Resenha

Pobres criaturas: Frankenstein feminista

Concorrendo a 11 estatuetas, incluindo Melhor Filme, obra do diretor grego Yorgos Lanthimos é estranha e surpreendente

TEXTO Laura Machado

26 de Fevereiro de 2024

Emma Stone venceu Globo de Ouro, Critics Choice Awards e Bafta por interpretação

Emma Stone venceu Globo de Ouro, Critics Choice Awards e Bafta por interpretação

FOTO Divulgação



Em um mundo que mescla a realidade da era vitoriana e os absurdos daquilo que é surreal, Bella Baxter surge em preto e branco nas telas de cinema. Ela possui longos cabelos negros que crescem com uma demasiada rapidez, olhar curioso apontado para o mundo e as pessoas que a cercam, sem esquecer a total falta de pudor, resultado de uma – ainda breve – vida sem contato com as morais rigorosas impostas à vida em sociedade.

Após cometer suicídio e ter seu corpo salvo de maneira quase imediata pelo médico Godwin Baxter, Bella acaba por ser objeto de um experimento do seu salvador, que, com a intenção de entender mais sobre o desenvolvimento humano, a traz de volta à vida com o cérebro de um bebê recém-nascido. É a partir desse ponto que a narrativa começa a se desenvolver juntamente com a sua protagonista, que, depois de conhecer o advogado Duncan Wedderburn, questiona-se sobre a realidade que a cerca e decide partir em uma aventura.

Interpretada pela atriz Emma Stone (La La Land, Cruella), Bella Baxter é a protagonista do novo longa-metragem do diretor grego Yorgos Lanthimos, Poor things. Concorrendo a 11 estatuetas no Oscar, incluindo a de Melhor Filme, a obra, que bebe do expressionismo alemão para entregar aos espectadores um verdadeiro banquete de composições, já está disponível nos cinemas brasileiros.

Brilhantemente construído, o filme é uma adaptação livre do livro homônimo do escritor Alasdair Grey, assim como também traz referências claras ao clássico da literatura, Frankenstein, de Mary Shelley. Com Willem Dafoe (Homem-Aranha, O Farol) como o Dr. Godwin, Ramy Youssef (da série Ramy) interpretando seu ajudante Max McCandles e Mark Ruffalo estrelando como o desdenhoso Wedderburn, o resultado é uma obra suntuosa e de grande beleza.

Já dizia a filósofa francesa Simone de Beauvoir, desbravadora nos estudos do feminismo existencialista: “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Com essa que talvez seja a sua mais conhecida máxima, a estudiosa questionava os papéis de gênero, a opressão sofrida pela mulher e levantava a pergunta sobre como seria o ser humano sem os costumes e a moral na sociedade. Em Poor things essa pergunta parece ser um dos grandes pontos de partida para o roteiro assinado por Tony McNamara e a jornada de Bella Baxter para respondê-la é deslumbrante.

Quando o filme inicia e imagens começam a serem formadas na tela, fica claro que dentro da grande casa de God, como o médico é apelidado por Bella, a mulher com cognitivo de criança vive aprisionada por seu criador sem perceber. Com a chegada de Max e seu afeto, a personagem, sem perceber, está solidificando sua prisão. Em preto e branco, a primeira fase da obra cria um retrato realista da sociedade patriarcal, onde a mulher é propriedade do pai até a prospecção de se casar e tornar-se propriedade de seu marido, além de explorar a visão da mulher como objeto de prazer.

É através da descoberta do prazer próprio, contudo, que Bella Baxter é capaz de emancipar-se e sair em busca de respostas para as questões que começam a borbulhar dentro de sua mente em evolução. Quase como uma fábula, o espectador é convidado a acompanhar Bella nessa jornada rumo à descoberta de sensações, sentimentos e, acima de tudo, ao direito de ser em um mundo com regras e valores criadas por homens e para homens.

Poor things conta com extensivas cenas de nudez e sexo durante seus 141 minutos de duração, que, além de muitas vezes hilárias, são parte do todo capaz de mostrar as possibilidades de  liberdade sexual em uma mente que se desenvolveu sem o polimento da moralidade. É através do sexo que Bella Baxter reconhece mais sobre os seres humanos ao seu redor, reconhece a si mesma e as noções de liberdade.

Sobre a personagem, Emma Stone falou ao The New York Times: “Ela está bebendo do mundo ao seu redor de uma maneira tão única e bonita [...] eu a acho muito inspiradora. Toda pessoa que existe tem tantos aspectos que a constrói na vida adulta e é muito interessante perceber que se você tirar tudo isso, tudo o que sobra é alegria e curiosidade”.

Ambos os adjetivos usados por Stone encapsulam a personagem a que dá vida. Bella Baxter é uma mulher em busca de si, mas também em busca dos outros. Por vezes deixando escapar otimismo e esperança, Poor things é uma obra de caráter existencialista e uma narrativa fantástica sobre a evocação da liberdade desprendida da moral.

 

 

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