Reportagem

Crianças brincantes

Nas manifestações da cultura popular, é no convívio cotidiano com as práticas artísticas que se formam as novas gerações, responsáveis por manter e renovar as tradições

TEXTO CHICO LUDERMIR 
FOTOS RENNAN PEIXE

01 de Fevereiro de 2019

Jean Guilherme, de quatro anos, é percussionista do Coco do Miudinho, da Nação Xambá

Jean Guilherme, de quatro anos, é percussionista do Coco do Miudinho, da Nação Xambá

FOTO Rennan Peixe

[conteúdo na íntegra | ed. 218 | fevereiro de 2019]

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Acabava de chegar a noite do Dia de Reis na comunidade do Amaro Branco, em Olinda, e Caillany, enfim, começava a se vestir com as roupas vermelhas do seu cordão de pastoras. Primeiro, levantou as meias até abaixo do joelho; em seguida, mergulhou no vestido, que somava uma saia rodada de voal com um corpete cravejado de lantejoulas prateadas. Por último, coroou-se com sua tiara de mestra e sacou seu pequeno pandeiro todo revestido de tecido e fitas encarnadas.

Ao lado, Luciana atentava para os detalhes da arrumação da filha. Abotoava-lhe o vestido, atarraxava-lhe os brincos e pintava a boca da menina com um batom suave. Com um prato fundo na mão, dava de comer a Caillany, garantindo que a filha estivesse forte para aguentar toda a brincadeira que duraria, pelo menos, três horas, desde a concentração à dispersão. Na beira da porta do quarto, tomado por adereços dispostos em cima de uma cama de casal, o pai José Carlos observava atentamente a movimentação das duas. Escorava-se nas paredes de tijolo aparente de sua casa de primeiro andar ainda em construção.

– Vamos, mainha, já vai dar sete horas, apressava.

A espera pelo dia de colocar o pastoril na rua durara quatro meses, em ensaios diários na casa da mestra Ana Lúcia desde setembro e, naturalmente, enchia de ansiedade não só a criança, mas toda a família, mobilizada em dar suporte à pastorinha. Espalhadas pela comunidade, em outras 27 casas o ritual se repetia: meninas de três a 15 anos se aprontando para desfilar no Estrela de Belém, que sairia pelas ruas do Amaro Branco pela sexagésima nona vez, naquela noite de chuva intermitente.

Caillany se matinha calada, numa concentração característica daquelas que estão prestes a entrar em cena. Levava a sério, de um jeito que as crianças também sabem fazer. Vendo-a no seu ritual silencioso dentro do quarto, ficava difícil imaginar tamanha desenvoltura na rua. Observando-a com apenas 10 anos, surpreendia saber que a menina se preparava para desfilar pela quinta vez. É que é costume na cultura popular começar cedo. Bem cedo. De berço, como se diz. Ou de barriga.

Caillany recebe ajuda da mãe nos preparativos para o pastoril, que percorre as ruas do Amaro Branco

Envolvida pelas dinâmicas de um bairro profuso em manifestações culturais – reconhecido por manter um dos poucos pastoris sagrados com crianças de Pernambuco, assim como pelas sambadas de coco que acontecem mensalmente –, a menina, como tantas outras crianças do Amaro Branco e de outras comunidades onde, espontaneamente, mantêm-se vivas as tradições, já nasceu brincante. Aos cinco, estreou no pastoril de Ana Lúcia, saindo de anjo. Aos sete, de camponesa. Este ano, recebeu a responsabilidade de ser a mestra do seu cordão. Junto com outras três, completava o quarteto que carregaria a lapinha, um presépio completo em cima de um andor, até a sua queima.

Além de brincar no pastoril, Caillany também canta coco, desde que se lembra. É neta e sobrinha-neta de coquistas e aprendeu a falar já no ritmo do pandeiro. Atualmente, compõe o grupo Estrelinhas, junto com outras 11 meninas, ensinadas pela mesma mestra do pastoril e se apresentou diversas vezes com seu grupo, assim como no Coco do Farol, acompanhando seu avô Edmilson e Ana Lúcia. Em setembro de 2018, durante o Kipupa Malunguinho – encontro de jurema que reúne grupos de toda a região –, tive a sorte de ver Caillany no palco, cantando uma de suas músicas preferidas, Tapuia, ao lado de Nilton Jr, do grupo Pandeiro do Mestre. Com a voz aguda e o brilho nos olhos que lhe são característicos, encantou todo mundo. “Quase caí de tanta emoção”, lembra ela.

Acompanhei os passos apressados da menina subindo as ladeiras que ligavam a sua casa até a sede, na casa da mestra Ana Lúcia, numa rua estreita, no alto do Amaro Branco, praticamente embaixo do Farol de Olinda. Deixava a mãe para trás, no desejo de não se atrasar nenhum minuto. Fazia com segurança o trajeto de menos de 10 minutos, que repete há metade de sua vida. Nas mãos, além da pandeirola, levava um buquê de rosas amarelas, que tratou de entregar nas mãos da anfitriã assim que chegou, como forma de agradecimento à mais velha. O respeito à sabedoria dos mestres por parte dos mais novos é marca da cultura popular.

Quando chegamos, a rua estava em festa azul e encarnada. Caillany sumiu dentro da casa com outras três crianças, que reapareceram alguns instantes depois trazendo a lapinha em seus ombros, marcando o início do folguedo. Em procissão, saía pelas ruas do Amaro Branco, anunciado por fogos e clarins, o Estrela de Belém. A vizinhança corria até as portas das casas para saudar o pastoril que, depois de 69 anos, é parte integrante da história da comunidade.

“Meu São José/ Dai-me licença/ Para o pastoril dançar/ Viemos para adorar/ Jesus nasceu para nos salvar”, cantava a mestra em um microfone amplificado em um carro de som, enquanto dançavam as quase 30 crianças. Entre pastoras, cigana, anjo, aurora e estrela estava Tailiny, a mais nova do grupo, uma borboletinha de três anos. Com uma espontaneidade serelepe, Tailiny balançava seus cachinhos seguindo o ritmo valseado da orquestra e a tradição da família. Ela é a terceira geração a dançar no Estrela de Belém. A avó, Vera, foi das primeiras pastoras de Ana Lúcia. A mãe, Luana, veio em seguida e, poucos anos depois de parar de dançar, trouxe sua filha para assumir seu posto. “Elas começam com três anos e dançam até casar”, conta a mestra. “Depois que casa, não fica mais, porque vai trabalhar, cuidar das crianças. E aí vão trazendo as filhas pra dar continuidade.”

A própria Ana Lúcia nasceu pastora. Da casa dela, há 74 anos já saía o presépio. Antes dela, os pais, os avós e, pelo que se tem notícia, os bisavós também tinham o costume de fazer o auto natalino em Amaro Branco. Diferentemente das irmãs, quando casou, ela bateu o pé e disse que não ia sair da cultura por causa de marido. “Ele foi quem entrou na cultura comigo.” Além do pastoril, herdou da família o gosto pelo coco (no qual é reconhecida como mestra, com três CDs gravados), mamulengo e acorda-povo. Por ter aprendido tão cedo com os pais, faz questão de se empenhar na transmissão de tudo que sabe. É sua missão e, para isso acontecer, às vezes deixa até de fazer sua feira.

É na casa dela onde acontecem os ensaios, quase que diariamente. Nos últimos meses do ano, às segundas, terças, quintas e sextas-feiras, Ana Lúcia espera as crianças entrarem pelo seu portão e fazerem algazarra no seu quintal. “As pastorinhas são um caso sério”, comenta, citando a letra de uma música de sua autoria. Mas, no resto do ano, acontecem também, no mesmo quintal, os ensaios de coco e do acorda-povo.

Em um misto de brabeza com bondade, a mestra repassa músicas, passos e partilha seu amor pela cultura popular com as crianças da vizinhança. “Eu vou cantando e vou ensinando a eles. E vou mostrando como sambar (coco) com os pés. Num instante eles aprendem”, explica a sua metodologia, que passa pela transmissão oral e pedagogia do exemplo.

“A gente chegou aos 74 anos e não sabe a que vai. Pode morrer nova, pode morrer velha. Eu quero fazer essas coisas pra, no dia que papai do céu me levar, ter alguma que diga ‘aprendi com a mestra Ana Lúcia’. Isso é um orgulho pra mim”, afirma, anunciando que, com o recente fim do ciclo natalino, está prestes a retomar os ensaios do coco das Estrelinhas.

E já tem muitos herdeiros. Duas de suas filhas, Marluciane e Inalda, e dois netos, Cíntia e Júnior, são cantores de coco. Caillany, uma de suas pupilas, também deu a certeza de que vai levar o legado da mestra pra frente. “Eu carrego uma tradição que vem muito antes de mim e sinto muita alegria por isso. Vou botar meus filhos dentro da cultura também, pra que nunca acabe.”

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No Portão do Gelo, em Olinda, ainda eram férias e as crianças do Coco do Miudinho nos esperavam no quintal de Dona Glória. O sol quente de uma tarde de verão de janeiro era atenuado pelas sombras das árvores da casa de uma das matriarcas da Nação Xambá. Gui, Samuel, Heitor, Henrique, Guigui, Neto e Vitória interagiam com espontaneidade familiar. Brincavam com a intimidade do convívio. De igual pra igual, ou no cuidado dos mais velhos com os mais novos.

São todos primos, como dizem. Alguns de parentesco consanguíneo, outros, de uma relação que extrapola a genética e toca na ancestralidade e espiritualidade, tão vivenciada numa comunidade que gira em torno de um terreiro. Aquela casa, aquele quarteirão, aquele território inteiro de três hectares, que hoje tem o título de quilombo urbano, o único do estado, faz parte do universo que as crianças vivenciam com o corpo todo. Com o pertencimento de uma construção diária e com uma conexão que extrapola o visível.

Queima da Lapinha com o pastoril infantil da mestra Ana Lúcia

No Centro Cultural Bongar, na mesma Rua Severina Paraíso Silva (em homenagem à mãe Biu, falecida em 1993), os meninos e meninas tomam seus lugares, cada qual com seu instrumento. É lá que todas as segundas-feiras ensaiam os Miudinhos, seguindo os ensinamentos de Guitinho, tio e inspiração. O grupo, que surgiu há 11 anos, hoje conta com 25 crianças de quatro a 17 e soma diversas apresentações, em especial durante o Carnaval. Guitinho, além de professor, é o vocalista do Bongar, grupo musical nascido na Xambá, que, ressignificando os ritmos tradicionais, ganhou reconhecimento mundial. É, também por isso, uma enorme referência para as crianças e adolescentes locais.

Por trás da escultura dos orixás gêmeos Ibêji, protetores das crianças, Guilherme e Samuel, ambos com quatro anos, tocam o ilu, acompanhando seus primos no ritmo do coco. Batem na pele de couro como se o tambor fosse extensão dos seus corpos. E é. Desde que ficaram em pé, os pequenos tocam, além do ilu, abê, agogô, caixa, alfaia e pandeiro; no coco, na brincadeira do boi e nas obrigações e toques do terreiro.

– Toco pra todos os orixás: Iemanjá, Ogum, Exu, Iansã, Xangô…”, explica Gui, demonstrando seu conhecimento precoce também do candomblé. Gosta de todos, mas, perguntado sobre os preferidos, não titubeia: Oxum e Oxalá, seus santos de cabeça.

– O meu é Odé, emenda Samuel, referindo-se ao orixá também conhecido por Oxóssi, guardião das matas.

Tanto Gui quanto Samuel são sobrinhos de Guitinho, que fala dos meninos com um tom misto de dever cumprido e esperança. “Eles têm um domínio incrível da percussão, que ultrapassa meramente a técnica. São seres que nos fazem ter certeza de que a nossa tradição será mantida”, comenta o tio. “Tenho convicção de que essa geração nova vai muito além do Bongar, porque vão somar os conhecimentos do ilu com o do iPhone”, aposta, equiparando as duas tecnologias, ressalvando que apenas uma delas não fica obsoleta.

Depois de 11 anos juntos, Neto, Henrique e Guigui já não são mais miudinhos. Com 14, 16 e 17 anos, estão se despedindo do grupo que ajudaram a criar para abrir espaço para os que chegam, como Gui e Samuel, e compor outro projeto dentro da Xambá. O Pirão Bateu, nome que faz referência ao prato típico desse terreiro, reúne os ex-miudinhos em uma proposta autoral. O repertório soma composições dos jovens com uma percussão experimental composta por instrumentos confeccionados a partir de utensílios de cozinha. “Se eles fizerem o que eu estou achando, eles vão deixar todo mundo espantado. Vão revolucionar”, aposta Guitinho, diante dos três pupilos.

No que depender da vontade de Neto, vão mesmo. O menino, que toca desde os três anos de idade, avisa: “O Bongar deu a mão, mas a gente quer o corpo inteiro”. O adolescente personifica uma soma de desejos muito peculiar e, obviamente, não excludente. Busca a manutenção de sua tradição ancestral e o reconhecimento enquanto artista criador. Quer mostrar quem é, dentre as muitas formas possíveis de ser.

Além de dominar a percussão, Neto é compositor e, ao cantar, demonstra uma vertente importante da cultura popular levada adiante pelos jovens. Além das referências ao tradicional e ao religioso, as letras apresentam um conteúdo engajado, que atravessam o binômio preconceito/afirmação identitária.

“Anjo protetor, meu anjo, meu guia/ me ajuda a superar esse preconceito que eu sofro todo dia/ Por causa da minha guia, por causa do meu orixá/ e todo dia eu pergunto a minha tia/ quando é que o preconceito vai se acabar”, diz o refrão de uma delas, abordando a intolerância religiosa sofrida pelos povos de terreiro.

Outra característica da juventude é o trânsito por outros grupos, raro nos mais antigos, que permite misturar referências das sonoridades e conhecimentos das diferentes nações. Soma-se a isso uma globalização que se expressa tanto virtual quanto presencialmente: a conexão desses jovens com todo o mundo acontece pelos celulares, mas também em visitas que o quilombo - desde 2018 reconhecido como Patrimônio Vivo de Pernambuco - recebe, em especial, nas festas do Dia de São Pedro, quando a rua é tomada por uma multidão.

Por mais que seja um elemento essencial de referência à tradição, a música popular também atravessa transformações que perpassam novas composições e sonoridades. O coco, na Xambá, por exemplo, quando começou, só tinha alfaia, tabica, pandeiro e ganzá. Atualmente, incorpora a caixa e o ilu, deixando a batida mais cadenciada e enérgica, o que também é percebido na forma de dançá-lo.

O grande desafio, reflete Guitinho, é ressignificar sem corromper. Nessa relação do passado com o presente, e do tradicional com o contemporâneo, a maior escola é o próprio terreiro, defende – onde a sabedoria é viva e o conhecimento colocado em prática. É na observação dos pais, mães e avós, que filhas e netos vão aprendendo música, dança e tradição. “Se não fosse a nossa convivência dentro do terreiro, a gente não ia saber tocar dessa forma. Aprendemos olhando e observando os mais velhos”, completa Neto, em um diálogo entre gerações. O menino, que leva na certidão de nascimento o nome do avô, Adeildo Paraíso Silva, atual babalorixá da casa, sabe reconhecer onde está sua principal fonte de inspiração: “Vejo meu avô tocar 100 vezes, mas sempre é o mesmo encanto”, pontua.

“É preciso entender a afirmação da nossa identidade como instrumento de combate e sobrevivência”, retoma Guitinho, defendendo a importância da transmissão de saberes para além do ensino formal. “É importante mostrar para as crianças que elas podem cantar e dançar as músicas e danças de seus antepassados negros e acender a vela pro seu orixá. Mesmo que isso não esteja acontecendo dentro das escolas, no mundo afora, estamos fazendo nosso dever de casa”, enfatiza.

Integrantes do Coco do Miudinho, da Nação Xambá, posam para foto no Centro Cultural Bongar, no Portão do Gelo, Olinda

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O Guadalupe tem um terreiro/ É o terreiro de umbigada/ E mãe Beth de Oxum/ Vem trazendo essa sambada/ Diga lá que coco é esse/ é o coco de umbigada/ No terreiro de umbigada/ tem o coco de umbigadinha/ Vem trazendo Ialodê, Oxaguian, Mayra e Inaê.”

Há duas décadas, em todo primeiro sábado do mês, o Beco da Macaíba, no Guadalupe, se enche de gente para sambar coco de umbigada. A festa, conduzida por mãe Beth de Oxum e realizada na frente de sua casa e terreiro, vem se consolidando como um dos espaços de maior construção política da cidade. Marcada por uma participação forte da juventude negra, que encontra na roda de coco um território para se afirmar enquanto existência forte, plural, enraizada e alegre. “A nossa felicidade é nossa arma”, defende a ialorixá.

“Quem diz que a juventude não gosta de cultura popular não tem circulado pelas ruas”, defende Beth. O coco de umbigada, assim como outras tantas manifestações que encontramos para a realização desta reportagem, é a prova viva disso. Não há um mês em que o beco não esteja repleto de meninos e meninas se revezando aos pares, dentro da roda de coco. O trabalho continuado da filha de Oxum tem contribuído para fincar a antena da tradição afro-indígena firme na contemporaneidade. De uma forma viva e pulsante.

“O lugar onde a cultura popular surge, materializa-se e se desenvolve são os terreiros de matrizes africanas e indígenas”: essa é a premissa de mãe Beth, em consonância com Guitinho da Xambá. Sempre de um lugar sagrado e ritualístico partem os brinquedos; sempre na família e na comunidade ele se torna fértil. Também esse é o lugar do repasse e da transmissão, num contágio intergeracional. “Não vai ser na escola nem na universidade. Longe disso”, pontua. “Cultura popular não é um curso em que você passa cinco anos, depois pega seu diplominha e vai arranjar um emprego. Está impregnado na alma, na energia da família”, reforça Beth.

Manter o brinquedo na rua, no contexto brasileiro, no entanto, acaba sendo um acúmulo de sacrifícios. A falta de reconhecimento coloca os mestres em situação de precariedade financeira e a perseguição os põe em risco. Ela mesma já foi alvejada por tiros e sofreu quatro processos judiciais por “perturbação do sossego”, fatos que credita ao desejo de desarticulação da força comunitária e emancipatória inerente à cultura popular.

Mãe Beth aponta o Estado como a instituição que historicamente mais persegue os seus. E a repressão se apresenta de diversas formas. Uma delas é a falta de políticas públicas e de valorização. A outra, a perseguição policial que, em vários momentos, esteve presente para interromper ou ameaçar a continuidade das sambadas.

A opressão institucionalizada, segundo a ialorixá, anda lado a lado com o fundamentalismo religioso, outro grande perigo para a cultura tradicional ligada às matrizes afro-indígenas. “Os mais velhos muitas vezes são cooptados e deixam de transmitir o que sabem para seus filhos e netos. Muitos quilombos, aldeias indígenas, perderam suas brincadeiras tradicionais por conta da demonização dos evangélicos”, critica.

Beth, assim como outros mestres, encara a perpetuação da tradição como uma obrigação – “Oxum e Ogum que me deram”. Por isso, enfrenta o que for preciso, tendo os orixás como protetores, ou generais, como ela chama, para manter suas raízes identitárias – e as do país – em pé. Sem dinheiro e apostando na colaboração, um formato que também é herança ancestral, ela está segura de que a juventude sabe bem o papel que tem a cultura na centralidade das lutas. “A partir do coco, a gente começou a discutir diversos valores civilizatórios sobre que cidade nós, enquanto povos de terreiro, negros, queremos”, afirma, pontuando também a responsabilidade da juventude nesse processo. “A cultura liga a ancestralidade a eles. Nessa conexão, eles dançam, cantam e tocam.”

Ialodê, filha de Beth, acompanha a mãe nessa missão desde que nasceu. Com 20 anos, tem precisamente o mesmo tempo de vida do coco de umbigada em Guadalupe. Foi justamente na “cachimbada” em comemoração ao seu nascimento, que a tradição, herdada da família do seu pai, Quinho, de Paratibe (Paulista), foi sendo retomada. Da cozinha da casa, passou para o beco e tomou todo o bairro, que se movimenta junto com o terreiro.

Ao lado dos irmãos Oxaguian e Mayra e dos vizinhos, Ialodê começou tocando no Coco de Umbigadinha, que ensaiava dentro do seu quintal. Depois de crescido, o grupo que chegou a se apresentar no palco do Festival Recbeat, em 2013, deixou de existir e hoje aguarda a chegada da nova geração. Atualmente, jovens adultos, tanto ela quanto o irmão e a irmã compõem o grupo da mãe, que se apresenta na frente de casa. Além de tocar no Guadalupe, viajam pelo Brasil e, recentemente, voltaram de um turnê na Europa, que passou pela Áustria, Suíça e Alemanha.

Em paralelo às apresentações, tudo é roda. “Todo aniversário, ou confraternização, tem que ter coco”, conta Ialodê, que não tem uma lembrança de infância em que a música não esteja presente. “Se não tiver um pandeiro, a gente tira som de livro, panela, o que tiver na frente. A gente canta e escuta coco o tempo todinho”, brinca.

A partir do coco de umbigada, a família de Quinho e Beth promove espaço de afirmação da cultura negra

Oxaguian, de 22 anos, é o filho mais velho do casal Quinho e Beth. Além do grupo familiar, também tem levado à frente a rede Abúrò Nìlé (irmão mais novo, em iorubá), sendo referência para os demais jovens da vizinhança. Ele que nos fala sobre a importância política do ritmo nos processos de autonomia. “A gente não separa festa de militância. O coco nos ensina a pensar questões políticas”, afirma, citando algumas músicas como exemplo. “Venho aqui anunciar que o coco tem ciência/ na jurema e no terreiro/ o coco traz consciência”, diz uma delas. Tá na hora do pau comer, por sua vez, faz referência ao respeito ao povo indígena, ao protagonismo dos povos de terreiro, além de pautar a participação popular na política e a democratização das mídias, assuntos recorrentes em suas vidas.

“É preto, indígena, favelado, macumbeiro. Em cima do palco ou não”, explica Oxaguian. “Dentro de casa, a gente sempre teve o estímulo de se expressar. De não nos escondermos. Quando a gente se esconde, dá margem pras pessoas agirem de forma preconceituosa com a gente. Racista, homofóbica”, comenta, dizendo que aprendeu com a mãe a sempre se posicionar.

Ainda que já estejam na universidade, ela, no curso de Nutrição, ele, no de Direito, os irmãos concordam que o coco foi sua principal escola. “Foi onde eu mais aprendi e aprendo até hoje. É de onde eu tiro a minha base pra tudo”, ressalta a coquista. “É um dos membros da família e um dos pilares da nossa educação.”, completa Oxaguian, que tem voltado sua formação para os direitos humanos, motivado pelo desejo de proteger o seu povo.

Dentre os ritmos populares, o coco é, atualmente, o mais pulsante do cenário cultural da cidade. Existe um circuito, com um ethos próprio: um público específico e um calendário descentralizado, que une toda região metropolitana, em especial, o Recife, Olinda e Camaragibe. Diferentemente de outras manifestações tradicionais, o coco conta com diversos grupos novos, com composições atuais e fortes pitadas de reinvenção formal, que se distanciam de uma mera reprodução do passado ou de um lugar estático e museificado.

Para Ialodê, a explicação está na periodicidade. Grande parte das sambadas de coco, assim como a de Guadalupe, acontece com uma frequência mensal. “A galera vem aqui, vê que acontece, acha aquilo massa, toma pra si e vai fazendo grupos novos.” O irmão, por sua vez, entende a cena do coco como parte de um processo de aquilombamento do povo preto. Um espaço de construção de outras possibilidades de ser, voltadas para o afrocentramento.

O protagonismo da juventude traz consigo também uma atualização das questões referentes aos espaços de sexualidade e gênero. O empoderamento feminino e LGBTQ+ vêm acompanhando a transformação do coco, de modo que as rodas são, cada vez mais, espaços de liberdade e afirmação para mulheres, homossexuais e travestis. “Antigamente, só dançavam pares compostos por um homem e uma mulher. Hoje em dia, isso não faz mais sentido pra gente. Se um homem também extrapolar limites com as mulheres, todos lhe chamam atenção. Tem que respeitar a memória e o trabalho dos mais velhos, mas também colocar as questões novas que vão surgindo como urgentes”, aponta Oxaguian.

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Gersino tinha somente seis anos quando viu o Boi Tira Teima na rua, no carnaval de 1935, em Caruaru. Correu atrás da burrinha, fugiu do Mateus e da Catirina e se assustou com o barulho das bexigas, na época, ainda feitas do órgão do boi. Ficou fascinado e insistiu para brincar. Dona Olindina, mesmo morando na zona rural, no Sítio Preguiça, cedeu ao desejo do filho de entrar na brincadeira, sem saber que isso mudaria todo o destino da sua família.

Desde aquele ano até sua morte, Nego Gerso nunca mais parou. Casou-se com Lindaura, teve 22 filhos e trouxe a esposa e toda a prole pra dentro do folguedo, que se tornou marca do seu sobrenome. Sob a influência de Gersino, também começaram a brincar os irmãos, cunhados, sobrinhos. No final da década de 1970, seu Zé Pintor, o dono do boi, perguntou a Gersino:

– Nego Gerso, é o seguinte: eu não tenho como dar sequência à brincadeira. Tu quer assumir o Tira-Teima?

Aí foi que ele ficou animado. Consultou os parentes, quase todos imersos no universo do folguedo, e se organizou para pagar as prestações do conjunto de adereços e indumentárias, com o seu trabalho na fábrica de algodão. Desde então, há meio século, o brinquedo é oficialmente da família.

Em Caruaru, Roberto Gersino da Silva coordena o Boi Tira-Teima, herdado do seu pai

Roberto Gersino da Silva, um dos filhos de Gersino com Lindaura, quando via seu pai botar a figura de Mateus, sentia um misto de medo com ciúme. Não gostava de dividir a atenção do pai com a Catirina, ao mesmo tempo que temia toda aquela movimentação em volta de um bicho, que morria para satisfazer os caprichos de uma mulher grávida e renascia várias vezes para não desagradar o dono da fazenda.

Cresceu o suficiente para, aos seis anos, a mesma idade que o pai, sentir o chamado inevitável para começar a brincar também. Agora, com 58, depois de já ter sido quase todos os personagens, passando de caboclo para caipora, índio e batuqueiro, é o coordenador do Tira-Teima, tendo assumindo a missão desde a morte do pai, em 2011.

“Quando a gente nasce dentro de uma atividade como essa, a gente aprende com o próprio decorrer do tempo. Você vai se envolvendo até se tornar um vício. Não tem como não aprender o sentido da coisa”, explica Roberto, narrando como foi iniciado no folguedo.

Em especial nas vésperas do Carnaval e do São João, a família toda se reúne para botar o boi na rua. São mais de 50 parentes, todos vizinhos, assumindo as mais diversas funções nos ensaios e na confecção de fantasias e instrumentos musicais. São quatro gerações da família juntas. Hoje, são os netos que correm atrás da burrinha.

Maria José, irmã de Roberto, saxofonista do Tira-Teima, não largou a brincadeira nem durante a gravidez. E não é única. “Aqui, a gente tem o costume de brincar com o bebê na barriga e, com um mês, já voltar com ele acompanhando a batucada. Eles já começam a andar dançando”, brinca. “Eu ainda me lembro de um vestidinho branco cheio de rosinhas vermelhas que minha mãe fez pra mim. Eu ainda não podia ser baiana, aí, para eu não ficar triste, ela me colocou como rainha do boi. Quando eu me cansava, me botava no colo.”

Do jeito que Lindaura fez com ela, Maria José fez com a filha. Jennifer, ainda bebê, saía pendurada no colo da mãe, vestida de estampado. Hoje, com 14 anos, a bisneta de Gersino lidera o grupo das baianas, abre-alas do brinquedo. “Claro que meus filhos vão participar. O boi é minha família. É sangue do meu sangue.”

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Para Bia, o Natal é dia de brincar cavalo-marinho. Desde que nasceu, é no terreno de sua família, na Cidade Tabajara, que, no dia 25 de dezembro, acontece o maior encontro de grupos desse folguedo. Filha mais nova de Manoel Salustiano (1945-2008), um dos mais importantes mestres da cultura popular, a menina de 15 anos convive imersivamente com a tradição que o pai trouxe da Zona da Mata, ao lado da família de artistas brincantes, que compartilham a paixão pelas expressões culturais de Pernambuco. É também herança da família o maracatu de baque solto Piaba de Ouro, criado em 1977, pelo patriarca.

Era começo da noite e a preparação tinha iniciado fazia tempo. “A gente espera o ano todo”, disse ela, com um sorriso largo. Observo Bia Salustiano brincar no Boi da Luz, cavalo-marinho composto por crianças, encenando a Capitã, personagem condutora do brinquedo. Comanda a pisada, puxando o trupé; inicia o mergulhão; lidera a dança dos arcos nas evoluções do Carvão e do São Gonçalo e recebe, de uma por uma, as figuras que entram em cena.

Bia domina aquele repertório. É como um idioma que, quando se aprende cedo, fala-se fluentemente e sem sotaque ou esforço. Coloca para fora, em palavras, os conhecimentos sobre o cavalo-marinho com a mesma precisão que encena, dança e toca:

“Se você olhar direitinho, vai perceber que a encenação toda se passa numa fazenda. É nela onde estão o cavalo, o boi, a ema, a onça. É nela também que estão os empregados Mateus e Bastião, que dão humor ao espetáculo”, explica. “Eu contrato eles, mas os dois começam a fazer tanta desordem, que tenho que chamar o Soldado da Curica”, emenda, tornando simples uma das brincadeiras mais complexas da nossa cultura.

Direciono nossa conversa, investigando os pormenores da transmissão, elemento crucial para o entendimento da participação infantil. A resposta, que pode parecer evasiva, ao contrário, vai justo no ponto: ela não lembra como aprendeu. É que, nesse processo de ensinamento, não existe separação entre o aprendizado do folguedo e a vida. Está tudo diluído e nunca se para de receber e repassar. “Eu sei que sempre vivi dentro e sempre fui doidinha pra brincar. Mas aí a gente cresce e mata toda a vontade”, rememora. Já a sensação de quando brinca, ela sabe definir com todas as letras: “A gente fica fora de si. É uma alegria imensa que dá”.

Bia, filha mais nova de Mestre Salustiano, é a capitã do Boi da Luz

Bia foi a filha que menos conviveu com o pai. Quando Mestre Salustiano morreu, ela tinha apenas cinco anos. Enquanto vivo, no entanto, o pai levava a menina para shows e sambadas, assim como fez com os demais 14 filhos. Depois que partiu, as suas responsabilidades passaram para os herdeiros, a maioria bem mais velha que Bia. “Eu procuro sempre perguntar aos meus irmãos, para aprender cada vez mais. Vai chegar um dia em que eles já não vão ter o mesmo pique. Vai ser meu pique que vai levar o cavalo-marinho e o maracatu mais à frente”, afirma.

A transição vai acontecendo de pouquinho. Capitã no Boi da Luz, Bia é também pastorinha, uma personagem mais simples, no Boi Matuto, no qual brincam os adultos. “Mais pra frente, eu posso assumir outras figuras junto aos mais velhos e deixar meu espaço para crianças mais novas ocuparem”, explica.

Pergunto o que ela acha que os jovens trazem de inovação para a brincadeira, citando algo que havia observado: durante a apresentação, uma das piadas recorrentes de Mateus era gritar “no mudo!”, para que todos gritassem de volta. Essa “tiração de onda” é típica dos shows de brega do cantor Troinha, o que remete ao diálogo entre as tradições e esse tipo de música popular contemporânea, que domina a juventude. Bia ri e confirma: “A gente traz algumas coisas atuais para agregar, mas a tradição é o que é mais importante”.

Mesmo com a pouca idade, a filha mais nova do mestre encara a divulgação da cultura popular como sua responsabilidade. Estudante da Escola Tabajara – localizada no mesmo bairro da Casa da Rabeca, espaço cultural criado pelos filhos de Salu, em 2002, e onde acontecem as festas promovidas pela família Salustiano –, ela tem proposto dividir seus saberes com os colegas e professores, alguns deles muito distantes do seu universo. Além de ter se apresentado em sala de aula, Bia Salustiano realizou o TCF (Trabalho de Conclusão do Ensino Fundamental) sobre a história do seu pai. “A gente tenta levar isso para a escola, para outras pessoas aprenderem. Não pode ficar só pra gente. Se a gente não se esforçar, a cultura vai morrer.”

Aos 13 anos de idade, Moca Salustiano, irmã mais velha de Bia e hoje com 36 anos, foi a primeira pastorinha mulher do cavalo-marinho, ao lado da irmã Betânia, 38 anos. Em um meio tradicionalmente masculino, até então, as figuras femininas eram encenadas por homens. “Se vocês querem brincar, então vamos brincar. O que é de gosto, regala o peito”, dizia o pai. E assim as meninas começaram. “Hoje, na brincadeira, o lugar da mulher é onde ela quiser”, afirma ela, ressaltando as atualizações necessárias pelas quais passa também a cultura popular.

Aos quatro anos, Moca começou a dançar no Piaba de Ouro. E, desde então, espontaneamente, fez intercâmbios com outros mestres ao lado do pai. Quando Salu reconhecia nos filhos o desejo de aprender, lembra Moca, ele tinha muita vontade de ensinar. O mais comum era sentar ao lado deles no pé do banco dos músicos, durante as apresentações, e soprar pros filhos e filhas os nomes das figuras. Quando chegavam em casa, as crianças tiravam as dúvidas. “Ninguém copiava nada, não. Era tudo ouvindo, vendo e memorizando”, conta a filha.

Depois de ouvir o pai com atenção, Moca se juntava com os irmãos e irmãs. “Íamos para um lugar mais reservado, escondido e brincávamos de brincar. Assim a gente foi crescendo e aprendendo não só a dançar e cantar, mas também a confeccionar os adereços”, afirma ela, que hoje é uma das dirigentes da Casa da Rabeca e vice-presidenta do Piaba de Ouro.

“Meu pai, pra chegar a mestre, também começou criança”, comenta Maciel Salu, explicando que o único jeito de aprender é vivenciar. Acompanhado de seu neto Gabriel, de três anos e já galante do Boi da Luz e caboclo de lança do Piaba de Ouro – prova viva da manutenção do método –, o rabequeiro afirma que é vendo a brincadeira, cotidianamente, que nasce a paixão. “Aí, vai-se conhecendo tudo: aprendendo as loas, experimentando primeiro nas figuras mais fáceis de botar. Aí, depois, escolhe se vai ser um folgazão, um rabequeiro ou figureiro.” Além de Gabriel, Maciel Salu tem três filhas (com a quarta a caminho) e mais três netos, todos inseridos na tradição familiar.

Músico profissional, com projetos autorais e cinco CDs gravados, Maciel acredita que tudo que sabe, e leva para o palco, vem de sua infância – do que aprendeu com sua família e outros mestres com quem tocou desde muito cedo, por todo território de Pernambuco. “O que vivenciei criança foi minha formação e inspiração para minhas composições”, conta. “É muito lindo observar a quantidade de jovens talentos aqui. Fico emocionado de ver nossa cultura se perpetuar.”

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Chegamos pouco antes do entardecer no distrito das Caraíbas, em Arcoverde, depois de uma viagem longa. Quando adentramos o povoado, sede de um dos poucos reisados em atividade em Pernambuco, estava todo mundo avisado de que vinha gente de fora. Jornalista, fotógrafo, reportagem. Uma gama de meninos e meninas nos esperava, apreensiva com a demora. As crianças que não estavam lá foram sendo chamadas, assim que o carro estacionou, para se juntarem ao grupo.

As crianças do reisado ensaiam ao lado da igreja matriz

A recepção foi, ao mesmo tempo, calorosa e delicada. Nós nos sentimos bem-vindos de uma maneira acolhedora. Quem conhece as cidades pequenas e as comunidades tradicionais da zona rural, como é o caso das Caraíbas, entende quando dizemos que o tempo de lá é outro. E o ritmo desacelerado se expressa no silêncio das ruas, no tom baixo e tranquilo de falar das pessoas.

Nossa anfitriã, a agricultora Laudenice da Silva Pereira, ou Nena, como é conhecida, nos apresentou aos integrantes do grupo infantil do Encanto das Caraíbas, pelo qual é responsável. São, no total, 45 crianças, divididas por idade. Os menores, de três a seis anos, somam-se aos maiores, de sete a 16, em ensaios nas segundas, quartas e sextas, no quintal da sua casa.

“A gente é conhecida por esse reisado”, diz Nena, ressaltando a importância da brincadeira na fundação da identidade daquele lugar. “Estamos trabalhando para que as crianças continuem interessadas pela tradição, que já tem quase 100 anos. Ao mesmo tempo, estamos ocupando elas, que ficavam muito soltas”, completa, ressalvando não ser esta uma tarefa fácil.

Segundo Nena, os meninos, quando chegam a uma certa idade, começam a ter vergonha de brincar. Muitos têm interesses distintos e boa parte não será mais de agricultores. Ao mesmo tempo, as limitações financeiras e uma certa dependência das apresentações institucionais têm colocado o reisado em situação de vulnerabilidade.

“O que sempre preocupa é o risco de que se torne apenas um grupo de apresentação, que atende somente às demandas da indústria cultural, abandonando a vivência comunitária”, aponta a etnomusicóloga Maria Cristina Barbosa, que desenvolve pesquisa com o grupo desde 2003. “A brincadeira tem que permanecer acontecendo para existir o desejo de ensinar e de aprender”, ressalta, indicando que o processo de transmissão não é fácil e nem sempre harmonioso, envolvendo, além de dança e música, memória, identidade, comunidade, família e religião.

Nós nos reunimos em um grande círculo, num salão de uma bodega, ao lado da igreja matriz. Na mesma roda, sentaram-se os meninos e meninas, Nena e seu parceiro de trabalho, José Bezerra, e Antônio Cruz, um dos integrantes mais antigos do Encanto das Caraíbas, tido como um mestre. À medida que falavam as crianças, percebemos a proximidade entre todas: primos, irmãos, vizinhos. E, muitos, netos dos brincantes mais antigos. Se, no geral, essa já é uma característica comum na composição dos grupos de cultura popular, nas Caraíbas, é ainda mais notória. O distrito é um pequeno território composto basicamente por três sobrenomes: Cruz, Silva e Pereira, que se combinam, dividem e multiplicam.

O Reisado Encanto das Caraíbas está inscrito no corpo daquele pequeno centro urbano que lhe dá nome. Está inscrito também na memória do ritual dos agricultores que, a cada chegada de inverno, se juntavam para festejar a colheita. Cada uma das famílias trazia o que tivesse colhido de melhor, fosse milho, jerimum, macaxeira ou feijão, e dividia. Para celebrar a comunhão e a fartura, dançava-se e cantava-se. Além disso, as origens do reisado estão fortemente ligadas à religião católica e o folguedo está presente nas celebrações natalinas e nas novenas de Nossa Senhora do Rosário e de São Sebastião. Antigamente, fazia-se em batizados, casamentos e nas celebrações que envolviam a construção das casas de taipa, muito mais raros nos dias atuais.

Érica, de 17 anos, e Letícia, de 16, são respectivamente filha e sobrinha de Nena e, além de participarem do reisado, ajudam nos ensaios com as mais novas. As meninas terminaram o Ensino Médio em 2018 e se preparam para, possivelmente, ingressar em um curso superior de Educação Física e Odontologia.

Criadas juntas, lembram-se da infância dividida, quando os ensaios do reisado aconteciam dentro da igreja e elas, com três, quatro anos, ficavam observando com curiosidade, querendo aprender. “Eu via meu avô, Antônio Cruz, e os amigos cantando lá na casa dele”, relembra Érica. “Achava a coisa mais bonita do mundo. Ainda acho”, afirma.

Évelin, filha mais nova de Nena, aos 10 anos, assume a figura da Rainha, no reisado infantil. É ela que conduz uma das filas, já com dimensão do seu papel. “É uma brincadeira, mas é sério”, afirma. “Aprendi que o Encanto da Caraíbas é tradicional da nossa cultura. Só tem aqui. É único”, completa. Não é à toa que sua mãe tem certeza de que a caçula vai levar a tradição adiante.

A conversa com Évelin segue por um caminho sensível. Com a voz já um tanto trêmula, a menina narra que, muitas vezes, em casa, coloca o CD do grupo para rodar e canta e dança ouvindo a gravação dos seus avós. “Mas toda vez que canto sozinha, eu fico triste. Eu gosto de cantar junto com outras pessoas, porque a gente se ajuda”, compartilha a menina, tomada por um choro.

Enquanto Évelin esfregava a mão nos olhos, enxugando as lágrimas, eu refletia sobre o que queriam dizer aquelas emoções, que ela mesma não conseguia nomear. Tento imaginar o que aquilo representa para ela em níveis que não consigo dimensionar: ancestrais, espirituais. Há uma espécie de encantamento, presente no nome do folguedo, que sincronicamente faz tocar o sino da igreja, marcando a chegada da noite.

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Márcio Henrique, de 14 anos, sempre gostou de observar o avô Horácio, um dos mestres da dança do reisado, hoje já falecido. Costumava assistir aos ensaios na casa de Antônio Cruz. Ao lado dos primos Rafael e Leonardo, da mesma idade, desde novos estão em contato direto com sua cultura enraizada. Em paralelo à participação no Encanto da Caraíbas, no entanto, o trio tem seu próprio projeto. Como dançarino dos passinhos do brega funk, intitulam-se Os Problemas do PS.

Pouco antes, no intervalo das entrevistas, avistara os meninos dançando o hit Barulho da Kikada, dos MCs Niago e Seltinho, o que me levou para outros lugares de reflexão, em especial, para entender atravessamentos de expressões da música popular em suas manifestações tradicionais e contemporâneas.

Victor Hugo, 13 anos, conduz a parte infantil do reisado Encanto das Caraíbas

Não era a primeira vez que me deparava com a presença do brega dentro do universo dos brincantes da cultura popular. Pelo contrário, ela é muito comum. Em 2017, por exemplo, quando acompanhei, para outra reportagem da Continente (leia na íntegra no nosso site) o encontro de caboclinhos que celebrava o seu título de patrimônio imaterial, voltei ao trajeto Goiana-Recife com o grupo Canindé. Durante todo o caminho, o som que tocava no rádio de um ônibus antigo era o brega pernambucano. É importante entender um recorte de classe, raça e geração que faz inevitável essas duas expressões de uma cultura feita por sujeitos periféricos se tocarem.

“A gente tem gravado algumas coisas, no celular mesmo. Em breve, estamos lançando nosso canal no Youtube”, informa Henrique. “A gente está dançando e escutando o passinho todo tempo. Na escola, na praça, na rua”, completa Leonardo.

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“Oh de casa, oh de fora/ Maria vai ver quem é/ são os cantadores de reis/ quem mandou foi São José”, iniciou Évelin, cantando, com os olhos fechados, a música mais popular do seu grupo, ao lado das colegas.

Antônio Cruz aproveitou a reunião das crianças para ensinar mais um pouco do que sabia, depois de mais de 70 anos de experiência na cantoria. Chamou o irmão, Paulo, e repetiu a toada, deixando todo mundo boquiaberto com a afinação e a harmonia. Para Antônio, a maior preocupação atual é como garantir uma formação musical, já que o coro e a viola do reisado são uma de suas características mais marcantes.

Desfeito o círculo, as crianças se ofereceram para se apresentar para a gente. Ao lado da igreja, a mesma que serve como indumentária para as apresentações (o mestre do reisado leva uma igreja na cabeça), as crianças dançaram seu valsado. Debaixo da luz amarela do poste, Évelin, Letícia, Érica, Rafael, Leonardo e Márcio Henrique se dividiam nas filas de meninos e meninas. Pulavam e se entrecruzavam, mostrando o que têm aprendido com Antônio Cruz e Nena, que, ali de perto, observava com orgulho.

Extra:
Leia conteúdo sobre a transmissão de saberes no povo Xukuru

CHICO LUDERMIR, jornalista, escritor e artista visual, é mestre em Sociologia.
RENNAN PEIXE, fotógrafo, professor e artista visual.

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