Eu sempre gosto de pensar um disco por suas primeiríssimas palavras, como se fossem não apenas a abertura de uma canção, mas de todo um movimento que dura anos, entre composições, arranjos, gravações, mixagens etc. Vejam como se abre Unfollow the rules, primeiro disco só de inéditas do artista norte-americano Rufus Wainwright desde Out of the game, de 2012:
I was going round from the town to the country Then going back round From the country back to the town I was making rounds from the back to my forehead Then going back round From the front to the back of my crown
É de ciclo que se trata, de fato. Há mais de uma década, Rufus começou a se desdobrar entre o trabalho de compositor e cantor de canções pop (numa linha que poderíamos designar como “o melhor do pop tradicional, seguindo o fio de nomes do Elton John”) e outro caminho, como compositor de óperas que ele próprio não canta, a não ser quando insere uma pequena ária em disco próprio, como é o caso de Les feux d’artifice t’appellent, gravada em 2010, no intimista e intricado álbum de voz e piano All days are nights.
Aliás, nessas idas e voltas, Rufus também musicou alguns sonetos de Shakespeare com uma capacidade de clareza e afeto tão rara, que não exagero em dizer que ele está na lista dos melhores trabalhos melódicos sobre o bardo inglês. A conclusão dessas voltas e retornos com variação é perceber o mundo como inacabado e precário. Como aqui traduzo um bordão, “tem sempre treta no paraíso”:
There's always trouble in paradise Don't matter if your drinks are neat or on ice There's always trouble in paradise Don't matter if you're good or bad or mean or awfully nice
O enfrentamento da insatisfação é tema também da segunda canção Damsel in distress, em que, num tom de autoironia típica das suas letras, que sempre performaram seu homoerotismo explicitamente, Rufus fala consigo como se fosse uma donzela em apuros: “You got exactly what you wanted / But what the hell is that?” (“Você conseguiu exatamente o que queria / mas o que diabo é isso?”). Bem, Rufus conseguiu o que queria, mas não sabemos ao certo o que era nesse tanto que é. Afinal, o álbum passeia pelas várias frentes que ele domina há tempos: a canção de amor (Romantical man, em conversa com o marido Jörn Weisbrodt), a balada melódica quase só-piano (My little you, que parece se dirigir à filha Viva Katherine Wainwright Cohen), as orquestrações requintadas (Unfollow the rules), ou mesmo algo que rende uma dança a dois (Peaceful afternoon), a sátira cool contra o provincianismo (You ain’t big) e as exibições de sua virtuose vocal, como no caso da impressionante Devils and angels (hatred), atípica na série, por sua fusão de sintetizadores e orquestra e por explicitar possibilidades de leitura estritamente política que costumam ser tangenciais em sua obra.
Tudo isso sem medo de flertar com o kitsch. E essa mescla em deriva e retorno se dá na singeleza de um certo ambiente familiar, agora que Rufus vive o casamento há 12 anos enquanto criam a filha adotiva, fora do ritmo de sexo, drogas e pop que marcaram a fase dos álbuns Want I e II. Isso explica talvez a manutenção das influências que podem soar retrô, em parte talvez para agradar fãs que aguardam oito anos por um disco novo, em parte para de fato construir uma espécie de ilha num mundo de seguidores. Donde a singularidade de Unfollow the rules (“des-siga/des-seguir as regras”), um termo muito caro às redes sociais.
Ora, a regra de ouro do pop é precisamente a de se manter antenado com as novas tendências do mercado, segui-las para incorporá-las e surfar na mesma onda dos mais novos, que vão ocupando as paradas de sucessos. Rufus passou uma década de contramão, entre sonetos do século XVI e composição de ópera, apareceu para cantar The sword of Damocles (peça de ópera que, infelizmente, não entrou no álbum), a partir de uma lenda grega antiga, como modo de fazer sátira com Trump. Nesse percurso, já se dedicou profundamente a fazer cover de ninguém menos que Judy Garland, por exemplo. Sem entrar propriamente no mundo da música conceitual, ou da erudição de vanguarda, ainda assim o seu pop é claramente a recusa do pop como expectativa cumprida. Ao seguir uma trajetória de desvios e retornos, sem promessa de um “avanço” propriamente dito, ele para de seguir as regras:
Don't give me what I want Just give me what I'm needing Unfollow the rules Unfollow the path to the seeding
Uma semeadura ao avesso, é possível. O mistério são os seus frutos, como descobrir o tempo de fazer sua colheita.
GUILHERME GONTIJO FLORES é poeta, tradutor e professor na UFPR. Autor de carvão :: capim e História de Joia, entre outros, publicou traduções de Robert Burton, Propércio, Milton, Safo entre outros. É coeditor da revista blog escamandro e membro da banda Pecora Loca.a