Resenha

O cinema como espelho da vida

Os principais vencedores de Cannes 2017, 'The Square' e '120 batidas por minutos', em exibição no Recife, aproximam questões, em tese, díspares

TEXTO Luciana Veras

05 de Janeiro de 2018

'120 batidas por minuto' aborda a luta contra a Aids nos anos 1990

'120 batidas por minuto' aborda a luta contra a Aids nos anos 1990

FOTO Divulgação

Por uma dessas coincidências fortuitas, talvez atribuíveis aos ventos de renovação que sopram com o alvorecer de um novo ano, os dois principais vencedores da última edição do Festival de Cannes estão em cartaz no Recife nesta primeira semana de 2018: a Palma de Ouro The square (Suécia/Alemanha/França/Dinamarca, 2017) e o Grande Prêmio do Júri 120 batimentos por minuto (França, 2017), dirigidos, respectivamente, pelo sueco Ruben Östlund e pelo francês Robin Campillo. Com um certo atraso que desgasta qualquer cinéfilo, é certo, mas pelo menos a tempo de ser apreciados antes das concorridas e já esperadas indicações ao Oscar – e, no caso do vencedor da Palma, da cerimônia de premiação do Globo de Ouro, para o qual está indicado a melhor filme estrangeiro.

No Brasil, The square recebeu o subtítulo de A arte da discórdia. Didatismo em excesso é característica recorrente nas traduções ou acréscimos das versões nacionais, bem sabemos, e nesse caso a adição é desnecessária. O título - “o quadrado” - se refere a uma obra de arte contemporânea mostrada com pompa e circunstância no museu chefiado pelo curador-chefe Christian (Claes Bang), situado em Estocolmo e frequentado por doadores abastados e gente que não sabe lá muito bem distinguir entre uma pilha de terra alocada em um canto de uma sala expositiva e uma instalação. Christian é protagonista e âncora dramática do filme: é ele quem vai direcionar os rumos da narrativa a partir de um episódio banal – o roubo, ou perda, do seu telefone celular.

Incitado pela perspectiva de poder localizar seu telefone e de rastreá-lo até um edifício em um bairro não tão trend da capital sueca, Christian pede ajuda a um funcionário do museu e decide adotar uma tática de guerrilha: uma carta em termos agressivos deixada em cada uma das caixas de correio das dezenas de apartamento, demandando o retorno da sua propriedade bem como dando as instruções para deixá-lo em uma lanchonete numa estação. O que acontece, a partir daí, é acúmulo de situações e tensões que evidencia o quão disposto Ruben Östlund estava a radiografar um certo modo de viver contemporâneo cujas aparências não resistem ao primeiro empurrão.

Mais: há, em The square, um outro impulso de deslindar tudo que, à primeira vista, parece sólido e assim explorar as contradições da experiência de viver e conviver em sociedade no século 21. Christian, sob vários aspectos, é um excelente cidadão: bom pai, ótimo profissional, homem charmoso, curador inteligente… Mas é, também, machista, preconceituoso e egoísta. Tal dualidade, tão típica em um contexto de exibição dos perfis nas redes sociais versus o comportamento na “vida real”, soa meio Black mirror, a série de ficção científica/caos tecnológico cuja quarta temporada acaba de ser disponibilizada na plataforma Neflix. Em especial, um dos novos episódios, chamado Crocodile, traz paralelos com o que se narra no vencedor da Palma de Ouro: pode uma arquiteta renomada e premiada ser responsável por um assassinato?

No caso de Christian, como pode uma pessoa tão respeitável descer a níveis de violência inimagináveis? A ambiguidade do protagonista é, também, a ambiguidade da própria Europa. Em fevereiro de 2017, a Continente publicava uma entrevista com o cientista político, escritor e artista francês Camille de Toledo em que se questionava a noção do Velho Mundo. Essa noção é implodida em The square. O embate entre Christian e uma criança imigrante e a celeuma criada quando um vídeo promocional para atrair visitantes ao museu é lançado na rede, explorando ideias de terrorismo e xenofobia, são duas ferramentas usadas pelo diretor para construir um retrato ora incômodo, ora divertido até, mas sempre incisivo, de uma contemporaneidade fraturada e sem muitas perspectivas de se recompor.

Em tempo: The square possui, para além disso tudo, duas cenas antológicas, capazes de figurar no rol das melhores produzidas em 2017. Em uma delas, Christian e uma jornalista norte-americana (Elisabeth Moss, a dona deste ano que passou) disputam a posse de um preservativo em um constrangedor e engraçado momento pós-coito; na outra, o que seria uma performance de um artista durante um banquete de gala se transforma em instantes de puro horror para os convidados. Quem disse que a arte contemporânea, bem como o cinema praticado por Ruben Östlund, é para ser consumido como se fosse champanhe e caviar?

De uma certa forma, a mesma pergunta pode ser aplicar aos executivos da indústria farmacêuticas enquadrados pelos ativistas da Act Up Paris em 120 batimentos por minuto. Os tempos são outros – se The Square exala a ambivalência da atualidade, o filme de Robin Campillo é descaradamente anos 1990, quando receber um diagnóstico de soropositividade ainda podia equivaler a uma sentença de morte – mas o mesmo tipo de questionamento é proposto: quem disse que a vida é para ser consumida com champanhe e caviar quando existem centenas, milhares, morrendo enquanto a Aids segue sua marcha implacável?

Sean (Nahuel Pérez Biscayart) e Nathan (Arnaud Valois) se conhecem a partir das ações empreendidas pela Act Up (organização nascida em Nova York e difundida pelo mundo inteiro com forte viés de ativismo na luta por medicamentos e políticas públicas voltadas para a Aids). Parte da história da Act Up está relatada no documentário e no livro How to survive a plague, de David France, que por sua vez serviu de combustível para o especial sobre os 35 anos de epidemia de HIV e Aids no Brasil publicado pela Continente em dezembro. Na França, como o filme mostra, a entidade era combativa e plural: abrigava gays, lésbicas, soronegativos, mães e filhos hemofílicos, gente em estado de debilidade e outros que acreditavam no vislumbre de uma cura.

A perspectiva de assistir a 120 batimentos por minuto na compreensão de que aqueles anseios de boa parte dos personagens até hoje não foram aplacados não diminui a potência dramática do conjunto montado por Campillo. Sim, é verdade que a Aids segue sem cura, que muito embora a ciência tenha avançado e a terapia antirretroviral tenha tornado a expectativa de vida de um soropositivo igual à de quem não vive com HIV, por exemplo, mas também é verdade que estigma, desinformação e medo persistem e que o ativismo se faz urgente em um mundo onde as novas infecções se alastram entre os mais jovens.

Portanto, em vez de rechaçar o que seria uma espécie de anacronismo, ou de colocar o espectador em uma posição saudosista ou inquieta, o filme navega entre o ativismo, o amor em tempos de cólera e doença que irrompe entre Sean e Nathan e a generosidade no olhar de Campillo para retratar corpos em movimento e o bailado do sexo de um contingente populacional até hoje tratado com escárnio e preconceito. E, assim, desperta em que o vê um sentimento que transita pela vibração com a naturalidade esbanjada no manejo da paisagem humana, pela compaixão por aqueles dramas e pela empatia por um tema tão tabu e relevante em 2018 como era nos anos 1990 de Sean, Nathan e cia.

É sintomático que esses dois filmes sejam exibidos juntos, numa mesma semana, neste início de 2018. Reforça a noção do cinema como espelho da vida e fortalece as possibilidades que a arte tem para aproximar questões em tese díspares, mas nunca dissociáveis. 

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