Se essa “desobediência civil” dará resultados, não é possível prever – já que o processo de adaptação em Portugal ganhou data para terminar, a não ser que a ILC (Iniciativa Legislativa de Cidadãos), mencionada na matéria anterior, vingue e seja aprovada pelo poder legislativo português.
Pouco salutar, nesse sentido, tem sido um argumento de resistência evocado por parte da intelectualidade e da população lusa, que acusa o Brasil de exercer seu poder político no nível internacional para impor o AO 1990, lastreando-se no interesse em assumir uma cadeira no Conselho de Segurança das Nações Unidas e, consequentemente, obter o status de língua oficial para o português.
A discussão sobre a formatação de um acordo ortográfico, anterior ao protagonismo que o Brasil deseja assumir no cenário mundial, está sendo interpretada, portanto, não somente como um problema normativo a ser resolvido pelos países lusófonos. A própria necessidade do acordo sofre contestação, e os dissensos luso-brasileiros nas tentativas anteriores servem de reforço retórico para essa oposição.
O tradutor João Roque Dias, uma das figuras de proa contra o AO 1990 em Portugal (leia entrevista com ele adiante), alega que os estudiosos reunidos no Primeiro Simpósio sobre a Língua Portuguesa Contemporânea – realizado em Coimbra em 1967, quando ditaduras governavam dos dois lados do Atlântico – nunca apresentaram estudos sobre as vantagens, benefícios e custos da unificação ortográfica. Ele também aponta que o “grupo de académicos” esquivou-se de questionar por que o Brasil voltou atrás após adotar as reformas lusitanas de 1911 e 1945 e elogia a decisão de o Brasil ter tomado os rumos da própria ortografia ao longo do século 20, não vendo pontos negativos na falta de unidade entre ela e os demais países lusófonos, assim como se dá na língua inglesa.
CONTRA-ARGUMENTOS
Por outro lado, o professor Carlos Reis, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, adverte quanto à ideia superdimensionada de rejeição que os ativistas antiacordo possam passar, especialmente através de manifestos via internet, e lamenta a omissão da classe política no que tange ao acompanhamento do assunto: “Não sei se se pode dizer que ainda há ‘considerável rechaço’, como você fala. Paulatinamente, o AO tem entrado em vigor, na imprensa, nas televisões, na edição de livros e até em manuais escolares. Ou seja: as resistências vão-se esbatendo, apesar de o poder político, no passado próximo e na actualidade, se terem demitido das suas responsabilidades, no que a esta matéria diz respeito”.
Alguns opositores do AO 1990, em Portugal, criticam protagonismo político internacional do Brasil a partir do idioma
O calo de muitos portugueses antiacordo parece estar mais embaixo. E diz respeito a um certo ressentimento pela “intromissão” do Brasil em um assunto que consideram de sua alçada: os rumos do idioma que nasceu em sua terra. Muitos portugueses – conforme pode ser observado em comentários de vários blogs e sites que tocam no tema – chegam a dizer que, da mesma maneira que os Estados Unidos não impõem normas ortográficas ao Reino Unido, seu país não deveria dar ouvidos ao Brasil.
Tal efervescência no nível nacional, que retoma a calorosidade com que Portugal discutiu a entrada na zona do Euro, instiga posicionamentos mais distorcidos, como o de que o acordo se trata de um ato “entreguista” de Portugal aos interesses macropolíticos brasileiros, dada a mobilização brasileira por um lugar no Conselho de Segurança na ONU. “Essa é uma atitude insuportavelmente nacionalista de quem, com preconceitos inaceitáveis, se recusa a aceitar que nenhum país é proprietário da língua e que todos são dela condóminos”, rebate o professor Carlos Reis, defensor do AO 1990.
Já as ex-colônias africanas, apesar de alertarem sobre suas dificuldades em financiar estudos de avaliação e a renovação de toda a bibliografia oficial e escolar, inclinam-se a seguir o Brasil, tal qual o fez Cabo Verde. O escritor angolano José Eduardo Agualusa já havia polemizado poucos anos atrás ao dizer que, se Portugal não quisesse aderir ao AO 1990, seria um direito deles, mas que era benéfico para Angola. O moçambicano Mia Couto, por sua vez, ressalvou que as diferenças de grafias nunca foram um empecilho à compreensão textual, embora não faça oposição ao acordo.
Agualusa, no entanto, não pode ser acusado de tomar partido pelo Brasil. As razões que coloca revelam uma terceira força argumentativa, calcada na realidade política e econômica angolana, que não foi levada em conta como se deveria por aqui e na ex-metrópole: “Angola não tem escolha. É um país que importa a maioria dos livros que consome de Portugal e do Brasil – agora escritos com o novo AO. Então é só uma questão de tempo até ratificar e implementá-lo. Estamos atrasados por pura incompetência e ignorância: Angola é um país extremamente malgovernado, com o mesmo presidente no poder há 33 anos. Não é uma democracia, nem um modelo de boa governação e transparência”.
Perguntado sobre a existência de alguma birra em Angola à semelhança da que há em parte da população portuguesa, Agualusa conta que tem lido artigos de personalidades ligadas ao governo de seu país e que são a favor do AO, como o escritor e deputado João Melo, e que também tem ouvido opiniões contrárias, mas os problemas sociais crônicos sofridos pela população não escapam de ser o alvo maior de sua crítica. “Não se pode dizer que esse assunto, o acordo, suscite o interesse da maioria dos angolanos. Essa maioria tem assuntos muito mais importantes com os quais se preocupar”, arremata com acidez.
Leia também:
"Não pedimos, não queremos e não precisamos"