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A consciência do erro

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Março de 2014

Imagem Karina Freitas

A história de Édipo, todos conhecem. Talvez seja a obra teatral mais perfeita entre as escritas por Sófocles. Há quem a compare a um drama policial moderno, pela maneira como se investiga a morte do rei Laio de Tebas. Partindo desse mito fundador da cultura ocidental, em que o filho assassina o próprio pai e casa com a mãe – gerando nela quatro filhos –, Freud criou as bases de sua psicanálise, generalizando que toda criança deseja sexualmente a mãe e é um potencial assassino do pai. As neuroses surgiriam na infância, desse triângulo amoroso malresolvido. Acabo de praticar o que chamam de psicanálise selvagem, tentando resumir em poucas linhas os fundamentos do complexo edípico, coisa que custou uma vida a Freud, entre cachimbadas e sessões de divã com pacientes histéricas.

Édipo Rei é também a peça que melhor ilustra os fundamentos da tragédia. Os gregos acreditavam que vez por outra a ordem do mundo, que eles chamavam cosmos, era ferida por algum crime e dava-se início ao caos. Tornavam-se necessárias a expiação do crime e a consciência do ato praticado, para que o cosmos se restabelecesse. O oráculo do deus Apolo, em Delfos, previra que, se Laio e sua esposa Jocasta tivessem um filho, o rei seria morto pelas mãos dele. Temendo a profecia, o rei se afasta da esposa. Porém, não resistindo ao desejo, procura-a e gera uma criança. Quando o menino nasce, Laio e Jocasta mandam perfurar seus pés e abandoná-lo, no monte Citéron. O pastor encarregado de executar o crime se compadece e entrega o menino a outro pastor, que o leva aos reis de Corinto, que não possuíam herdeiro.

Édipo sente-se amado pelos pais adotivos e vive feliz até o dia em que escuta de um intrigante que não é filho legítimo dos monarcas. O rei e a rainha negam a intriga, mas a dúvida se apossa de Édipo. Ele viaja a Delfos e consulta o oráculo, o mesmo que Laio consultara. A sentença proferida não poderia ser mais terrível: “Você há de matar seu próprio pai, casar-se com sua mãe e deixar uma descendência vergonhosa”. Édipo não ousa retornar à sua casa, temendo que o oráculo se realizasse com os pais que ele supunha verdadeiros. Decide fugir e toma o caminho da Beócia. Numa encruzilhada, encontra um carro com um velho desconhecido, acompanhado de mensageiro, condutor e dois servos. Era o rei Laio, que viajava sem nenhuma pompa a Delfos. O condutor agride Édipo e este revida: mata Laio e mais três pessoas do cortejo. Apenas um homem consegue escapar e foge.

Chegando à Tebas, enlutada pela morte do rei, onde uma esfinge se instalara matando as pessoas que não resolviam seus enigmas, Édipo se aventura ao prêmio oferecido por Creonte, irmão da rainha: casar com Jocasta e ganhar o reino, caso derrotasse o monstro alado. Édipo decifra a esfinge, casa com a mãe, tem quatro filhos, cumprindo seu destino. Anos depois, Tebas sofre uma epidemia e longa estiagem. O oráculo diz que é necessário banir de Tebas o responsável por um crime monstruoso. Como num inquérito policial, investiga-se e descobre-se que o criminoso é o próprio rei. A rainha não suporta a revelação e se enforca. Édipo fura os olhos e perambula como mendigo, na companhia da filha Antígona. No final da vida, busca exílio em Colona e chega ao santuário das Eumênides, onde, depois de mais dramas e sofrimentos, encontra um merecido sossego, descendo ao reino dos Ínferos. Expia-se o crime e o cosmos se restabelece. Na verdade, uma ordem aparente, se considerarmos todas as tragédias posteriores. Mas interessa à interpretação do conceito de tragédia que assim seja e não serei eu a negar tais postulados.

Ordem – desordem – ordem ou cosmos – caos – cosmos compõem, nesta sucessão, a trilogia de acontecimentos da tragédia. É o modelo das peças de Ésquilo e Sófocles, e seria também de Eurípides se ele não questionasse a autoridade do destino, introduzindo a psicologia nos seus dramas, o que é estranho ao mundo trágico. Somente pela consciência do ato que feriu a ordem do mundo, e através de sua expiação, a ordem será restabelecida.

Esse modelo serviu a Dostoievski no romance Crime e castigo. O pobre estudante Raskólnikov decide roubar duas mulheres idosas e durante a ação termina por assassiná-las. Apegado ao discurso de que Napoleão Bonaparte levara milhares de pessoas à morte sem causa justa e sem sofrer punição, o rapaz considera seu crime insignificante, justificável pela necessidade de amenizar a pobreza. Por mais racionalista e embasado na lógica, Raskólnikov não sossega e vive cheio de remorso. Ele conhece Sônia, uma jovem que se prostitui para ajudar a família. Raskólnikov decide confessar o crime a Sônia e termina ajoelhado aos seus pés, revelando que se curva diante do grande sofrimento humano. Sônia o convence a entregar-se à justiça e ele é condenado à Sibéria. O romance segue o modelo clássico da tragédia: o homem comete o crime, reconhece o ato, sofre o castigo e se apazigua pela consciência do erro.

Na dramaturgia das novelas brasileiras para a TV, o modelo da tragédia foi abandonado, por conta, talvez, de uma nova moral. Os crimes não são castigados, os criminosos não sofrem remorso, ninguém busca a consciência e a expiação do seu delito. Na novela Amor à vida, uma personagem confessa um crime e fica impune. Outro é beneficiado com um final feliz, depois de cometer horrores. O autor distribui benesses arbitrariamente, sem qualquer julgamento ético. Talvez isso reflita uma sociedade de personalidades psicopatas, sem registro afetivo, e um país onde dificilmente os crimes são julgados e punidos. Se não há justiça humana nesta vida, nem um Deus que condene ao inferno noutra vida, para que percorrer o duro caminho da consciência e expiação? Os olhos de Deus foram trocados pelas câmeras do Big Brother, que só premiam a hediondez. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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