Em tempo: The square possui, para além disso tudo, duas cenas antológicas, capazes de figurar no rol das melhores produzidas em 2017. Em uma delas, Christian e uma jornalista norte-americana (Elisabeth Moss, a dona deste ano que passou) disputam a posse de um preservativo em um constrangedor e engraçado momento pós-coito; na outra, o que seria uma performance de um artista durante um banquete de gala se transforma em instantes de puro horror para os convidados. Quem disse que a arte contemporânea, bem como o cinema praticado por Ruben Östlund, é para ser consumido como se fosse champanhe e caviar?
De uma certa forma, a mesma pergunta pode ser aplicar aos executivos da indústria farmacêuticas enquadrados pelos ativistas da Act Up Paris em 120 batimentos por minuto. Os tempos são outros – se The Square exala a ambivalência da atualidade, o filme de Robin Campillo é descaradamente anos 1990, quando receber um diagnóstico de soropositividade ainda podia equivaler a uma sentença de morte – mas o mesmo tipo de questionamento é proposto: quem disse que a vida é para ser consumida com champanhe e caviar quando existem centenas, milhares, morrendo enquanto a Aids segue sua marcha implacável?
Sean (Nahuel Pérez Biscayart) e Nathan (Arnaud Valois) se conhecem a partir das ações empreendidas pela Act Up (organização nascida em Nova York e difundida pelo mundo inteiro com forte viés de ativismo na luta por medicamentos e políticas públicas voltadas para a Aids). Parte da história da Act Up está relatada no documentário e no livro How to survive a plague, de David France, que por sua vez serviu de combustível para o especial sobre os 35 anos de epidemia de HIV e Aids no Brasil publicado pela Continente em dezembro. Na França, como o filme mostra, a entidade era combativa e plural: abrigava gays, lésbicas, soronegativos, mães e filhos hemofílicos, gente em estado de debilidade e outros que acreditavam no vislumbre de uma cura.
A perspectiva de assistir a 120 batimentos por minuto na compreensão de que aqueles anseios de boa parte dos personagens até hoje não foram aplacados não diminui a potência dramática do conjunto montado por Campillo. Sim, é verdade que a Aids segue sem cura, que muito embora a ciência tenha avançado e a terapia antirretroviral tenha tornado a expectativa de vida de um soropositivo igual à de quem não vive com HIV, por exemplo, mas também é verdade que estigma, desinformação e medo persistem e que o ativismo se faz urgente em um mundo onde as novas infecções se alastram entre os mais jovens.
Portanto, em vez de rechaçar o que seria uma espécie de anacronismo, ou de colocar o espectador em uma posição saudosista ou inquieta, o filme navega entre o ativismo, o amor em tempos de cólera e doença que irrompe entre Sean e Nathan e a generosidade no olhar de Campillo para retratar corpos em movimento e o bailado do sexo de um contingente populacional até hoje tratado com escárnio e preconceito. E, assim, desperta em que o vê um sentimento que transita pela vibração com a naturalidade esbanjada no manejo da paisagem humana, pela compaixão por aqueles dramas e pela empatia por um tema tão tabu e relevante em 2018 como era nos anos 1990 de Sean, Nathan e cia.
É sintomático que esses dois filmes sejam exibidos juntos, numa mesma semana, neste início de 2018. Reforça a noção do cinema como espelho da vida e fortalece as possibilidades que a arte tem para aproximar questões em tese díspares, mas nunca dissociáveis.