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Barroco: A herança no interior da nave

Situada no centro do Recife, a Igreja da Nossa Senhora da Conceição dos Militares sintetiza elementos fundamentais do estilo arquitetônico tão bem assimilado no Brasil

TEXTO JOSIAS TEÓFILO
FOTOS PEDRO VALADARES

01 de Maio de 2015

Imagem de Nossa Senhora da Conceição no teto da igreja

Imagem de Nossa Senhora da Conceição no teto da igreja

Foto Pedro Valadares

O traçado urbano do Bairro de Santo Antônio, no centro do Recife, é marcado por igrejas históricas. Elas têm lugar privilegiado e se destacam na paisagem, não obstante a perda dos pátios do Carmo e do Livramento, destruídos para o alargamento das vias e o acolhimento das construções cuja altura tirou a primazia das torres de igrejas. No entanto, é ainda patente como os templos católicos definem o traçado do bairro e o seu caráter pictórico.

Uma igreja, porém, parece se esconder dos olhares em vez de se mostrar. Localizada na Rua Nova – famosa pela lenda que inspirou o romance de Carneiro Vilela, A emparedada da Rua Nova –, ela está ladeada por dois prédios comerciais e segue o alinhamento da rua, construída posteriormente. O frontão e a torre da igreja, construídos no século 19, só podem ser apreciados se o pedestre se colocar em frente à construção. Nessa situação tão pouco privilegiada está “uma das obras mais líricas que a arte barroca produziu”, nas palavras do historiador da arte francês Germain Bazin, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares. Curador do Museu do Louvre entre 1951 e 1968, Bazin foi um dos autores que mais se dedicaram à arquitetura barroca brasileira e o grande divulgador da obra de Aleijadinho no mundo.


Exterior da edificação foi concluído no século 19, agregando estilos construtivos

É sua, aliás, uma das mais esclarecedoras definições da arte barroca: “O barroco é uma miragem, ele procede essencialmente por acúmulo, isso acontece porque lhe é preciso criar uma cortina de formas e imagens que intercepte o mundo real. O amor às grandes criações da época barroca exige uma certa condescendência da imaginação, que o homem de então possuía, estando sempre pronto a responder às solicitações da história, da mitologia, da hagiografia ou da fábula”. Bazin, ao escrever essas palavras, se dirigia ao público francês, pouco familiarizado com o Barroco. O brasileiro, no entanto, tem mais intimidade com o estilo que é, segundo Afonso Romano de Sant’Anna, a alma do Brasil.

As obras barrocas – a Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares em especial – ilustram o que escreveu o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho sobre a essência da arquitetura. Para o autor de A imagem autônoma, a essência da arquitetura não está no exterior, mas no interior: teto e paredes. Assim, o que se vê da rua pertence à arte da escultura – para ele, a mais numerosa das artes, pois incorpora todos os prédios e habitações – e a autonomia da arquitetura se manifesta nos vazios interiores. São as Esculturas vazias, título do texto em que Evaldo Coutinho expõe essas ideias, publicado na modesta revista do departamento de Filosofia da UFPE, em 1995. Diz ele no texto: “A esculturalidade do prédio é apenas o invólucro de algo que, este, sim, ostente a matéria legitimamente exclusiva da arquitetura, a que lhe imprime o caráter de gênero artístico”.


É desconhecida a autoria do precioso trabalho de entalhe da igreja

Pensando assim, a localização desprivilegiada da Igreja da Conceição dos Militares não interfere em nada na sua essência arquitetônica. É no interior que está a talha barroca pintada de branco e dourado, com pinturas alegóricas da Imaculada Conceição de Maria, brilhantemente descrita por José Luiz Mota Menezes no seu livro Dois monumentos do Recife. Nele, o arquiteto demonstra a maestria – propriamente barroca – com que se equilibrou a talha, elemento real, e a pintura, elemento ilusionista ou irreal, na composição do interior da igreja.

“Na Conceição dos Militares, nisto residindo a sua notável qualidade, o mestre da talha substitui o pintor, deixando a este apenas a tarefa da pintura das cenas, e realizando, em talha, balaustrada e molduras. Infelizmente se desconhece o autor do risco deste conjunto entalhado, tampouco se sabe quais os entalhadores o executaram; entretanto, posso assegurar, eram todos excepcionais mestres da sua profissão, haja vista o resultado obtido, talvez único no gênero.” Germain Bazin, por sua vez, refere-se à Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares como uma obra única, e acrescenta que Portugal não ofereceu nada que se aproxime. Mas o impressionante é a comparação que ele faz entre o teto do templo recifense e a obra de Michelangelo. “O teto da Conceição dos Militares é a Capela Sistina do rococó. (Ele) é a apoteose da talha, a expressão suprema desse estranho gênio lusitano que de bom grado se entrega aos paroxismos da expressão para descobrir a arte de resolvê-los em harmonia”, escreve Bazin, no seu livro Arquitetura barroca no Brasil.


O brasão imperial se destaca na parede que antecede o nicho do altar

HISTÓRIA E RESTAURAÇÃO
Foram os militares que solicitaram a criação da Irmandade que leva seu nome e da igreja sob invocação de Nossa Senhora da Conceição, inclusive pedindo para isso ajuda ao rei de Portugal. As obras foram concluídas em 1771, mas o acabamento interior só ficou pronto 100 anos depois – várias gerações, então, contribuíram para a construção que vemos hoje e que parece tão harmonicamente concebida. A igreja possui uma só nave e corredores laterais aos quais se pode ter acesso através de cinco portas.

Logo na entrada, chama a atenção o forro pintado do coro que retrata a Primeira Batalha dos Montes dos Guararapes, realizada em 1781. No painel se lê o seguinte escrito (originalmente em caixa alta, com uma grafia que hoje nos causa estranhamento): “Victoria alcançada pelos portugueses na primeira batalha dos montes Guararapes em 19 de abril de 1648, contra os hollandezes, que contavam 10:500 homens, e nossos 2:500 com índios e henriques, entre as mais batalhas honrosas que tiveram 7 annos continuos, libertaram toda esta capitania da tirania dos bárbaros hollandezes, e a ofereceram como fies vassalos ao nosso augusto e soberano rei”.

Não são as pinturas que mais chamam a atenção no interior do templo, mas a talha, os altares decorados com precisão, o brasão imperial. No livro supracitado, José Luiz Mota Menezes se pergunta: “Seria o ‘horror ao vazio’, legado mouro e caráter de sua decorativa, que teria marcado sensivelmente a nação lusa?”. Esse horror ao vazio pode ser claramente notado no interior da Conceição dos Militares, e não é completo pela falta de um elemento: o silhar de azulejos que existiu nas paredes laterais.

No entanto, é a partir dos vazios que resultaram da composição arquitetônica da igreja que José Luiz Mota Menezes chega a uma constatação elevante, transcrita aqui do seu livro: “A luz, penetrando pelos corredores e antessalas, rasga violentamente esses locais, mas é filtrada suavemente pelas portas e tribunas, modelando com suavidade os ornatos da talha, sem sombras bruscas e dramáticas. O arquiteto da Igreja dos Militares domina a luz tropical e somente envia aos interiores da nave e capela-mor aquela luminosidade necessária à vida das formas”.

Há cinco anos em reforma, a igreja foi fechada recentemente e deverá receber 11 milhões do PAC Cidades Históricas para um amplo restauro, incluindo bens móveis integrados, instalações elétricas e hidráulicas e implantação de acessibilidade nos banheiros.

Tal apuro com a iluminação, referido por Mota menezes, não se deve somente a cuidados estéticos, mas à necessidade mágico-religiosa própria da liturgia. Nós, indivíduos contemporâneos, estamos distantes do significado profundo da ritualística tradicional. Mesmo a Igreja Católica alterou significativamente a liturgia tradicional com o Concílio Vaticano II que, em 1969, sob o papado de Paulo VI, reviu o rito da missa, diminuindo o tempo da cerimônia e traduzindo para as línguas locais o que antes era inteiramente falado em latim.

A nova missa substituiu a antiga – existente desde 1570 –, para descontentamento dos católicos tradicionalistas. Mas, em 2007, o Papa Bento XVI promulgou o Summorum Pontificum, com o qual libera o uso da missa tradicional, chamada de tridentina, bastando somente ser solicitada por um grupo estável de fiéis.

No Recife, esse grupo estável e afeito ao rito tradicional tem a sua missa originalmente na Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, aos domingos, às 10h. Com a reforma da igreja, as missas estão acontecendo na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, também na Boa Vista. Com o fim das obras, a liturgia tridentina voltará a ser realizada na Igreja da Conceição dos Militares. Os frequentadores são, em sua maioria, jovens e mulheres, que costumam usar um véu encobrindo os cabelos. Um grupo no Facebook, chamado Missa Tridentina no Recife, foi criado para responder a perguntas dos simpatizantes e informar eventuais mudanças de horário e outros detalhes. Na liturgia tridentina é possível sentir-se mais próximo da ritualística, que durante séculos foi realizada naquele espaço arquitetônico e, mais do que isso, pertence à sua essência originária. Pois, como diz o filósofo Evaldo Coutinho: “Na arquitetura, com o seio franqueado a muitas revelações, uma se sobressai em artisticidade: a de propiciar aos desfiles do tempo as oportunidades em que ele consente minorar ou interromper a marcha dos perdimentos”. 

JOSIAS TEÓFILO, jornalista, mestre em Filosofia pela UnB e autor do livro O cinema sonhado.

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