“Estamos muito felizes com essa edição do Olhar de Cinema. Levantamos mesmo a bandeira para resistir e somos totalmente solidários aos outros festivais. Durante o festival, o que queremos é gerar conexões entre os filmes, os realizadores e o público”, disse à Continente Antônio Jr., o idealizador e diretor artístico do evento. Mas, para além dos encontros e da partilha, o que desponta é um espaço para reflexão acerca do estado de coisas no país e no mundo, com uma programação que permite ao público ter acesso a produções de países distintos, como Índia e Argentina, China e Brasil, e tecer paralelos com o que estamos tentando deglutir aqui dentro.
Sobre o Brasil e suas urgências, por exemplo, tomemos como referência quatro documentários singulares e bem diferentes entre si, com exibição em três mostras distintas: Diz a ela que me viu chorar, de Maíra Bühller, e Chão, de Camila Freitas, ambos na competição; Espero a tua (re)volta, de Eliza Capai, vindo da 69ª Berlinale com o prêmio da Anistia Internacional, na mostra Outros olhares; e Bloqueio, de Victoria Alvares e Quentin Delaroche, documentário escalado para a Olhares Brasil. Se os pensarmos em separado, denotam propostas estéticas diversas, múltiplos interesses, infinitas possibilidades de narrativa; se os pusermos juntos, rascunham uma ideia bruta de país.
Em Diz a ela que me viu chorar, a câmera mira nos moradores do Hotel Social Parque Dom Pedro, que funcionou no centro de São Paulo durante a gestão do prefeito Fernando Haddad. São dependentes químicos. O plano de abertura do longa, aliás, acompanha os instantes em que uma pessoa negra acende um cachimbo e fuma uma pedra de crack. A maioria das pessoas reunidas ali, no espaço que o filme e, por conseguinte, nós, a audiência, vamos deslindar ao longo de 85 minutos, é negra. Uma maioria que carrega nos corpos as marcas de uma existência marginalizada – não possuem todos os dentes, têm cicatrizes de brigas com armas, usam roupas puídas.
Cena de Diz a ela que me viu chorar. Foto: Divulgação
Enquanto dura o filme, acompanhamos seus dramas, suas querelas, suas reivindicações afetivas e sociais. Estabelecemos uma empatia com aqueles personagens, enquadrados no gênero documental, mas com liberdade para se reinventar, nos aromas de ficção, ao se posicionar diante da câmera. Podemos, até, questionar algumas das opções da realizadora, mas, de fato, nos envolvemos com aquele microcosmo que ela nos mostra. E que, tal qual mágica do cinema em perpetuar fantasias, já não mais existe, como atestam os créditos finais: tão logo João Dória foi eleito prefeito da maior cidade do país, em outubro de 2016, mudou-se o eixo para assistir usuários de drogas, eixo esse que ofertava moradia, alimentação, política de redução de danos e afeto em lugares como o Parque Dom Pedro.
Resultado: os homens e as mulheres que vemos em Diz a ela que me viu chorar foram despejados nas ruas e, caso não tenham sido assassinados em alguma operação da Polícia Militar de São Paulo, é lá que devem estar. Que país chancela esse tipo de atitude? O mesmo que levou os caminhoneiros a decretarem paralisações em maio de 2018, conclamando a diminuição do preço do óleo diesel, a saída imediata do então presidente Michel Temer e "a intervenção militar já".
Bloqueio se ocupa disso: Quentin Delaroche e Victoria Alvares pegam o carro e vão até Seropédica, no Rio de Janeiro, para registrar um conclave de motoristas mobilizados na greve e suas carretas estacionadas na beira de uma rodovia federal. Na forma, o filme é simples e direto como Camocim (2017), o trabalho anterior de Quentin: assim como ele foi até uma cidade do interior de Pernambuco e deixou sua câmera seguir um candidato a vereador e sua assessora idealista, agora ele e Victoria chegam e se amalgamam ali, tornando-se quase invisíveis – com ênfase no “quase”.
Sabemos, pois, que o cinema é uma construção e também uma tentativa de apreensão/reconfiguração do real. Os caminhoneiros que aparecem em Bloqueio reafirmam suas convicções para a câmera, ao mesmo tempo em que defenestram uma equipe de reportagem da maior emissora de televisão do Brasil: eles não querem partidos políticos, odeiam a mídia tradicional, preferem os militares no poder.
Em alguns momentos, as falas dos personagens soam como sandices proferidas em rodas de conversas com amigos (“na ditadura, quem era cidadão de bem não sofria nada, só os vagabundos tinham problemas”); em outros, como um filme de terror que acertou todas as suas previsões (“tem que sair todos esses corruptos que estão aí”). Curto e incisivo, o documentário encerra com a informação mais relevante de todas: cinco meses depois da paralisação, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil.
Imagem de Bloqueio traz a paralisação dos caminhoneiros. Foto: Divulgação
O cinema pode contestar, reinventar e distorcer a realidade. A fabulação, inclusive, é um dos seus aspectos ontológicos. Contudo, no caso do Brasil, à luz do que sinaliza a presidência de Bolsonaro, o que vem acontecendo é que talvez a mais inacreditável das ficções não seria capaz de capturar essa brutalidade em vigor com a mesma força com que os documentários. Esses quatro filmes enfeixados pelo Olhar de Cinema servem de testemunho: produzidos antes, agora saem fortalecidos, em discurso e experiência cinematográfica, ao estrearem em um contexto político desfavorável aos campos progressista, científico e artístico.
As exibições de Chão e Espero a tua (re)volta foram antológicas nesse sentido. São dois documentários bem diferentes na linguagem e no modo como nos aproximam dos personagens. Espero... é pop, midiático, acessível e obrigatório: como entra em cartaz em agosto, e como virá com uma estratégia alternativa de distribuição, é daquelas obras que devem ser vistas, comentadas, difundidas, visibilizadas. Tem uma narração em off que pula de Lucas para Marcela e para Nayara, os três estudantes secundaristas que auxiliaram, ao lado de outros, a diretora Eliza Capai na construção do roteiro. E o que eles recontam? As jornadas de junho de 2013, os protestos pelo preço da passagem de ônibus, as ocupações das escolas secundaristas, a mobilização dos estudantes contra o escândalo da merenda em São Paulo...
Em meio a bombas de gás lacrimogêneo e confrontos com a polícia, o filme flui com a urgência e a loquacidade da juventude, comunicando-se com aqueles três protagonistas e, a partir deles, com todos nós que ainda estamos atordoados com tudo que se passou. Espero a tua (re)volta encerra com uma pergunta que é uma provocação: como vai ser daqui pra frente? Será que poderemos protestar?
Houve aplausos ao término da sua sessão, assim como na de Chão na noite do último domingo (9/6). Lá, em uma sala do Espaço Itaú, no Shopping Crystal, vários integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST assistiram ao documentário que nos introduz ao cotidiano de ocupações no estado de Goiás e de “trabalhadores que, com sua luta, mudaram e seguem mudando a vida de milhares de brasileiros”. É dessa forma que a diretora Camila Freitas define seus personagens e é dessa forma que nos apresenta a eles – trabalhadores honestos, criaturas do coletivo, gente que batalha por si e por outros.
Imagem de Chão, sobre a luta por terra no Brasil. Foto: Divulgação
Chão impressiona, tanto pela linguagem que, em vários momentos, chama à contemplação e nos afasta da “câmera borrada” associada ao estilo documental, quanto pelo estudo de personagem feito com Elizabeth Conceição, uma das líderes do MST. Não é por acaso que o foco está nela: ela é firme e forte como a terra que cultiva e quer ver repartida. Uma mulher na liderança é sinal dos novos tempos, mesmo que os “novos tempos” do Brasil não se traduzam, por hora, em novas práticas.
Sob o signo da resistência, Chão deixa, como sementes jogadas para o plantio, um rastro de esperança. A realidade pode ser estarrecedora, e outras produções nacionais em exibição aqui ratificam isso, e pode em alguns momentos nos encurralar, porém há e haverá sempre uma nesga de sol para fazer os grãos germinarem.
LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica da Continente.
* A jornalista viajou a convite da organização do festival