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Cinema como forma de escrita

O cineasta Eduardo Montes-Bradley vasculha nos livros uma maneira de explicar o Brasil e o ser humano

TEXTO Clarissa Macau

01 de Agosto de 2013

Filme com a escritora chilena Carla Saavedra foi realizado a partir de seu livro 'Flores azuis', no Rio de Janeiro e em Berlim

Filme com a escritora chilena Carla Saavedra foi realizado a partir de seu livro 'Flores azuis', no Rio de Janeiro e em Berlim

Foto Divulgação

"Eu não me sinto filmando os documentários, mas escrevendo com a câmera. Quero humanizar experiências, sejam elas livros, a medicina, ou a política”. A declaração é de um cineasta que, profundamente marcado por política e arte, decidiu juntá-las a fim de explorar a natureza humana e seus contextos. No melhor estilo faça-você-mesmo, o argentino, também biógrafo e jornalista, Eduardo Montes-Bradley peregrina desde os 15 anos em torno de projetos cinematográficos. Embora pouco comentado, é dono de um currículo de 74 produções e, atualmente, aventura-se pelo mundo da literatura contemporânea brasileira. Nesse universo, o diretor percebe a “origem dos melhores livros do futuro”.

Em 1976, a Argentina era vítima da ditadura militar, o que estimulou o cineasta, então exilado, a criar filmes contemplando os direitos humanos. Morando nos Estados Unidos desde aquela década, realizou documentários sobre vários intelectuais. “Em hipótese, eu acredito que o diretor Woody Allen poderia ajudar a visualizar a classe média judaica de Manhattan nos anos 1970, assim como a família dos Médici ajudaria a compreender a cidade de Florença no século 15”, defende. Pintores, poetas, escritores, políticos, ativistas já foram retratados sob facetas desconhecidas diante da sua câmera. Entre eles, o guerrilheiro Che Guevara, o escritor Julio Cortázar e a primeira-dama Evita Perón, exemplos de argentinos que serviram a uma “biópsia” da vida cultural e social do país.

Hoje, Montes-Bradley volta suas lentes para escritores brasileiros, no projeto Writers made in Brazil, no qual produz esquetes biográficas que prestigiam intimamente os autores, um a um: a carioca Adriana Lisboa, o cearense Ronaldo Correia de Brito, a chilena radicada no país Carola Saavedra, o mineiro Luiz Rufatto e o amazonense Milton Hatoum. Os filmes serão oferecidos a universidades e bibliotecas de todo o mundo em janeiro de 2014, pela distribuidora Alexander Street Press e pela sua produtora, a Heritage Film Project.

Na composição de seus documentários, Montes-Bradley segue sem roteiro prévio, apenas munido de câmeras, microfones, baterias e um computador, além de um amigo, o assistente Max Gordon. O principal método para a construção dos filmes é sua sensibilidade como diretor e a interação com o entrevistado. “Eu navego através do diálogo, espero conseguir acessar a alma do tema que escolhi.”


Eduardo Montes-Bradley com Ronaldo Correia de Brito, durante captação para documentário sobre o escritor. Foto: Divulgação

DIÁSPORA MODERNA
A relação com o Brasil é antiga. Eduardo é fã dos filmes Orfeu negro (1959) e Central do Brasil (1997). Como cineasta, viajou pelos bastidores do samba e do carnaval do Rio de Janeiro, no documentário Samba on your feet (2005). Na literatura nacional, quem o despertou foi Azul-corvo, romance de Adriana Lisboa. O diretor se identificou com a diáspora moderna vivida pela protagonista Evangelina.“O enredo lembra meu próprio exílio. A praia de Copacabana, na história dela, é como se fosse minha cidade de origem, Buenos Aires. O estado americano do Colorado, da pesonagem, é meu mundo pós-exílio. É interessante perceber a relação da ideia de origem e destino”.

O resultado do encontro com a escritora foi um belíssimo poema visual de 26 minutos, ambientado no clima frio das montanhas americanas coloradenses, apresentando os contextos históricos de dois países e do encontro do ser humano com o “outro”. “No meu caso, sempre posso transformar a saudade em literatura”, expressa a personagem Adriana, numa cena. O filme Lisboa está disponível na íntegra, no site da Continente.

Processo de aproximação semelhante ocorreu entre Montes-Bradley e Ronaldo Correia de Brito. No apartamento recifense do escritor, eles conversaram sobre as inspirações socioculturais do conto Homens atravessando pontes. “A escrita dele me lembra a de Edgar Allan Poe. Gosto de como descreve o caminho que percorre pelo Recife, a aura imaginativa. A cidade como uma Amsterdã tropical. Gravamos sobre a vida de Ronaldo no interior do Ceará e na capital pernambucana.” O diretor retorna em novembro ao Brasil, para filmar as últimas cenas do filme Correia de Brito, no município cearense de Saboeiro, cidade de nascimento do autor.


A leitura de Adriana Lisboa desencadeou o interesse do cineasta pela literatura brasileira. Foto: Divulgação

A partir do seu livro Flores azuis, no documentário que protagoniza, Carola Saavedra analisa o bem e o mal humanos. Entre uma casa escura em Berlim e a praia do Rio de Janeiro, a autora lê “porque não há nada mais perigoso do que tentar ser bom. A certeza de que na bondade residem os maiores delitos, as maiores injustiças”. Os efeitos são únicos. A câmera sai vasculhando entre luzes, trechos de livros e a relação invisível, mas sempre presente, entre o diretor e o escritor. É como uma conversa pacata cheia de insights, acolhida por um olho fotográfico que aproveita as ocasiões memoráveis do espontâneo.

Os livros Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, e Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, são considerados por Montes-Bradley como dois dos melhores romances que já leu. Os documentários, ainda em fase de produção, trazem perspectivas tanto dos lugares de onde os escritores cresceram quanto de suas visões pessoais sobre o mundo. Ambos, Ruffato e Hatoum, são migrantes em São Paulo: o primeiro, mineiro, o segundo, manauara.

“O foco da minha filmografia não é literatura, nem o escritor. Esse é o gancho para mergulhar na cultura. Estou mais interessado nas circunstâncias que cercam o homem atrás dos escritos de Correia de Brito, por exemplo, do que nos seus trabalhos os quais eu acredito devam ser o foco da crítica literária”, adianta Eduardo Montes-Bradley, para quem não existe forma certa ou errada de explorar a experiência humana, mas “só resultados inigualáveis”.

Além dos autores brasileiros, o diretor está finalizando um longa sobre a poeta ganhadora do Prêmio Pulitzer, Rita Dove, e a relação delicada – em meados dos anos 1960 – entre negros e brancos nos EUA. Ao refletir sobre sua intenção, Montes-Bradley afirma: “Não procuro popularidade. O que espero é saber que, algum dia, seus netos e os meus poderão conhecer, através dos olhos de certos personagens, como foram os dias vividos hoje.” 

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