CONTINENTE O senhor vê o Acordo Ortográfico de 1990 como uma iniciativa política elaborada pelo Brasil para exercer sua influência no nível internacional? A discussão sobre a formatação do AO não teria sido estritamente um problema normativo a ser resolvido pelas academias de letras dos países lusófonos, dado que se arrasta há 100 anos e, portanto, é bem anterior ao protagonismo que o Brasil assumiria no cenário mundial?
JOÃO ROQUE DIAS Não! Como escreve o prof. Fernando Venâncio no seu artigo Acordo Ortográfico – visita guiada ao reino da falácia, tudo começou em Coimbra, Portugal, em 1967, quando um grupo de académicos se lembrou de que a escrita da Língua Portuguesa devia ser unificada. Não apresentaram argumentos e, muito menos, estudos que suportassem tal necessidade e, acima de tudo, sobre as vantagens, os benefícios e os custos de tal “unificação”. Sobre o facto de o Brasil ter adoptado, em 1915, a Reforma Ortográfica portuguesa de 1911 e, depois, a ter rejeitado em 1919, nem uma palavra dos académicos. Sobre o facto de o Brasil ter decidido, desde há mais de um século, e com total razão, tomar, nas suas mãos, a definição e uso de uma ortografia própria, cada vez mais distante da matriz original do Português, também nem uma palavra dos académicos. Sobre o facto de o Brasil ter assinado com Portugal a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945 (COLB45), a ter adoptado em 5 de dezembro de 1945, três dias antes da sua adopção em Portugal, e de a ter rejeitado 10 anos depois, em 21 de Outubro de 1955, os académicos de Coimbra também não tiveram nenhuma palavra, e não souberam ler os claros sinais da História. Mais tarde, em 1986, quando uma primeira versão de um acordo ortográfico viu a luz do dia, o seu destino só podia ser o que foi: o caixote do lixo.
CONTINENTE Há algum ponto do AO que o senhor julgue pertinente ou plausível?
JOÃO ROQUE DIAS Pertinente, como um todo, não! Porque, como disse o professor António Emiliano: “Não, obrigado. Não pedimos, não queremos, e, sobretudo, não precisamos”. A primeira das 21 bases do acordo, sobre as letras do alfabeto e os nomes próprios estrangeiros, podia ser útil, mas com correcções. É que, “a letra W tem (no AO 1990) o nome de ‘dábliu’, designação brasileira desconhecida em Portugal onde se usa ‘duplo vê’ e ‘dâblio’, designações agora suprimidas”. A base II, sobre o H inicial, também pode ser utilizada, mas é completamente inútil como texto normativo, face ao uso da língua escrita em Portugal.
CONTINENTE A despeito da resposta anterior, o senhor acha que a unificação ortográfica é um problema insanável, mesmo com os resultados satisfatórios obtidos no universo de língua hispânica, por exemplo, que abrange um universo de 22 academias (contra duas da CPLP)?
JOÃO ROQUE DIAS A desunião ortográfica é um factor de riqueza cultural e satisfaz portugueses e brasileiros. A unificação ortográfica é um problema que o AO 1990 introduziu e se propôs resolver, oficializando o desacordo ortográfico. Em 1945, a ortografia portuguesa ficou unificada a 100% pela COLB45. O Brasil rejeitou esse acordo, 10 anos depois de o ter aceitado. Face a essa rejeição, não há unificação possível, o que aliás faz todo o sentido face à enorme divergência linguística (fonético-fonológica) entre as línguas de Portugal e do Brasil.
CONTINENTE De toda forma, os países hispânicos chegaram a uma solução satisfatória...
JOÃO ROQUE DIAS Sobre o universo hispânico, devem pronunciar-se os falantes do espanhol. A desunidade das ortografias brasileira e euro-afro-asiático-oceânica não é um problema ou facto negativo. É a realidade. As coisas são como são. Deve reconhecer-se que a língua franca mais utilizada em todo o mundo, o inglês, nunca teve acordos ortográficos, porque nunca precisou deles. E que, nas Nações Unidas, a ortografia adoptada é variante britânica com a ortografia de Oxford.
CONTINENTE A suposta tendenciosidade pró-brasileira do AO 1990, alegada por alguns portugueses, não é um equívoco interpretativo?
JOÃO ROQUE DIAS O AO 1990 resulta num insuportável e inaceitável abrasileiramento da ortografia portuguesa, por causa, entre outras medidas, da supressão das chamadas consoantes mudas: se uma quantidade enorme de palavras de uso frequente se passa a grafar como no Brasil, é óbvio que tal facto é interpretado pela população portuguesa como um abrasileiramento da sua escrita.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, mestre em Comunicação e crítico de música erudita.
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