Cobertura

“Gente, vamos prestar atenção, vamos fazer valer”

É o que aconselha a jovem Mayara Gomes, protagonista do documentário 'Camocim', dirigido por Quentin Delaroche, em torno da mobilização política de alguns jovens na cidade pernambucana

TEXTO LUCIANA VERAS, DE TIRADENTES*

27 de Janeiro de 2018

Mayara Gomes ao lado da equipe de

Mayara Gomes ao lado da equipe de "Camocim" em Tiradentes

Foto Leo Lara/Universo Produção/Divulgação

A distância entre Tiradentes e Camocim de São Félix, no agreste pernambucano, supera os dois mil quilômetros, porém as cerca de 200 pessoas que estavam nas cadeiras acomodadas no Largo das Fôrras, no centro da pequena cidade história de Minas Gerais, sentiram-se transportadas na condição de testemunhas privilegiadas da efervescência de uma campanha política do interior do Nordeste. Camocim (2017), documentário de Quentin Delaroche exibido na noite de quinta (25/1) na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, era mais um chamado realista, para lançar mão da expressão cunhada pelos curadores Cleber Eduardo e Lila Foster como mote desta edição 2018, para refletir, via cinema, sobre o Brasil de hoje.

E no Brasil de hoje, em especial na Camocim de 18 mil habitantes, ainda existem pessoas como Mayara Gomes, estudante universitária e força motriz do filme centrado na campanha que ela e um grupo de amigos organizam para que um deles, Cesar, seja eleito vereador. Impossível não ver em Mayara uma juventude que se dissocia do niilismo ou da descrença generalizada na política tão comuns entre os mais jovens. E, de certa forma, não tomar aquilo como um alento. Foi a sinceridade dela que transformou o projeto, como revela Quentin à Continente: “O filme foi pensado de uma forma completamente diferente, tendo Viajo porque preciso, volto porque te amo, como referência. Era uma ficção, tinha até voz em off. Filmei a campanha e, durante a montagem, descobri que o filme era Mayara”.

Camocim, uma produção da Ponte Filmes, fala de maneiras anacrônicas de se fazer política, mas também da urgência em enxergar a própria política como atividade essencial para qualquer cidadão. O filme já circulou por alguns festivais, como a Mostra de São Paulo e a Janela Internacional de Cinema do Recife, porém o que tanto Quentin e Mayara querem é que o documentário circule pelas cidades do interior. “Camocim não tem cinema, então temos que montar uma estrutura, mas queremos exibir lá ainda no primeiro trimestre”, conta Quentin. Leia, abaixo, a conversa dos dois com a Continente.

CONTINENTE Que caminhos levaram você a trazer um olhar estrangeiro para Camocim de São Félix e fazer este filme?
QUENTIN DELAROCHE Sou francês e, oito anos atrás, estava fazendo intercâmbio no Recife, na Unicap, e nasceu este desejo. Quatro anos depois, comecei a fazer uma pesquisa sobre um filme que queria dirigir no interior de Pernambuco e fui visitar algumas cidades. Me dei conta de que, em todas as conversas, depois de cinco minutos de conversa, todas as pessoas falavam de política. Pensei: “Tenho que fazer um filme sobre isso”. Fomos a várias cidades do interior e Camocim nos chamou atenção por ter um histórico político muito violento, ligado a coronéis. Escolhemos essa cidade e comecei a escrever um projeto sobre essa cidade, e era um projeto de filme mais amplo, que falava da campanha, e três semanas antes de começar a campanha, encontrei Mayara em uma praça e o projeto virou.

CONTINENTE E como foi para você se dar conta de que seria a âncora do filme? Porque, no final das contas, a protagonista é você.
MAYARA GOMES Não fazia ideia de que seria tão grande assim. Pra mim, entrariam mais pessoas. Na hora em que vi o primeiro corte do filme, foi bem chocante, de um jeito bom. É bom você ver suas atitudes, e olhando na tela, a gente pode melhorar. É bom se ver para poder se avaliar. Eu gostei bastante da experiência.

CONTINENTE Ao decidir centrar seu filme em Mayara, queria ressaltar um aspecto de um certo idealismo, em especial no momento que estamos vivendo no Brasil, com uma descrença generalizada com a política?
QUENTIN DELAROCHE Foi exatamente isso. A campanha foi durante a culminação do golpe contra Dilma, em 2016. Estávamos lá, e eu super desiludido com a politica, na França tinha Marine Le Pen, Trump seria eleito, ou seja, não era uma coisa nem só de Pernambuco ou do Brasil, é do mundo nesse período atual. Eu iria fazer um filme sobre a política arcaica, sobre coronelismo e encontrei Mayara, que me deu uma esperança, uma luz porque existe gente que acredita ainda na política, não se entregou e vai lutar por direitos. O que tentei botar no filme é essa energia de uma juventude que não se entregou.

CONTINENTE Para você, Mayara, qual o papel da juventude nesse contexto?
MAYARA GOMES Consigo enxergar que a gente ainda vive no tempo dos nossos pais. E isso se reflete muito na política. São pessoas que aceitam o mínimo e se contentam com o clientelismo da política. E a gente, como juventude, vem tentando quebrar isso, que todos temos direitos e como temos deveres e esses deveres pesam a partir do momento que você elege alguém. Quando elege um vereador, você deu seu direito e tem o dever de ir lá cobrar. Como juventude, procuramos ir às reuniões da Câmara, saber qual a movimentação que a gestão está tomando, o jeito que a gestão está trabalhando. Vejo a juventude como um ar fresco. Vemos muito nos movimentos e nas manifestações: é uma galera que não se rende. A juventude está ali tentando lugar por algo que deveria existir há muito tempo.

CONTINENTE Mas você sabe que nem todo jovem tem esse grau de politização.
MAYARA GOMES Sim, a gente vê a falta da educação política e da cidadania. Alguns jovens simplesmente falam como os pais e isso é frustrante.
QUENTIN DELAROCHE Alguns dizem que vão votar em um partido porque a família sempre votou, sem avaliar.
MAYARA GOMES A gente escuta muito isso, muitas pessoas dizendo que não têm mais esperança, que o Brasil acabou. Mas existem milhares de candidatos à presidência e você tem que pensar, você tem que sentar para analisar e ver o histórico e é essa falta de educação política que eu sinto na juventude. Eles não querem saber quem são os representantes ou, por exemplo, quem foram os deputados de Pernambuco que votaram a favor da reforma da Previdência Social. E eu fico dizendo: “Gente, vamos prestar atenção, vamos fazer valer”, sabe? Para abrir os olhos e sempre que tiver oportunidade, falar dessa política que está batendo na porta.

CONTINENTE Quantos votos Cesar teve?
MAYARA GOMES Duzentos. Não foi pouco. O último vereador foi eleito com 300 votos. E isso nos causou um êxtase para não parar. Vamos continuar. Não foi uma derrota. Querendo ou não, foi a nossa primeira campanha, de uma juventude, e são esses os votos que temos que honrar. Estamos continuando o trabalho, os projetos não pararam, continuamos a escutar a população e conversar com os poderes. Vamos à Câmara, acompanhamos os projetos, conversamos com os vereadores.

CONTINENTE Você não se vê nessa posição de futura candidata?
MAYARA GOMES Vejo, mas eu estou procurando me capacitar. Porque para mim, para representar o povo, tem que ter entendimento de administração, de comunidade, e estou buscando me capacitar para não viver daquilo, e sim viver aquilo.

CONTINENTE Camocim foi filmado no meio de uma campanha em que a primeira presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos foi destituída e agora, quando o filme começar a circular, ninguém sabe direito o que vai acontecer. Como vocês pensam esse arco entre o que aconteceu naquela época e os tempos turbulentos de hoje?
QUENTIN DELAROCHE Em relação à política de Camocim e o que acontece nacionalmente, são coisas totalmente diferentes. Tem gente lá que é do PMDB mas é, também, “Fora Temer”. Não vejo como se o que acontece no Brasil afete tanto diretamente o que acontece lá. Tem uma separação entre o cenário nacional e aquela política local.
MAYARA GOMES Particularmente, vejo com uma tristeza imensa que uma mulher que teve o direito de ser eleita e foi traída de forma tão absurda. A campanha nacional não se funde à nossa campanha ali. Tem gente do PMDB lá que estava contra o golpe. Talvez, com o filme sendo exibido nesse ano de mais uma eleição, as pessoas abram os olhos e entendam que o que vale não é quem compra mais votos, e sim quem está lutando de porta a porta e quem está disposto a ouvir e a falar.

LUCIANA VERAS é repórter especial da revista Continente.

*A repórter viajou a convite da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

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