Arquivo

Matriz sonora: Eles ouviam de tudo, menos MPB

Amigos lembram as músicas e os gêneros que eram ouvidos e compartilhados pelos mangueboys numa era pré-internet

TEXTO Bruno Nogueira

01 de Março de 2016

Imagem Arte sobre fotos de divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 183 | março 2016]

Chico Science era um cara que gostava de compartilhar, apresentar e trocar música com os amigos. Parece a descrição de um típico jovem de tempos do Napster ou mesmo do Spotify, tecnologias que o músico nunca chegou a conhecer, mas que certamente teriam elevado sua vocação criativa à máxima potência. Revisitar os encontros com Chico é sempre revisitar uma memória musical.

“Do Neubaten até a descoberta de que Jorge Ben não era só um cara que tocava na rádio, de Coltrane à emergente acid house, dos clássicos do punk aos discos da Tommy Boy, ouvíamos de tudo. Menos MPB. Chico me apresentou a um monte de coisa de hip-hop, tipo Kurtis Blow (Basketball era um hit do apartamento de Chico), e acho que cheguei com música africana e jazz, que eram coisas a que as pessoas não tinham muito acesso aqui, no Brasil e no Recife”, lembra DJ Dolores.

“Chico ia pintar miséria com a internet”, diz, sorrindo, o antigo colega de apartamento, H.d. Mabuse. Du Peixe não apenas concorda, como reforça, “Não se ouve mais música como se ouvia 20 anos atrás”. Ele lembra que, junto com Chico, descobriu o drum and bass e o jungle: “A gente gostava do que ouvia e usava muito nas músicas. A gente tinha uma ideia de fazer frevo com drum and bass”. O parceiro de banda conta que cada disco que compra bota sempre para ouvir no volume máximo. “Sei que ele vai estar ouvindo em algum lugar.”

Em 1995, na primeira turnê que Chico Science & Nação Zumbi fizeram na Europa, estiveram na programação do Sfinks Festival e de Les Rencontres Trans Musicales, de Rennes, em Paris. “Dividimos o palco naquele ano com Chemical Brothers, Morcheeba e Massive Attack. E entramos na coletânea em CD do festival”, lembra o produtor Paulo André, sobre o festival francês. “Acho que o drum and bass é um caminho pelo qual Chico teria enveredado”, conta Renato L, “com certeza iria para um lado mais eletrônico”.

Se, por um lado, a ideia de “música de Pernambuco” parece seguir uma delimitação estética que soa mais regional do que em diálogo aberto com tudo que passa, os contemporâneos de Chico Science demonstram que ainda é forte essa busca por novos sons. Referências que possam ser sampleadas, remixadas, transformadas e incorporadas pela batida local. “De orquestras egípcias e latinas, ao rumo que a eletrônica tomou na música popular, o tempo todo me deparo com coisas que Chico gostaria de ouvir”, conta DJ Dolores.

“Comprei recentemente uma leva de 80 vinis de frevo”, conta Jorge Du Peixe, ao enumerar as descobertas musicais que gostaria de compartilhar com Chico. “Eu sinto falta disso, de chamar os amigos para ouvir música, escutar bem alto, ler o encarte, conversar sobre o disco”, conta o vocalista da Nação Zumbi. O garimpo de Du Peixe, em algum momento, se encontraria com o garimpo que Mabuse gostaria de ter apresentado, “um catálogo de uma gravadora de world music, que, entre os registros, tem os barulhos de táxis em diferentes cidades”.

A típica futurologia na linha do “como seria, se” não passa de um esforço ingrato nesses casos. No entanto, é difícil não ceder à curiosidade sobre o rumo que o manguebeat teria tomado, se a presença de Chico Science ainda fosse uma realidade e, principalmente, da noção de “música de Pernambuco” que ajudou a cristalizar. As referências externas estão presentes nas histórias de amigos e não é pela ausência de Chico que elas não incorporam novas produções musicais.

A partir do momento em que a criação ganha uma dimensão maior do que seus criadores, falar em “música de Pernambuco” se torna um exercício que deveria acionar esse compartilhamento coletivo de referências. É de se questionar, por exemplo, o quanto do rap e do hip-hop – que eram tão próximos à gênese do manguebeat – passam longe do recorte de música local que aparece em programações musicais públicas e privadas de rádios, shows e imprensa em geral. É de se questionar até mesmo o quanto o próprio Chico Science conseguiria se enquadrar na dimensão atual dada ao recorte quase político de um gênero musical. 

BRUNO NOGUEIRA, jornalista com pós-doutorado em Comunicação Social, professor do Depto. de Comunicação da UFPE.

Leia também:
Vinte anos do clássico Afrociberdelia

veja também

Hotel Central do Recife passará por reforma

“Diabolin e o Círculo de Fogo” faz turnê pernambucana

O cromático em Martinho Patrício