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Traição & política

Sociedades e sua História são formadas pelo antagonismo entre heróis e rebeldes, mártires e traidores. Muitas vezes, rupturas necessárias para instaurar novos tempos são vistas como ato desleal

TEXTO Luciana Veras

01 de Agosto de 2015

'Morte de Júlio César', por Vicenzo Camuccini, 1798

'Morte de Júlio César', por Vicenzo Camuccini, 1798

Imagem Reprodução

Quem é mais conhecido no Brasil de hoje: o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, ou Joaquim Silvério dos Reis, personagens principais da Inconfidência Mineira, conspiração engendrada contra Portugal no século 18? Em Pernambuco, quem é mais lembrado por seus feitos durante as batalhas contra os invasores holandeses nos anos 1630: Domingos Fernandes Calabar ou Matias de Albuquerque? Na memória ocidental, a quem é atribuída maior importância para Roma: Júlio César ou Brutus? Foi Stalin que rompeu com os ideais revolucionários ou Trotski que errou ao se opor ao líder do partido? Mártires e traidores caminham juntos na escrita da História. Sociedades se constituem, também, desse antagonismo entre heróis e rebeldes e as rupturas necessárias para instaurar novos tempos irrompem, por vezes, sob o signo da traição.

É essa palavra de etimologia latina que aproxima Calabar, Silvério dos Reis e Brutus do australiano Julian Assange e do norte-americano Edward Snowden. Entre todos eles descerra-se o manto da traição política. Na era contemporânea, Assange e Snowden simbolizam a dicotomia entre o heroísmo dos seus feitos e a fama de traidores. O primeiro, escritor e jornalista, é fundador e porta-voz do WikiLeaks, organização que divulga documentos reveladores, entre outros aspectos, de atrocidades cometidas ou erros que alguns países tentaram apagar. O segundo trabalhou para a NSA e para a CIA e de lá expôs um programa de monitoramento chamado PRISM, usado pelo governo americano para vigiar eletronicamente centenas de milhares de dados que circulam na internet, em tese sob absoluta privacidade.

Em 2013, em reportagens publicadas nos jornais Washington Post e The Guardian, Snowden detalhou como o governo praticava espionagem diária contra os cidadãos, apropriando-se de informações obtidas ilegalmente em ligações telefônicas, mensagens de texto e troca de e-mails. Foi acusado de espionagem, roubo e transferência de propriedade do governo, comunicação não autorizada de defesa nacional e comunicação intencional de informações secretas. Nesses dois anos, virou personagem do documentário Citizenfour, de Laura Poitras, e esteio para a ficção Snowden, de Oliver Stone, que estreia em dezembro. Atualmente, está exilado em Moscou. Assange, por sua vez, permanece no mesmo local onde está asilado há três anos: a embaixada do Equador em Londres.


O intelectual Trótski, criador do Exército Vermelho, rompeu com Stalin. Foto: Reprodução

DISSIDÊNCIA
Ambiguidade é verbete crucial para se entender o século 21, nas relações internacionais, na diplomacia e nas questões da macropolítica. “Falamos em traição política, sobretudo, em sociedades pré-modernas, oligárquicas e arcaicas. Em sociedades modernas, com mudanças conceituais engendradas por uma transformação histórica, econômica e científica, as rupturas no domínio político são e devem ser reconhecidas como legítimas. Não cabe traição, mas dissidência. Assim, a característica mais próxima do que se concebe, arcaicamente, como ‘traição política’, é a de dissidência. O dissidente é alguém que rompeu um pacto de confiança política organizador de alguma estrutura representativa”, observa a filósofa pernambucana Katarina Peixoto, mestra e doutora em Filosofia pela UFRGS.

Ela prossegue na conceituação: “O requisito fundamental para uma traição é um laço afetivo de natureza privada; para uma dissidência política, é o reconhecimento das prerrogativas legais de um sujeito de direitos individuais, portador de uma consciência racional e livre, capaz de determinar-se segundo a lei. Não sei se Snowden e Assange são exatamente dissidentes políticos, mas sei que são personalidades políticas autoconscientes de suas prerrogativas como portadores de direitos individuais, exigíveis e legítimos. É com base nessas prerrogativas que eles se autorizaram a obedecer às suas consciências, em ambos os casos, trazendo à tona ordens políticas vigorosas que funcionam ilegalmente”.


Na Revolta da Armada, a Marinha do Brasil se voltou se voltou contra o então presidente Floriano Peixoto, em 1892. Imagem: gentilmente cedida pelo Department of Special Collections da Biblioteca Charles E. Young da UCLA

Ainda no campo da política, Leon Trotski (1879-1940) é figura-chave quando se confronta essa temática. Sua oposição ao absolutismo de Joseph Stalin (1878-1953) no desenrolar da Revolução Russa de 1917 é cotejada, com frequência, à contraposição de Georges Danton (1759-1794) a Maximilien Robespierre (1758-1794), cujos encaminhamentos pós-Revolução Francesa de 1789 não tardaram a colidir. Em ambos os casos, eram lideranças de uma mesma rebelião que se apartaram ao tomar caminhos distintos, recebendo, no processo, a acusação de traidores.

Sobre Danton versus Robespierre, assim escreveu o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) em A era das revoluções 1789-1848, publicado em 1962: “Os defensores mais moderados da Revolução estavam alarmados com o ataque contra a oposição direitista, a esta altura encabeçada por Danton. Esta facção tinha fornecido refúgio para numerosos escroques, especuladores, operadores do mercado negro e outros elementos corruptos embora acumuladores de capital, e isso tão mais prontamente quanto o próprio Danton incorporava a imagem do livre amante e gastador amoral, falstafiano, que sempre surge no início das revoluções sociais até que seja suplantado pelo rígido puritanismo que invariavelmente vem dominá-lo. Os Dantons da história são sempre derrotados pelos Robespierres (ou por aqueles que fingem se portar como Robespierres)”.

A respeito de Trotski, Katarina Peixoto ressalta a capacidade de antevisão. “Intelectual brilhante e criador do Exército Vermelho, ele enxergou o perigo que a promessa da revolução continha e rompeu com o autoritarismo da estrutura de poder, que esmagaria a legitimidade moral e histórica do projeto, se assim posso dizer, bolchevique”, comenta. Nesse sentido, dele se aproxima um outro “dissidente gigante” na sua opinião, o jornalista e historiador israelense Amos Elon (1926-2009). “Ele foi o maior etnólogo das primeiras gerações de sionistas que fundaram Israel. Foi o primeiro, quase sozinho, a dizer, nos dias imediatamente posteriores à ocupação dos territórios apropriados em 1967, que era errado fazer isso. Quando uma orgia nacionalista tomou conta de Israel, escreveu uma coluna dizendo que os palestinos estavam pagando, injustamente, por pogroms na Ucrânia e por câmaras de gás em Auschwitz”.


Julian Assange é fundador e porta-voz do WikiLeaks, organização que divulga documentos reveladores. Foto: Divulgação

Na sua área de atuação e estudos, ela cita as figuras de Baruch Spinoza (1632-1677) e Bertrand Russell (1872-1970) como fundamentais no “tema fecundo e imenso” na Filosofia. “Dos grandes dissidentes, o que me comove mais é Spinoza, entre os filósofos modernos, e Russell, entre os contemporâneos. Spinoza foi o grande dissidente ao tratar o sagrado como produto do intelecto humano e, assim, abrir o caminho para a defesa da liberdade do pensamento, da ciência e da vida política numa ordem de tolerância. O preço que pagou, socialmente, foi altíssimo. Após a redação de Ética: o tratado teológico-político, foi excomungado e tampouco tinha espaço na universidade, pois, como não bastasse, era um militante do partido republicano. Já Russell rompeu com o idealismo que dominava o ambiente acadêmico e, quase como um Calabar, com as origens de classe e seus privilégios estamentais para escolher uma vida intelectualmente engajada, tanto no conhecimento como na luta pela paz e pela emancipação dos mais frágeis”, situa a filósofa.

DO COSMO AO CAOS
No âmbito da literatura, a traição política evidencia-se nas tragédias de William Shakespeare (1564-1616), não apenas em Júlio César, datada de 1599, mas também na tríade Hamlet, Macbeth Rei Lear, escritas entre 1599 e 1607. “A traição é paralela ou análoga à dinâmica de uma tragédia. É a interrupção de um laço que faz com que o sujeito ou a comunidade passe do cosmo, que é a organização suprema, ao caos, que é a desorganização. A traição política é um exemplo disso e me interessa porque há esse aspecto coletivo, quando alguém ou um grupo é responsável pela passagem do cosmo ao caos”, analisa o escritor pernambucano José Luiz Passos, professor de Literatura Luso-Brasileira na Universidade da Califórnia.


Edward Snowden trabalhou para a CIA e para a NSA e expôs ao mundo um programa de espoionagem utilizado pelos EUA. Foto: Divulgação

Ele é autor do conto Marinheiro só, publicado no Brasil pela Alfaguara na versão nacional daGranta. Com uma dicção diferente da apresentada nos romances Nosso grão mais fino (2009) e O sonâmbulo amador (2012), o texto revisita a história de Silvino de Macedo, um marinheiro nascido em Goiana que participa, no Rio de Janeiro, da Revolta da Armada, quando a Marinha do Brasil se volta contra o então presidente Floriano Peixoto nos idos de 1892. No desenrolar dos acontecimentos, ele é ferido, dispensado das Forças Armadas e mandado de volta para Pernambuco; tempos depois, na surdina, é fuzilado a mando de Floriano.

Dos aspectos ficcionais que acrescentou aos registros históricos existentes sobre Silvino e das pesquisas sobre essa turbulenta época vivida pela nova república do Brasil, o escritor cinzelou uma narrativa que sobrepõe várias traições. “Quando Deodoro da Fonseca renuncia, será que ele mesmo não trai a Constituição? Quando a Marinha brasileira se levanta contra Floriano, não estaria traindo a presidência e o país? Quando se recolhem os vários almirantes da Revolta da Armada, não é uma traição à defesa da democracia? Quando os monarquistas pedem o auxílio de Portugal e Inglaterra para ver se era uma tentativa de restauração monárquica, não é uma traição ao espírito popular que havia instituído uma república?”, enumera Passos.

Os diversos ardis de Marinheiro só espelham a complexidade inerente a uma palavra – traição – e à conduta a ela associada. José Luiz Passos atenta para o mito mexicano de Malinche, a índia que acompanha o explorador Cortés e trai seu próprio povo ao se associar aos espanhóis. “Existe uma expressão mexicana chamada ‘malinchismo’, que é usada quando alguém vira traidor dos seus. Mas esse é um processo nada simples, pois é a traição dela que permite que a mexicanidade seja fundada. O México é criado a partir de uma traição política, no momento em que se permite que haja um choque e que uma parte domine a outra. Quando nasce, não é espanhol, nem índio. O Brasil tem um pouco disso em Iracema, de José de Alencar. Ela deixa a sua tribo, trai o pai e o irmão, casa-se com um soldado português e tem um filho chamado Moacir, cujo nome quer dizer ‘filho da minha dor’. Ela é a nossa Malinche, a permitir a fundação da nação brasileira a partir de uma traição de natureza política”, encerra o escritor. 

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