Sobre esse trabalho de 1985, Helder Aragão, o DJ Dolores, que colaborou com Robertinho nos palcos em 2012, diz que “foi o único disco brasileiro da época que tinha um som poderoso, roqueiro, muito superior ao que se fazia”. DJ Dolores ressalta que o pop rock brasileiro da época era malproduzido, e os discos tinham mixagem de MPB, sem peso na guitarra, e lembra que Robertinho “sempre flertou com gêneros diferentes, com uma incrível capacidade de adaptação”.
Já o mais recente MetalMania – Back for more traz outro sentimento. Em parte, porque é fruto de outra época mesmo, e – sinal disso – foi lançado em dezembro passado via iTunes (no Brasil e no Japão) antes da edição física. Tem uma produção mais moderna, com voz sintetizada, meio robótica, e efeitos eletrônicos sob a responsabilidade do filho de Robertinho, Fhorggio. Também traz ressonâncias do disco anterior, Rapsódia rock, de 1990, em que havia uma combinação de guitarra e orquestra sinfônica, música clássica e rock. Aqui estão de volta essas referências, sobretudo porque várias de suas músicas foram escritas durante a turnê do Rapsódia. O álbum tem uma identidade mais misteriosa, soturna, que remete ao sagrado nos temas (The glorius, The third angel). “Eu conheço a fonte”, diz Robertinho. “Conheço as coisas mais antigas que deram vida ao estilo. Led Zeppelin, Black Sabbath, Blue Cheer. Eu vim dessa geração. E gosto muito de Bach, Mozart, Beethoven, mas não sei tocar tudo deles. Não sou músico clássico. Sou um guitarrista doido e minha guitarra me leva a essas coisas.”
FEITIÇO DA GUITARRA
A vida de Robertinho de Recife ensina algo sobre imprevisibilidade e fluidez. O encontro dele com a guitarra, por exemplo, se deu por vias tortas. Quando tinha 10 anos, a caminho de uma quadrilha junina, foi atropelado por um carro. Passou dois dias em coma, colocou platina na perna. Ficou quase um ano deitado, sem poder andar. E aí acontece “o pulo do gato”, quando descobre os Beatles através de programa de TV. A guitarra o enfeitiçou. Na época, meados dos anos 1960, o instrumento era pouco conhecido, chegaram a achar que era só uma viola amplificada.
A família, que sempre morou na zona norte do Recife, contava muitos músicos, incluindo tios, primos e sua mãe, Ana Clea, que havia sido cantora antes de casar. “Considero que foi ela quem me ensinou a tocar. Ela cantava para que eu pudesse encontrar as notas certas”, lembra. E ele aprendeu direitinho: foi convidado a entrar em bandas, fazer show em boates em que não era permitida a entrada de menores (havia até um “reserva” para ele, caso a polícia chegasse), em conjuntos como Os Moderatos, banda de baile, e Os Bambinos, que tocavam em festas tropicalistas do Recife e também na TV Jornal.
Um desses shows, gravado em fita de rolo por uns americanos de passagem por aqui, circulou e terminou rendendo ao garoto do Recife um convite para tocar nos EUA, com a Watchpocket, banda grande na época. Tinha apenas 17 anos, e já estava no circuito profissional da música norte-americana. Mal podia acreditar. Por mais que a experiência tenha sido positiva, houve outro acidente grave de carro, que o deixou em coma, depois da paralisia temporária na face, numa fase de dependência das drogas.
Fagner convidou o guitarrista para tocar em vários projetos musicais. Imagem: Reprodução
Voltou para o Recife acabado e, para se recuperar, buscou um retiro espiritual, estudando no Seminário Teológico do Norte. Tocava em igrejas e foi numa delas que Fagner o viu tocar pela primeira vez, o que resultou numa longa parceria. Formou uma banda chamada Ala D’Eli, com Zé da Flauta e outros músicos. A movimentação, então, era muito maior, uma cena não só pernambucana, mas do Nordeste inteiro.
A estreia em disco solo, Jardim da infância, de 1977, acontece numa fase de afirmação dos artistas através do trabalho de cada um, de formação de público. E vários elementos do LP evidenciam isso: na capa deslumbrante de Fausto Nilo, também parceiro em várias letras do disco; nos vocais de Elba Ramalho, Amelinha e Fagner, que assina a coprodução; na sanfona de Sivuca, no trompete de Márcio Montarroyos; no baixo de Itiberê. Jazz e rock, música nordestina, indiana, flamenca.
Fagner, então responsável por trazer a “música jovem” daquela época para a CBS, participou nos vocais e fez a coprodução do disco com Robertinho, que gravou, no ano seguinte, a guitarra de um dos maiores sucessos do cantor. Numa das suas inúmeras crises, Roberto queria desistir da música, mas Fagner o convenceu a tocar em seu disco. A guitarra angustiada de Revelação parece traduzir tudo que ele estava passando: “Sentimento ilhado/ louco, amordaçado/volta a incomodar”. Composta pelos irmãos piauienses Clésio e Clodo e lançada em 1978, vira um grande sucesso. Ele lava a alma, repensa, segue em frente. Nessa época, sua guitarra era onipresente nos discos de seus colegas de geração, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Lula Côrtes, entre outros.
A aceitação de Frevo dos palhaços, música do primeiro álbum, levou a Robertinho no Passo, o segundo disco, dedicado ao frevo a pedido da gravadora. O que ninguém esperava era o experimentalismo com que ele desconstruiria o ritmo junto a Hermeto Pascoal (nos arranjos e nas composições). “Na época, a crítica pegou pesado. Dez anos depois, já era a coisa mais genial do mundo. Sou macaco velho, estou acostumado com isso”, comenta.
Sua discografia é marcada por mudanças radicais, construídas junto com parceiros sempre presentes. Da turnê Tropical, como músico de Gal Costa, veio inspiração para o terceiro álbum, E agora pra vocês… Swingues tropicais. Ritmos latinos em destaque, participação de Gal em Merengue e o duelo entre guitarra e vocoder, em Papo de guitarrista. Do casamento com Emilinha, vieram Satisfação, de 1981, e Robertinho de Recife e Emilinha, de 1982, ambos deliciosamente new wave. Representam concisão, menos participações, mais segurança ao assumir os vocais, em parceria com a esposa Emilinha. É dessa época Seja o meu céu, depois regravada por Nara Leão, até hoje uma de suas mais conhecidas, com letra de José Carlos Capinan. Cantam o amor correspondido Feliz com você, Bombom, Mina de ouro. “Emilinha adorava new wave. Foi a fase da minha fascinação por ela, as músicas falavam do nosso relacionamento. As músicas são sempre a respeito do que estou vivendo no momento”, explica.
Disco de 1985 faz um híbrido entre heat metal e hard rock. Imagem: Reprodução
BABY DOLL DE NYLON
O elefante, com a surreal letra de Fausto Nilo, e gravada com um coro infantil, foi um sucesso enorme, que levou o mercado fonográfico a modernizar a música para crianças. A gravadora descobriu um filão e queria mais criações no estilo, como era de se esperar. Para desgosto de Robertinho, levaram-no a gravar É de chocolate junto com o Trem da Alegria, em 1984, outro sucesso. No dia em que recebeu o disco de platina, chegou da cerimônia de entrega e o jogou do 12º andar. “Acho que nenhum artista fez os absurdos que eu já fiz. Ia para a TV sem tomar banho, com guitarra sem corda, tocando como se fosse canhoto. Não estava mais a fim dessas armações.”
A música que as novas gerações podem associar mais facilmente a Robertinho é o hit mais inesperado para ele, Baby doll de nylon. Até hoje uma das músicas mais procuradas no YouTube, é um fenômeno, com mais de 600 mil acessos, incluindo aí uma montagem hilária com Mick Jagger e David Bowie.
A história é engraçada. Ele e Caetano Veloso estavam numa festa, quando Júlio Barroso (falecido vocalista da Gang 90) sugeriu uma parceria entre os dois. Robertinho solfeja uma melodia, Caetano promete botar uma letra. Tempos depois, Caetano liga. Começa a cantarolar: “Baby doll de nylon/ combina com você/ Pode até ir pro baile, aparecer na TV” e, do outro lado da linha, havia um Robertinho incrédulo. “Ele começou a cantar e eu achei horrível. Como é que é? E ele ‘você não quer anotar?’ e eu fui pegar a caneta com muita má-vontade”, relembra.
Em 1983, quando estava gravando Robertinho do mundo e faltava uma música para completar a tracklist, Emilinha lembrou a parceria com Caetano, que, de outro modo, talvez ficasse na obscuridade. Depois de seis meses de fracasso de vendas, a música começa a estourar em Salvador, depois no Nordeste inteiro. O disco tinha ainda pérolas como Crioulos de Trinidad, Capitão Copacabana e a instrumental Astúcia, que já era um prenúncio do rock pesado que viria a seguir.
E assim o círculo se completa. Perguntado sobre a possibilidade de voltar a tocar também em outros estilos, ele nega. Mas, com uma biografia assim, quem pode adivinhar? Vale lembrar as palavras de Fagner, no Jornal da Música, em setembro de 1977: “Pouca gente, que eu saiba, reúne uma formação tão rica de experiência diária e tão perto da música quanto Roberto. Não uma coisa cerebral, estudada, mas uma coisa viva, seguida, sofrida”. Talvez a sua trajetória artística simplesmente siga o fluxo dessa vida intensa, de workaholic dionisíaco, e, com um pouco de sorte, a gente ainda vai ter novos discos dele para ouvir.
GERMANO RABELLO, jornalista, desenhista e músico.