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MPB: Um ano como marco

Livro faz apanhado dos principais lançamentos ocorridos em 1973 e discorre sobre a importância do período para a evolução da música no país

TEXTO Marcelo Robalinho

01 de Março de 2014

Imagens Reprodução

O ano de 1973 foi bastante frutífero para a MPB. Apesar de finda a fase dos movimentos e festivais de música, que tiveram seu fulgor na década de 1960 e revelaram boa parte dos artistas hoje consagrados, aquele ano foi marcado pelo lançamento de nomes importantes, tais como Fagner, João Bosco e Aldir Blanc, Gonzaguinha, Luiz Melodia e o grupo Secos e Molhados (que revelou ao país o cantor Ney Matogrosso). Também representou a estreia fonográfica de artistas já em carreira, a exemplo de Francis Hime e Elton Medeiros, e o lançamento de álbuns considerados referência, como Milagre dos peixes, de Milton Nascimento, Matança de porco, da extinta banda Som Imaginário, Matita Perê, de Tom Jobim, e Satwa, dos pernambucanos Lailson e Lula Côrtes. “Passados 40 anos, podemos perceber o quão profícuo foi o ano”, constata o jornalista Célio Albuquerque. Ele é o organizador do livro 1973: o ano que reinventou a MPB, recém-lançado pela Sonora Editora (431 páginas, R$ 59,90).

Embora o título da obra pareça um tanto pretensioso à primeira vista, a leitura revela a cada capítulo a riqueza musical produzida em 1973, pela visão de repórteres, críticos, músicos, compositores, produtores e historiadores. Essa diversidade de formações e experiências entre os profissionais que assinam os textos conferiu um caráter interessante ao livro, notadamente memorialista. É o caso da resenha do gaitista e arranjador Rildo Hora, que conta sobre o contexto de gravação de Origens, de Martinho da Vila. Como coordenador artístico e diretor de estúdio do disco na época, Rildo fala sobre a necessidade de Martinho de buscar sempre, nos seus LPs, um conceito temático para relacionar as músicas, como um samba-enredo, aliando isso também à concepção gráfica. No caso de Origens, cuja capa foi feita por Elifas Andreatto, um dos interesses de Martinho foi voltar aos princípios do samba, homenageando a África.

Outro exemplo desse viés da memória pode ser conferido no texto do jornalista Danilo Casaletti. Como fã da cantora Elis Regina, e por não tê-la conhecido pessoalmente, ele conta que pesquisou em matérias de época e se baseou em conversas que teve com o compositor Aldir Blanc para escrever a resenha sobre o LP Elis, um disco que refletiu um momento de mudança na carreira da gaúcha, depois de romper um contrato com a TV Globo e vir de um disco bem-sucedido no ano anterior. “Tentei trazer para este livro uma reflexão do que teria levado a Elis a fazer um disco tão diferente do anterior, o de 1972, e quais consequências o de 1973 teria trazido para a carreira da cantora, o que, a meu ver, foi o total entrosamento com o seu marido na época, o pianista César Mariano, e uma grande cumplicidade com os músicos, o que possibilitou, em 1974, que ela produzisse um dos melhores discos da música mundial, o Elis & Tom”, comenta Casaletti.

Célio Albuquerque afirma que grande parte dos discos escolhidos fez ou faz parte do dia a dia de quem gosta de MPB. A ideia do livro partiu da percepção da grande quantidade de lançamentos importantes em 1973 e da constatação de que vários deles estavam presentes em listas feitas em diversos períodos.

Uma delas é a do livro 300 discos importantes da música brasileira (Ed. Paz e Terra), que destaca 18 títulos daquele ano dentre os 104 selecionados só para o período de 1970 a 1979. “O critério para escolha foi a qualidade identificada nos discos lançados à época. Não havia a preocupação de ter ou não determinado artista. O disco deveria ter um grau de importância para o segmento que ele ocupava no mercado. Tanto é que não há o disco de Roberto Carlos simplesmente porque naquele ano o seu disco não estava entre os mais criativos”, explica Albuquerque à Continente. Segundo ele, os autores das resenhas foram convidados tendo como critério a intimidade, o carinho e a identificação deles com os discos.

Um dos casos de maior empatia ocorreu com o percussionista Marcos Suzano, escalado para escrever sobre Amazonas, segundo LP do percussionista pernambucano Naná Vasconcelos. Por já ter tocado e gravado com Naná, Suzano relatou como funciona o processo criativo do colega, que mistura elementos de percussão e voz. “O que mais impressiona é que, na época, a coisa era gravada na fita, então o cara tinha que tocar mesmo. Atualmente, o computador facilita as coisas.”


O jornalista Célio Albuquerque defende que, em 1973, o mercado fonográfico investiu na inovação. Foto: Divulgação

UDIGRÚDI PERNAMBUCANO
Além de Naná, o livro reserva um espaço para Pernambuco no capítulo Psicodelia arretada: uma nova era. Escrito pelo jornalista José Teles, o texto destaca os álbuns Satwa, de Lula Côrtes e Lailson, e Marconi Notaro no sub-reino dos metazoários, de Marconi Notaro, dois importantes discos do chamado udigrúdi, movimento ocorrido no Recife no início da década de 1970 e ligado à contracultura e ao underground. Mesmo reconhecendo a controvérsia sobre o fato de Satwa ter sido feito às próprias custas, Teles afirma que Lula e Lailson seriam, na verdade, os primeiros a lançarem no Brasil um disco sem vínculos com gravadora, neste caso, a Fábrica de Discos Rozemblit, no Recife, onde foi realizado. Isso teria ocorrido três anos antes do famoso Feito em casa, do pianista Antônio Adolfo, considerado oficialmente o primeiro.

“Lailson e Lula chegaram com temas pré-gravados, mas a música de Satwa foi criada ad lib, com improvisos em cima de um tema. Nada de letras. Nem Lailson nem Lula tinham intenções, nem paciência de dar explicações à Polícia Federal, à qual seriam obrigados a submeter as letras, para aprovação ou não. Isso foi o que facilitou a liberação do LP”, relata Teles.

No quesito censura, o livro guarda boas histórias, justamente pelo fato de o país viver, naquele período, o ápice do sufocamento artístico, com diversos cantores e compositores tendo suas músicas vetadas. Chico Buarque e Taiguara foram dois dos artistas mais censurados. Em 1973, Chico teve a peça Calabar, o elogio da traição (escrita com Ruy Guerra) interditada. E metade das canções do disco teve as letras vetadas de forma parcial ou integral. Originalmente intitulado Chico canta Calabar, o título do LP foi reduzido pelos censores a apenas Chico canta, por não gostarem da palavra “Calabar” e da capa, modificada, conforme contam os jornalistas Nilton Pavin e Sílvio Atanes no texto, sob o irônico título Quase que Chico não canta.

No caso de Taiguara, que teve ao longo de sua carreira 146 canções proibidas, o repórter José Maria dos Santos tenta dar um “tratamento prioritariamente político” para ressaltar a importância do disco Fotografias e do próprio artista no cenário musical, “ainda hoje malcompreendido”, como destaca. “A partir desse disco ele iria se autoexilar na Europa, farto dos aborrecimentos, como se quisesse fechar para sempre uma porta atrás de si”, afirma José Maria.

MERCADO FAVORÁVEL
Mesmo num contexto de fechamento político, o ano de 1973 conta com uma peculiaridade que justifica, em parte, o tempo de efervescência cultural. Foi um período marcado por um forte desenvolvimento econômico, conhecido como Milagre Brasileiro, que fez do Brasil a 10ª economia mundial. Com um crescimento de 14% do PIB naquele ano, o país vivia uma pretensa ideia de progresso. É o que informa Washigton Santos, jornalista especializado em Políticas Públicas e Governo, no capítulo Tempos de milagre, anos de chumbo, que busca contextualizar o país daquela época. Nesse cenário, o mercado fonográfico brasileiro ainda vivenciava um período de expansão, iniciado nos anos 1960, fazendo do disco um produto bastante rentável.

“Como o disco ainda dava muito dinheiro diante daquele cenário de crescimento, as gravadoras investiam num artista, às vezes durante quatro a cinco anos, até ele dar dinheiro”, revela à Continente o músico Roberto Menescal, na época diretor artístico da Philips. Isso, diz ele, permitia o risco tanto na contratação de nomes novos pelo feeling no talento quanto na experimentação dos veteranos.

“O nosso cast chegou a 158 artistas. Contratávamos com base no talento e na música das pessoas. Depois, com a crise do petróleo, no final dos anos 1970, as gravadoras pararam de investir em gente nova, reduziram drasticamente o seu elenco de artistas, diminuíram os gastos na produção de um disco e começaram a lançar mão do jabá, comprando espaço nas rádios para tocarem as músicas, algo bastante questionável. Foi também um momento em que a presidência das gravadoras deixou de ser dirigida pelo pessoal da música, dando lugar aos controllers, com visão menos artística e mais administrativa e empresarial”, pontua Menescal.

Para Célio Albuquerque, a riqueza da música brasileira de 1973 tem a ver com o contexto político, a maneira como as gravadoras viam o mercado, não se preocupando apenas em vender, mas em criar catálogos e apostar em inovações. “Era um período extremamente produtivo, de muita variedade de talentos e com a indústria de discos em franca ascensão, começando a faturar com trilhas de novela e sambas-enredo também”, complementa Marcelo Fróes. Ele assina com Célio um artigo relembrando a gravação do projeto Phono 73, um festival não competitivo que reuniu o elenco da Philips, em maio de 1973, no Centro de Convenções do Anhembi (SP), para apresentações históricas, como a de Gil e Chico Buarque, que tiveram os microfones desligados durante a música Cálice.

CURIOSIDADES: TUDO O QUE ACONTECEU EM 1973


Foto: Reprodução

- Elis Regina (acima) e Beth Carvalho vivenciaram um imbróglio em torno da música Folhas secas, de Nelson Cavaquinho. Entregue a Beth para gravar, a canção foi lançada primeiro por Elis, que soube da sua existência através do pianista César Mariano e pediu a música a Nelson. Beth não engole a história até hoje e prefere classificá-la como roubo.

- Walter Franco (Ou não) e Caetano Veloso (Araçá azul) ficaram conhecidos por lançarem os mais anticomerciais álbuns. Ambos de 1973, tiveram vários de seus exemplares devolvidos nas lojas pela pouca aceitação do público, não acostumado com experimentalismos.

- Milton Nascimento foi um dos notáveis sobreviventes da censura naquele ano. Milagre dos peixes foi alvo de severa censura, tendo as letras vetadas em oito das 11 faixas. Milton decidiu então gravar as músicas apenas modulando a voz para imprimir as emoções contidas nas letras vetadas, rendendo-lhe um dos discos mais célebres da sua carreira e da MPB. Milagre também manteve o crédito dos parceiros nas faixas censuradas e divulgou os nomes de todos que participaram das gravações –tornando-se o álbum com a ficha técnica mais detalhada da discografia brasileira até então.

- Considerado um fenômeno, o grupo Secos & Molhados foi lançado em 1973. O LP vendeu 800 mil cópias, com várias das músicas do disco se tornando sucessos, estremecendo o trono do rei Roberto Carlos. O êxito do grupo foi coroado com um show no Maracanãzinho (RJ), com público de 25 mil pessoas, em 1974.

- O primeiro LP de Gonzaguinha, de 1973, envolve um fato inusitado. Convidado para cantar no Programa Flávio Cavalcanti, , ele teve seu disco quebrado diante das câmeras pelo apresentador, acusando-o de terrorista e de estar prestando um desserviço à nação depois de cantar a música Comportamento geral. Uma semana depois do ocorrido, ele havia vendido 20 mil cópias.

- Considerado um dos grandes da música cafona, Odair José sofreu com a censura. Seu hit de trabalho, a música Uma vida só, foi vetada pelo governo da época em função dos versos: “Pare de tomar a pílula/ Porque ela não deixa o nosso filho nascer/ Pare de tomar a pílula/ Porque ela não deixa sua barriga crescer”. Na época, a ditadura militar patrocinava a campanha nacional de controle de natalidade.

- O experimental Prelude, gravado nos EUA por Eumir Deodato, ganhou o Grammy Latino de 1973. A sua versão de Also Sprach Zarathrusta, de Richard Strauss, tornou-se a faixa mais célebre e fez parte da trilha do filme Muito além do jardim (1979). O álbum chegou à marca das 5 milhões de cópias vendidas, rendendo ao disco um dos primeiros lugares no ranking da Billboard do mesmo ano. 

MARCELO ROBALINHO, jornalista, mestre e doutorando em Comunicação.

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