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Vinte anos do clássico 'Afrociberdelia'

Segundo álbum de Chico Science & Nação Zumbi, lançado em 1996, é um marco na história do Manguebeat e também de Chico, que viria a falecer menos de um anos depois

TEXTO Débora Nascimento

01 de Março de 2016

A essa altura, o manguebeat já era um fenômeno internacional

A essa altura, o manguebeat já era um fenômeno internacional

Foto Fred Jordão

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 183 | março 2016]

Em outubro de 2007, a Rolling Stone publicou
a lista dos 100 maiores discos da música brasileira. No ranking, escolhido por 60 profissionais, entre pesquisadores, produtores e jornalistas, a Nação Zumbi aparece com seus dois títulos sob a liderança de Chico Science: Da lama ao caos (1994), em 13º, e Afrociberdelia (1996), em 18º. Para ilustrar a importância dessas posições, basta dizer que ficaram à frente de quatro clássicos do rock nacional lançados em 1986, Cabeça Dinossauro, dos Titãs, Selvagem?, dos Paralamas, Dois, do Legião Urbana, e Vivendo e não aprendendo, do Ira!.

Alguns dos 10 primeiros colocados dessa lista evidenciam a linha evolutiva que pavimentara o caminho da música brasileira até o advento da CSNZ. Obras revolucionárias de outros nordestinos presentes nesse ranking, como Caetano e Gil (Tropicália, em 2º), João Gilberto (Chega de Saudade, em 4º) e Raul Seixas (Krig-ha Bandolo!, em 12º), foram pioneiras na mistura de ritmos, recurso que se tornou símbolo da Chico Science & Nação Zumbi naquele início de carreira.

Embora listas costumem provocar polêmicas, Da lama ao caos e Afrociberdelia estavam no topo da melhor safra musical brasileira dos anos 1990 e romperam com a estagnação do insípido mercado pernambucano de música. Inspiradores, os álbuns foram marcos de uma reformulação cultural, principalmente no Recife, e da imagem que a cidade tinha de si. Bandas começaram a surgir, a se transformar ou simplesmente a retornar suas atividades.


Capa do disco, assinada por H.D. Mabuse. Foto: Reprodução

Foi, na realidade, uma retomada do elo que se perdeu em 1974, quando a Ave Sangria, que encabeçava o cenário alternativo recifense, findou, devido à censura de seu primeiro disco, lançado pela Continental – somente no início dos anos 1990 gravadoras do Sudeste voltariam a se interessar em assinar contrato com uma banda pernambucana. Esse fim precoce surtiu um efeito negativo no ambiente musical dos anos seguintes. Apenas Alceu Valença conseguiria sobressair-se ao difícil contexto, reunindo os músicos que ladeavam Marco Polo Guimarães e indo fazer carreira no Rio.

A música do Recife e de Olinda passou a viver de bicos, enquanto a do interior do estado mantinha com resistência a tradição da cultura popular. Quando Chico Science & Nação Zumbi despontou, todos que, de alguma forma, trabalhavam com música começaram a se aglutinar, formando a cadeia produtiva que ainda hoje se mantém, mesmo sob muito esforço. Por isso a chegada de Da lama aos caos foi mais que bem-vinda, além de seus próprios atributos musicais – estavam ali os hits iniciais do movimento, o discurso, o estilo, o comportamento, a realidade e os sonhos de uma geração.

Com produção de Liminha (baixista que integrou a melhor banda do rock nacional, Mutantes), o álbum sofreu do mesmo mal que o único de estúdio da Ave Sangria, produzido por Márcio Antonucci (ex-integrante da dupla Os Vips): não transmitiu para as gravações o peso exibido nos shows. Mas, até a pasteurização da gravação, que retirou boa parte da força das alfaias, não afetou a receptividade e representatividade do disco.


Chico, Eysemberg Silva, Paulo André Pires e Gilmar Bolla 8 em Paris, 1995. Foto: Acervo pessoal Paulo André Pires/Cortesia

Dois anos depois, chegou ao mundo seu sucessor, Afrociberdelia – menos coeso que o primeiro, mas superior em termos de produção musical e arranjos. Era um disco com qualidade técnica e artística para equiparar-se aos melhores lançamentos internacionais do ano, como Odelay (Beck), The score (Fugees) e New adventures em hi-fi (R.E.M.). No álbum, Chico Science continuava a expor seu talento para captar e explorar influências e estilos, e escrever letras bem estruturadas, diretas, fortes, incisivas, como as extraordinárias Manguetown e Cidadão do mundo.

Em Afrociberdelia, o grupo investiu mais na criação coletiva, expandiu sua sonoridade, inseriu um novo e importante instrumento, a bateria (a cargo de Pupillo), acrescentou aos arranjos outros reforços, como naipe de metais, flautas, teclados e colagens de samples. Tudo isso sob a orquestração de Eduardo BiD, produtor estreante que soube traduzir no registro o peso e o groove característicos das arrebatadoras apresentações da banda e, devido à repercussão do álbum, passou a receber mais convites para produzir discos dentro e fora do país.

Afrociberdelia, que agora completa 20 anos, foi tanto a confirmação da energia criadora e agregadora de Chico Science, quanto a chave para o futuro que a Nação Zumbi conseguiria ter. Mesmo sem seu inesquecível artífice. 

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente.

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