náutico precisava vencer para permanecer na segunda divisão. Eu estava nervoso, gritava sozinho na frente do computador, foi um sufoco, mas ganhamos”, lembra João Paulo Leitão, que, naquele momento, não teve com quem comemorar.
“A única vantagem de torcer fora do Recife é que, quando a gente perde, não tem ninguém pra tirar onda. Em compensação, quando ganhamos, é chato comemorar sozinho”, diz Burgos. Talvez, por isso, quem tem a oportunidade de ir a um jogo de seu time fora de casa, não desperdiça a chance. No tempo em que morou em São Paulo, o executivo rubro-negro Leonardo Mamede (que hoje vive na Suíça) perdeu a conta de quantos jogos frequentou, tanto na capital quanto no interior paulista. “Tive a oportunidade de ir a Jundiaí, Itu, Campinas, Santo André, São Caetano, Bragança Paulista, Santa Bárbara do Oeste, Mogi Mirim... O interessante é que você reencontra várias figuras do Recife nesses jogos e começa a formar uma torcida de ‘expatriados’”.
Em comum, os “torcedores remotos” têm a internet não só para se manter a par das informações sobre seus times, mas também para se sentirem juntos de outros torcedores e zoar os adversários. Longe da tensão e dos estádios, também parecem alheios às confusões causadas por grupos intolerantes que protagonizam cenas de violência acontecidas nas suas proximidades.
Viajando a trabalho pelo interior da Paraíba, Leo Crivellare teve uma companhia insólita para acompanhar a final do Pernambucano de 2012, quando o seu Sport perdeu para o Santa Cruz. “Estava de folga, passeando no município do Congo, quando vi um cara com a camisa tricolor, ouvindo o jogo pelo rádio. Cheguei perto e me apresentei, disse que era rubro-negro, que queria saber da partida, que estava em paz. Ficamos juntos na torcida, um contra o outro, na maior tranquilidade. No final, ele saiu feliz e eu triste. Mas ficamos amigos.”
IVAN MORAES FILHO, jornalista, militante de direitos humanos e apresentador do programa Pé na Rua.
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