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Música: A perda da centralidade

Músicos reunidos nesta 'Conversa' apontam a retração do interesse das novas gerações pela música, que deixa de ser o elemento principal da criação de identidade de grupos

TEXTO Revista Continente

01 de Maio de 2015

Foto Alcione Ferreira

Pela terceira vez este ano, trazemos a Conversa, série de encontros que a Continente promove em comemoração aos seus 15 anos. Na proposta, convidamos realizadores de seis setores culturais para discutirem temas que consideram prementes nas suas áreas de atuação. Nesta edição, entre profissionais da cadeia da música se evidenciou a discussão sobre o mercado. Um das questões abordadas foi a concentração de shows nos ciclos festivos do calendário anual – o Carnaval, sobretudo –, enquanto, no restante do ano, são poucas as opções de apresentações. Parte desta Conversa, realizada no Paço do Frevo, está nas páginas que se seguem, com versões para o site da revista e para o canal da Continente no YouTube.

DÉBORA NASCIMENTO O mercado para a música melhorou ou foram as dificuldades que mudaram?

ISAAR FRANÇA A gente melhorou a cadeia. Lembro que quando comecei, às vezes, vinha som de fora, não tinha técnico, não tinha roadie, não tinha um monte de profissionais. A questão se profissionalizou, realmente, mas muita coisa ainda é atrelada ao poder público. Isso é complicado, porque fica todo mundo refém, inclusive o poder público fica refém dos artistas. Isso eu falo em relação às grandes festas, aos shows. Hoje melhorou por quê? Porque eu vim de uma banda que surgiu de um movimento, que na época muita gente de fora vinha pra ver, e que hoje se mantém na música. Claro que todo mundo tem suas dificuldades, tem um momento que precisa fazer um bico ali. Mas, mesmo com tudo isso que aconteceu nesses 20 anos na cidade, a gente não conseguiu que as pessoas conhecessem os seus artistas, nem fazer cultura para pessoas e não somente para artistas. Esse é um diálogo que ainda não bateu nos meios de comunicação, principalmente rádio e TV.

DÉBORA NASCIMENTO Então, você acha que o entrave está na divulgação nos meios de comunicação?

ISAAR FRANÇA É. Eu acho que se tivesse mais acesso…Você vê, hoje estávamos falando de uma classe média que lota shows da Nação Zumbi, de Otto, Eddie, mas não é um público que está mais experimentando. Ele fica ali no que já sabe, que já está na mídia nacional. Ir para um show de Nação Zumbi é a mesma coisa de ir para um de Pitty ou Tulipa Ruiz. É um pessoal que está na crista da onda. Falta um público mais curioso, de pagar para experimentar outra banda.

JEDER JANOTTI Falta equipamento cultural também. Acho que, no Recife, falta espaço de pequeno porte. A gente não tem infraestrutura para isso, não tem uma cultura. Me chama muito a atenção não ter uma cultura de casas de pequeno porte, com público fixo, independentemente de quem está tocando. Isso dificulta muito.


O Carnaval em Pernambuco reúne artistas de diversos estilos. Foto: Divulgação

JARMESON DE LIMA O Recife sempre sofreu muito com essa coisa de lugar pra tocar, porque sempre foi oito ou oitenta. Ou é o Pavilhão do Centro de Convenções ou é uma casa que é improvisada, que não tem palco, com tudo no chão, para 50 ou 100 pessoas. Você vai a cidades como São Paulo, onde até mesmo esses pequenos lugares, que são para 50 ou 100 pessoas, têm um palco mínimo, têm um som que é da casa, que a pessoa toca lá normalmente, sem gastar mais e esperar a bilheteria. Hoje em dia, todo mundo aqui na cidade corre atrás do prejuízo literalmente, porque já começa a fazer show perdendo de 2 x 0, porque tem o som pra alugar e montar e ainda tem que pagar os custos da casa, porque nem todas têm a boa disposição ou a predisposição de dizer “Tudo bem, a gente vai fazer uma programação autoral aqui, regular”.

ANDRÉ FREITAS Isso é um problema que foi construído nos últimos 15 anos, na minha análise. Já vou com 28 anos de carreira, quase 30. Nos anos 1990, a gente tocava de quarta a domingo, e tinha mercado. Nessa equação de que se fala, está faltando público. No começo dos anos 2000, com o processo de descentralização do Carnaval, o que melhorou o mercado é que toda essa cadeia produtiva foi estruturada. As companhias de som, de iluminação, que trabalhavam na informalidade, se registraram na junta comercial, assinaram carteira, garantiram direitos trabalhistas e, hoje, o resultado prático disso é que a gente tem excelência no atendimento de uma área que era muito carente. Como Isaar falou, vinha de fora até a sonorização. O efeito perverso disso, depois de 15 anos, é que virou tão grande esse calendário gratuito de festas na rua, que o nosso produto teve o valor diluído. Fora a falta dos equipamentos, porque os teatros estão fechados – principalmente os públicos, e até o particular, porque o Valdemar de Oliveira está interditado. Então, a gente está obrigado a uma dependência exclusiva das leis de incentivo, ou a entrar nos calendários municipal e estadual.

JARMESON DE LIMA Agora, há uma certa formação de público, justamente por causa desses equipamentos culturais que, pela falta de manutenção, deixam de ser frequentados. Por exemplo, quando o Teatro do Parque estava aberto e havia shows lá, existia o público do centro da cidade que, mesmo não conhecendo os artistas, ia assistir ao que estava passando. Tinha o projeto Seis e meia ou outro show, de um artista novo lançando disco, e o pessoal aparecia pelo costume de ir lá. O Teatro do Parque era um equipamento aberto, municipal, com ingressos acessíveis e que tinha algo mais ou menos de qualidade para que se pudesse ver. Há iniciativas, rolando, como no próprio Paço do Frevo, quando acontecem esses eventos e shows na sexta-feira, no horário em que já é final de expediente. Mas cadê o público em outros lugares da cidade, que poderiam fomentar experiências de bandas e artistas novos, que aproveitariam esses pequenos espaços para mostrar trabalho?

ISAAR FRANÇA E a descentralização que se faz no Carnaval poderia se estender para o ano todo, se existissem espaços nos subúrbios. Precisa haver espaços como o Teatro do Parque, centrais, por onde passam pessoas do subúrbio, porque não é todo mundo que chega ao Recife Antigo.

DÉBORA NASCIMENTO A partir do que André falou, o público está, de certa forma, viciado em show gratuito, a ter tudo de graça, não é?

JEDER JANOTTI A lei de incentivo tem que ser repensada. Ela foi muito importante, por exemplo, em Pernambuco, no momento em que esteve voltada para esses shows. Mas acho que ela tem que ser voltada para equipamento cultural, para a formação de público. Concordo com o Jarmeson, o Recife tem uma característica que considero negativa, que é a ausência de circuito de pequeno porte. É bom lembrar que o mercado da música, voltando à sua primeira questão, mudou muito. Ele se voltou para a música ao vivo. Foi uma mudança que a gente observou nesse tempo. Muitos deixaram pra trás a ideia “Eu vou viver só de música”. Tocar virou uma atividade que envolve outras.

ANDRÉ FREITAS No Carnaval deste ano, pelo menos o municipal, foram 66 palcos com quase 2.600 shows. Não dá. Essa equação não fecha em quatro dias, talvez um pouco mais, contando a semana pré-carnavalesca. Esse formato, se teve sua importância 15 anos atrás, nesse processo estruturador da cadeia produtiva, hoje em dia não se sustenta mais, porque o nosso produto passa a não ter valor. Você falou em vício, eu nem sei se é isso mesmo, mas ele está condicionado a assistir de graça o ano inteiro. E isso não se restringe à música, porque, quando começam os festivais de dança, teatro e tudo que engloba as artes cênicas, o problema se repete e, hoje, ganhou uma proporção absurda. Pelo menos, pelo que eu acompanho na imprensa, as casas de espetáculo cobram, em média, R$ 20 pela entrada inteira, para servir como meia-entrada pra todo mundo. No final das contas, é R$ 10 uma bilheteria. Isso não paga nada, nem vai fomentar o surgimento de casas particulares, como havia nos anos 1990. Hoje em dia, não existe casa de espetáculo no Recife porque não há bilheteria. Bilheteria virou um problema.

JARMESON DE LIMA Nos últimos cinco anos, o que a gente viu foi isso: reduziu-se vertiginosamente a quantidade de shows abertos no Recife, só que, ao mesmo tempo, ninguém está saindo de casa para ir aos lugares pagos. Então, está faltando um elo, nós não estamos conseguindo atrair o público. Está acontecendo alguma coisa, seja na divulgação, seja pelo que é a banda, o que é o show, o que é essa experiência de ver o show, de assistir ao vivo.

JEDER JANOTTI Nós vivemos uma época de festivais também. Saindo do Recife, a música ao vivo mobiliza muita gente. Precisamos tomar cuidado com essas conclusões. Não é que as pessoas não vão a shows, elas vão. Show é o que mobiliza, hoje, a indústria da música. É a música ao vivo.

DÉBORA NASCIMENTO Temos que saber que shows são esses.

JEDER JANOTTI Aí está a questão. Por exemplo, uma coisa que aconteceu no Recife: nós estamos recebendo regularmente shows internacionais. Será que têm prejuízo sempre? Acho que não…


André Freitas. Foto: Alcione Ferreira

AD LUNA Pois é, se fosse assim, não haveria esses shows. Mas gostaria de fazer uma observação. Estamos falando que parece haver uma crise de público, que não frequenta shows de bandas locais. Mas o brega funk está fervilhando, por exemplo. Andamos pela cidade e vemos os lambe-lambes de shows de MC e tal.

ISAAR FRANÇA Em Jardim São Paulo são três casas para esse tipo de show. Três.

AD LUNA É um pessoal que tem um público. Cada clipe deles no YouTube tem milhões de visualizações.

ANDRÉ FREITAS Eles não concorrem em leis de incentivo, gravam discos, lançam…

JEDER JANOTTI Todo final de semana fazem shows…

AD LUNA Não falta algum tipo de diálogo, uma ponte? Por que, numa situação hipotética, não poderia existir um show da banda Kitara com Isaar? DJ Dolores com MC Sheldon? Qual seria o problema? Um público poderia encontrar o outro.


Janderson de Lima. Foto: Alcione Ferreira

ISAAR FRANÇA É, eu já fiz um show bem difícil em Chão de Estrelas. No Carnaval deste ano, entrei depois da Trombonada, que tocou frevo, e, depois de mim, vinha J. Miquiles, também fazendo frevo. Fiquei naquele som estranho, no meio do frevo. E o pessoal dizia “Cadê o frevo?”, e eu, “Tá vindo aí!”. Foi difícil.

MATEUS ALVES É curioso você ter levantado isso. Há pouco, aconteceu uma experiência que envolveu não somente a cultura, mas toda a questão da luta pela cidade, que foi o Ocupe Estelita. Lá, eu participei da organização dos grandes Ocupes, que chamamos de Ocupaço, do qual participava Roger de Renor, com o Som na Rural, e chamávamos as pessoas para se apresentar – a Isaar foi lá. As condições eram totalmente precárias, estávamos num terreno, numa ocupação. Mas planejamos, desde o princípio, envolver bandas de comunidades próximas que não teriam oportunidade de tocar num evento de classe média como se tornou, em boa parte, o Ocupe. Chamamos a Banda Palafita, com um pessoal de Afogados e do Coque. Eles chegaram lá e a gente sentia que havia uma barreira. Tem um grande muro dividindo a gente. Lá, eles abriram para a banda Eddie.

JARMESON DE LIMA Sabe o que isso me lembra? Tem certas coisas que você precisa também ir com cuidado e fazer essa capilaridade, como a Nação Zumbi fez naquela época do Acorda Povo, que levava um trio elétrico com a banda e chamava grupos locais da cidade, de cada bairro, pra abrir o show deles. Aquilo ali, se brincar, foi o que tornou a Nação Zumbi bem-relacionada tanto na periferia quanto na classe média.

ANDRÉ FREITAS A iniciativa privada e o fomento público precisam se compor. A função do poder público se dá onde o mercado não entra. Só que, do jeito que está montado hoje, ele praticamente aniquila a iniciativa privada, porque é muito fácil você produzir sem bilheteria. Não tenho como sobreviver indo para uma casa noturna, até porque são pouquíssimas e a gente conta nos dedos de uma mão os abnegados que estão colocando isso pra frente, num cenário completamente diferente dos anos 1990 para uma banda de música instrumental… Nas quartas-feiras eu tocava em duas casas: Sanatório Geral e, depois, Overpoint. No Sanatório Geral, éramos uma banda de jazz e blues e, na Overpoint, cover dos Beatles.

DÉBORA NASCIMENTO Mas, hoje em dia, uma banda cover pode tocar em qualquer lugar. A gente está falando de música autoral…


Isaar França em aula-espetáculo de Ariano Suassuna. Foto: Breno César/Divulgação

ANDRÉ FREITAS Mas eu falo de mercado, de viver de música.

DÉBORA NASCIMENTO Gostaria de divulgar o seu trabalho autoral? Hoje, as bandas que tocam cover têm lugar garantido em alguns espaços.

JEDER JANOTTI Tem lugar que só toca cover.

ANDRÉ FREITAS Então, no primeiro turno, no Sanatório Geral, eu fazia um trabalho autoral e, no segundo, ia fazer dinheiro.

JEDER JANOTTI Tenho a impressão, às vezes, de que para essa geração mais nova a música não tem mais tanta importância, não é mais o consumo cultural central.

JARMESON DE LIMA A música deixou de ser elemento principal para ser acessório.


Nação Zumbi é uma das bandas mais assíduas dos eventos públicos de Pernambuco. Foto: Divulgação

JEDER JANOTTI Exatamente. Não é que eles deixaram de consumir… mas não é mais aquela coisa. A dedicação que às vezes que se tinha, por exemplo, a uma banda de rock, migrou para outros tipos de consumo.

DÉBORA NASCIMENTO Você acha que isso é um comportamento que faz parte dessa geração que está plugada a muitos itens ao mesmo tempo?

JEDER JANOTTI Consome-se música, mas ela não é mais central na questão da identidade. Um seriado tem muito mais importância para esta geração, por exemplo, se eu chegar pra conversar sobre Game of Thrones, do que encontrar uma banda de referência em comum entre eles.

JARMESON DE LIMA Isso tem a ver com a produção musical. Ela se espalhou tanto, que você consegue ouvir bandas de qualquer lugar no celular, na televisão, no rádio também, por incrível que pareça. Assim, você não tem mais aqueles pontos em comum, aqueles medalhões, artistas que criam fã-clubes, como há 20 ou 30 anos, quando seu acesso à música e ao seu artista era restrito. Você conhecia mais gente que tinha em comum o gosto por determinada banda ou artista, porque esses eram poucos. Agora, se tem milhões de artistas ao mesmo tempo e os antigos não deixaram de produzir, convivem o background de artistas antigos, contemporâneos e outros, que você não conhece, porque também estão espalhados.

AD LUNA Em 2014, foram lançados cerca de 200 discos de artistas pernambucanos. A distribuição desse material parece uma questão fundamental. Fala-se muito, desde os anos 1990, que a música pernambucana não toca na TV, nem em rádio. Geralmente, quem reclama disso são os integrantes do manguebeat e da Cena Beto (movimento de novos músicos pernambucanos, tais como Graxa, Aninha Martins e Juvenil Silva). Porque o pessoal do brega atende a um nicho de rádio, de TV, e tem as carrocinhas. A minha pergunta é a seguinte: é preciso haver programa de TV sobre música de Pernambuco, programação de rádio, a Rádio Frei Caneca? Vale a pena lutar por isso, ou buscar outras alternativas?


Isaar França. Foto: Alcione Ferreira


JEDER JANOTTI
Acho que existe uma idealização em relação a isso. Falam assim: “Eu queria tocar no rádio”. Não sei que rádio é esse. É uma ideia de rádio, pra mim, da década de 1990, de 1980, que não se sustenta mais.

DÉBORA NASCIMENTO Por que a gente não conseguiu ainda fazer a interiorização dos shows? Porque ainda ficamos muito focados nos shows no Recife e em Olinda. Em São Paulo, tem esse circuito em cidades do interior.

ANDRÉ FREITAS Eu não sei se continua tão ruim ainda. Eu tive a felicidade agora em novembro de estar na grade do Festival de Jazz da Macuca, em Garanhuns. Há três anos eu não ia lá...

DÉBORA NASCIMENTO Mas são ações isoladas. Falo de um circuito permanente.

ANDRÉ FREITAS Mas é um circuito anual. Eu estou dizendo porque esse festival está acontecendo todo ano. Hermeto já esteve lá. Ano passado, o Duofel foi o headliner. Isso é muito significativo.


Para especialistas, compressão digital afeta a qualidade do som e do ouvido. Foto: Divulgação

ISAAR FRANÇA O que aconteceu nos últimos anos foi uma ideia de que nós levávamos cultura ao interior, como se lá não tivesse cultura. O poder público deveria fomentar a cultura dessas cidades. Porque chega um monte de gente do Recife pra produzir um evento numa cidade em que a realidade e gosto local não são conhecidos.

DÉBORA NASCIMENTO Mas o que estou falando é de uma banda ou artista poder fazer uma turnê no interior de Pernambuco.

AD LUNA Isso. É o que a gente vê, por exemplo, em São Paulo. Você toca quinta-feira em São Paulo, sexta em Campinas, sábado em São José dos Campos. Aqui, você não vê a Eddie tocando em Olinda, daqui a dois dias, em Caruaru, depois em Garanhuns.

JARMESON DE LIMA Só as bandas bregas conseguem.

AD LUNA Às vezes, quem faz isso é o pessoal do metal.

DÉBORA NASCIMENTO André, e na sistematização do ensino do frevo, que deve colaborar na multiplicação desse gênero musical, o Paço do Frevo terá alguma contribuição?


Bandas, como os Ramones, costumavam reunir público fiel que criava fã-clubes.
Foto: Reprodução

ANDRÉ FREITAS Se a gente for comparar com o jazz, o que ajudou muito na divulgação do gênero norte-americano – além do ensino da estrutura musical, basicamente formado por melodia e harmonia, que é algo muito mais simples – foi a existência de um suporte da cultura de massa, como o cinema, a indústria fonográfica que ainda fazia muita diferença naquela época. No nosso caso, não, porque é uma música orquestrada, então, só nisso já há uma diferença substancial. Conversando com o comitê de salvaguarda do frevo e com todos os maestros com quem eu tive oportunidade, soube que já existem algumas iniciativas de sistematização do ensino musical. Eu achava que o cenário era até muito mais difícil, e não é. Existe, por exemplo, o songbook da obra do maestro José Menezes, de Capiba, de Edgard Moraes. O que falta é uma unidade, um conceito, um princípio pedagógico que dê liga a isso tudo. Há uma meta de, em até dois anos, isso ser publicado. Porque hoje a forma de transmissão musical do que é o frevo ainda é uma experiência cultural. Primeiro, a gente precisa construir um novo paradigma, um novo consenso. Hoje, o frevo ainda fica encaixado naquela “prateleira” do folclore. A gente tem que ter esse consenso de que o frevo é um gênero requintado da música popular brasileira.

AD LUNA E quando a gente fala em sistematização e você fala por exemplo do jazz, é bom dizer que a sistematização da música nos Estados Unidos ocorre em diversos estilos. O músico quer aprender heavy metal, rock, cada um tem um método.


Mateus Alves. Foto: Alcione Ferreira

ANDRÉ FREITAS Essa questão do frevo a gente tem que começar a entender também dentro de um aspecto cronológico. Toda grande arte, essa música ocidental europeia, tem entre 700 e 800 anos. Já foi traçada uma linha do tempo bem-dividida em períodos, em estilos etc. Quando a gente fala do frevo, são apenas 100 anos. Quando converso com o maestro Clóvis Pereira, converso com a história viva. Porque ele tem 82. Então, a gente ainda tem todo um caminho a percorrer, fundações a estruturar.

JARMESON DE LIMA O samba também, o forró. Essas histórias ainda vão se desenvolver.

JEDER JANOTTI Mas é um desafio. O frevo ficou muito marcado como a música do carnaval pernambucano e isso dificultou fazer o voo que, por exemplo, o forró fez, ao se descolar do São João. Uma dificuldade é como tirar o frevo do Carnaval…

ANDRÉ FREITAS A gente está pensando não por gênero, mas por viabilidade econômica. Com um trio, me resolvo profissionalmente. Agora, uma orquestra… E hoje, quando a gente pensa nas turnês, o mercado atual está comprando, no máximo, um quinteto. Nesse contexto, é difícil viabilizar uma orquestra, em termos de circulação nacional e internacional, com 22 pessoas. Frevo é uma brincadeira cara e precisa de um grau de formação técnica muito elevado. O músico precisa ler, escrever e tocar partituras. Não é algo que a transmissão oral consiga contemplar. A gente está falando de uma música orquestral, dividida em naipes. E é cara a aquisição de equipamentos. Por exemplo, um problema que a gente já identificou, o nosso mico-leão-dourado é a tuba. Com quem conversei, sobretudo tubistas – que fazem essa análise –, acham que, em até 10 anos, a tuba some. Porque hoje já não há compositores e o preço de um instrumento de qualidade mediana fica entre R$ 10 a 12 mil reais. E, no que diz respeito aos músicos que tocam frevo, o perfil é de homens entre 24 e 29 anos, com ensino médio incompleto, renda familiar de até três salários-mínimos.

DÉBORA NASCIMENTO Quais outras ações estão sendo realizadas no sentido de propagar o frevo?

ANDRÉ FREITAS Hoje, está sendo digitalizado o acervo da fonoteca da Fundação Joaquim Nabuco, o acervo da Rádio Universitária e você pode ter certeza que, quando isso estiver pronto, vai começar esse diálogo com outros estilos musicais.

MATEUS ALVES O próprio Spok é um exemplo de um cara que está botando o frevo no mundo, mesmo.

ANDRÉ FREITAS Existe uma tendência, que avalio neste pouco mais de um ano em que estou me integrando com os que trabalham nessa área: os que não se atualizaram em ferramentas de trabalho, em ferramentas digitais de produção, de distribuição e tudo, tentam sacralizar, colocar num pedestal e dizer que não podem mexer no gênero, muito mais como reserva de mercado do que necessariamente como algo a preservar.

MATEUS ALVES Eu acho que esse processo, inclusive, vai ser um catalisador para o que é mais importante: os compositores atuais terem espaço, porque o repertório de certa forma ficou estagnado nos grandes clássicos.


Jeder Janotti. Foto: Alcione Ferreira

ANDRÉ FREITAS Mas também porque não tem grupo de pesquisa regular. Não existe isso. Só quem tem isso aqui, hoje, são Spok e Forró.

JEDER JANOTTI Vou falar aqui como não pernambucano. Aquela lista de cerca de 15 frevos que fica lá tocando o Carnaval todo, repetindo, é difícil.

DÉBORA NASCIMENTO É porque as orquestras têm praticamente os mesmos músicos… Queria saber se vocês acham que a forma como escutamos música hoje, com essa compressão digital, se isso vai ter um impacto negativo na própria criação da música no futuro?

MATEUS ALVES Isso já acontece. O ouvido da gente, se formos pensar historicamente, vem se deteriorando junto com a tecnologia. A tecnologia vai avançando e o ouvido vai involuindo. Porque esse tipo de compressão do MP3, que quando você compara com o wave, que é um arquivo com mais fidelidade, é como se você estivesse vendo um quadro com cinco cores e de repente ele está com duas. São coisas absurdas e o ouvido da gente é muito sensível, mas, às vezes não percebe essa perda. Sou músico, trabalho com isso e muitas vezes me pego não sabendo diferenciar e me sinto mal. É algo que faz mal à saúde auditiva da gente. E a audição, se for analisar em termos fisiológicos, é um dos nossos sentidos mais aguçados. Tudo a gente percebe, mas está perdendo.

AD LUNA E a própria criação do músico. Quando está no estúdio e vai gravar um disco, o músico é como se fosse um cientista, ele quer provocar certas reações. Se no produto final que vai ser ouvido é tudo igual, para que eu vou me preocupar? Por exemplo, a gente vai gravar a bateria. Você quer que cada música tenha um som diferente de bateria, então pega não sei quantos caixas. O Led Zeppelin, por exemplo, tem uma das baterias mais sampleadas do mundo, que é a de John Bonham. O músico de agora pensa:“Pra que eu vou fazer tudo isso se o cara vai ouvir no MP3?” Outra coisa: já existem produtores – o responsável por uma noite num barzinho; isso já aconteceu comigo como músico – que não pedem mais pra ouvir o disco, perguntam se você tem vídeo no YouTube. Ele quer saber como é a sua performance, porque agora, no disco, todo mundo pode soar bem.

MATEUS ALVES É curioso porque é uma volta mesmo ao passado da música, porque música sempre foi isso, desde os gregos: os músicos tocando ao vivo e o público indo lá ver. 

Mediação:

AD LUNA
, baterista da ZMusique, tocou na Querosene Jacaré, Monjolo e Cruor. Formado em Jornalismo pela UFPE, foi gerente de conteúdo do Showlivre; repórter dos cadernos de cultura do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco. É roteirista do Som na Rural. Mantém o blog Interdependente.

DÉBORA NASCIMENTO, trabalhou no Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco. Entre 2001 e 2002, apresentou programa musical na Rádio Universitária. Entre 2007 e 2009, foi gerente de música da Fundação de Cultura Cidade do Recife. É editora-assistente da Continente.

Convidados:

ANDRÉ FREITAS, compositor formado em Música pela UFPE. Ex-professor do Conservatório Pernambucano de Música, tocou e gravou com diversos artistas. Foi produtor e diretor musical de projetos ligados ao teatro, cinema e às artes plásticas. É coordenador de música do Paço do Frevo.

ISAAR FRANÇA, cantora, compositora e instrumentista, começou a carreira em 1995. De 1997 a 2004, integrou a banda Comadre Fulozinha. Gravou com DJ Dolores, Siba, Mundo Livre S/A, Eddie e Cidadão Instigado. Em 2014, lançou seu terceiro álbum solo,Todo calor.

JARMESON DE LIMA, jornalista e produtor cultural. Desde 2004, produz o programa Coquetel Molotov na Rádio Universitária FM - 99,9 e organiza o festival No Ar Coquetel Molotov. Participou, como convidado, de eventos internacionais como a Berlin Music Week 2013 e TalkFest, em 2015.

JEDER JANOTTI JR., doutor em Comunicação, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Departamento de Comunicação da UFPE, em que coordena o Laboratório de Análise de Música. É autor e organizador de três livros sobre música.

MATEUS ALVES, músico formado em Música pela UFPE, tem mestrado em Composição pela Royal College of Music (RCM) de Londres, onde também estudou Música para Cinema. Transita entre a música erudita e a popular. É compositor premiado de trilhas sonoras de filmes.

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