O 'Coruja Muda' tem muito a nos dizer
No terceiro álbum solo, Siba consolida a síntese rítmica que vem marcando o seu trabalho e se embrenha por figuras de animais para questionar a nossa humanidade
TEXTO Leonardo Vila Nova
27 de Setembro de 2019
Siba em ensaio fotográfico do álbum 'Coruja muda'
Foto José de Holanda
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Ao se olhar no espelho, o que você vê? Se vê bicho ou gente? Sérgio Veloso viu uma coruja, que o olhava e nada dizia. Na verdade, esse silêncio lançava um questionamento: até onde vai o humano e o animal que existe em cada um de nós? Sérgio – ou melhor, Siba – procurou a resposta disso através da música, dos versos e do som que dão vida a Coruja muda, seu terceiro álbum solo, lançado no início de setembro. No disco, Siba enfatiza a síntese rítmica que começou em Avante (2012) e passou por De baile solto (2015) e se coloca diante da indefinição dos limites que existem entre ser gente ou ser bicho, de forma lúdica e – por que não? – política.
Coruja muda seria apenas uma continuação do De baile solto, mas foi tomando corpo e identidade própria quando Siba descobriu qual seria “o mote” do álbum. “O disco só se resolve quando eu tenho um corpo de texto que aponta para alguma direção”, diz Siba, “e eu percebi que eu tinha uma certa quantidade de material que passava por um uso de imagens indeterminadas de ‘gente-bicho’ e ‘bicho-gente’. O disco foi se construindo, então, dessa ideia: de que há um espaço indeterminado em nós que a gente entende por nossa parte humana e nossa parte animal”, explica.
Ao ouvir atentamente, percebe-se a aparição dessas imagens em grande parte das letras presentes em Coruja muda, mas elas vão além da mera representação ou alegoria. “Esse espaço indeterminado entre humano e animal já foi discutido infinitamente pelos filósofos, pelos cientistas, ao longo da história... e também foi mudando. Um dia desses, considerava-se que pessoas de cor não eram humanas e sequer tinham alma”, chama a atenção. “É um assunto que tem ressonâncias políticas muito profundas, como o racismo, por exemplo. O nosso mundo capitalista é baseado e tem muito a ver com essa noção de que a fronteira da humanidade é maleável. Muito fácil considerar um outro homem como não tão humano assim”, continua. “E também usamos metáforas de animais para uma aplicação pejorativa, de muitos atos que os próprios homens cometem, na verdade.”
E a intrigante figura da coruja muda, o que simboliza nessa narrativa? “Ela completou o processo, me ajudou a me situar dentro desse corpo de texto. Seria a minha imagem animal, ou meio animal, que tá ali no disco”, responde Siba.
Depois dos sucessos de Avante (2012) e De baile solto (2015), Siba lança Coruja muda. Foto: José de Holanda/Divulgação
O DISCO
Produzido por João Noronha, em parceria com Siba, Coruja muda vem consolidar a sonoridade experimentada e construída pelo artista em seus trabalhos anteriores. O que ainda era uma busca em Avante – em um processo belamente registrado no documentário Nos balés da tormenta – e foi radicalizado em De baile solto – aliado a um discurso político afiado e potente –, agora ganha uma maior coesão. Esse “híbrido”, que põe em diálogo as referências musicais e poéticas da Mata Norte pernambucana e a inspiração na música africana – em especial a guitarra congolesa –, é a liga fundamental do novo álbum, ao longo de 11 faixas que referendam a assinatura musical tão própria criada por Siba.
Entre as participações de Coruja muda estão Chico César, Alessandra Leão, Mestre Anderson Miguel, Renata Rosa, além do “norte-americano garanhuense” Arto Lindsay, do rapper Edgar, dos músicos Dustan Gallas (teclados/synth), Lulinha Alencar (acordeon) e Ricardo Carneiro (violão), e do naipe de metais composto por Galego do Trombone (trombone), João Minuto (sax tenor), Leandro Gervázio (tuba) e Roberto Manoel (trompete). A banda que acompanha Siba no álbum – e na estrada – é Rafael dos Santos (bateria), Lello Bezerra (guitarra e baixo) e Mestre Nico (voz, percussão e trombone).
Talvez passe despercebido aos ouvidos, mas o coco, em suas variações (de roda, de embolada, rural etc.), é uma referência muito presente em Coruja muda. Não exatamente o ritmo, mas a poética, a construção dos versos, da métrica. “O coco, antes de mais nada, é um estilo de poesia. E, no disco, predomina uma rítmica poética muito próxima do coco. Não se trata de representar o coco ou de fazer um disco a partir do coco. Mas, no fim das contas, a referência rítmica da poética do coco prevalece no disco”, explica Siba.
Um dos destaques de Coruja muda também é Mestre Nico, que tem uma participação importante no álbum, fazendo contraponto vocal a Siba em grande parte das faixas. “Ao escolher esse caminho de ir rente ao coco, o jogo de pergunta e resposta se torna essencial e central. Fatalmente, eu precisaria de alguém ou de um coro para me responder, não teria como escapar disso. E, ao mesmo tempo, a relação com Nico só tem crescido. Ele brilha muito, né? Só não brilha mais porque é no disco, não é ao vivo. Eu tenho até que tomar cuidado, se não ele vai tomar o meu lugar”, brinca Siba.
Munido dessas referências e com esse time em volta, Siba desfia uma narrativa poética e musical que vai das “inocentes” alegorias à acidez crítica, passando por questões existenciais, políticas, além de algumas boas doses de humor que ele traz em algumas letras. O start de Coruja muda é a canção título do disco, que versa sobre o que vem a ser essa criatura (o próprio Siba) em meio ao universo cantado. A voz que aparece no final, acompanhando o riff que marca a música, é do paraibano Chico César.
No rol das canções que trazem os animais como personagens ou referências, Só é gente quem se diz não deixa dúvidas: Aranha, cigarra, abelha, muriçoca (pernilongo, para quem não domina o “pernambuquês”), tatu, urubu, pato, jacaré, macaco... “a bicharada deita e rola superando a humanidade, em coerência e dignidade, ao longo da letra”, diz Siba. Outra é Daqui pracolá, que traz reminiscências da infância vivida por Siba no Agreste pernambucano. Um cenário povoado por uma fauna e flora que brincam de vida e morte sob o olhar do poeta.
Já Carcará de gaiola traz à baila o maracatu de baque solto e faz uma alusão à prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e a todo o contexto que cerca esse episódio. É um dos momentos em que o discurso político – habilmente presente em diversas nuances poéticas do álbum – ganha terreno na narrativa, o que, segundo Siba, é inevitável. “Nesse momento em que estamos, fica difícil ignorar a dimensão política do que se faz e do que se diz. Não é fazer de conta que é só uma questão de um disco bom, um livro bom, uma dança legal. De fato, não é. Ela (a política) está intrínseca ao ato de fazer arte, de se colocar no mundo. Então, em tudo aí tem uma política implícita ou explícita.”
O reforço poderoso do naipe de metais no disco – que remete aos tempos da Fuloresta – se faz presente em Carcará de gaiola e em duas regravações de Siba: Meu time e Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Esta, segundo Siba, “atravessou todas as mutações que meu trabalho sofreu desde que ela existe” e continua, firme e forte, no repertório. As novas versões instigam à dança, mesmo que involuntariamente. Quem ouvir Coruja muda do começo ao fim, sem pausa, irá, no mínimo, bater um pezinho marcando o ritmo em um ou outro momento do disco.
Shows de lançamento do álbum aconteceram no Sesc Pompeia. Foto: José de Holanda
A influência da música africana no som de Siba se evidencia nas canções AZDA (Vem batendo asa) e O que não há. A primeira é uma versão para o português de uma composição de Franco, um dos mais importantes ícones da música congolesa, falecido em 1989. A segunda, como conta Siba, traz claramente os “genes” da música feita por Franco junto à banda OK Jazz, nos anos 1970. Ela fala da “violência muda da classe média brasileira” e traz no coro as vozes de Alessandra Leão, Renata Rosa e Mestre Anderson Miguel. Uma das mais bonitas canções do álbum.
Tamanqueiro é uma das faixas em que o instrumental desconstrói o que se espera da rítmica que a sua poesia sugere. Baseada numa carta real, que solicitava um tamanco por encomenda, ela foi composta como uma embolada, mas se transmuta em outra coisa. Além da própria banda de Siba, Tamanqueiro traz os grunhidos da guitarra de Arto Lindsay, o rapper Edgar, que toca um ultraste (instrumento de sua criação), assim como Dustan Gallas, nos teclados e synths, e o produtor João Noronha, na guitarra.
Vale ainda lembrar os dois singles de Coruja muda. Lançado no começo do ano, às vésperas do carnaval, Barato pesado é o “frevo abolerado” do álbum. Uma verdadeira exaltação à festividade e à alegria – como é o carnaval –, com cunho de “pseudosseita religiosa”, em que, para participar, basta se jogar sem medo nem culpa. Já em Tempo bom redondin – lançado duas semanas antes do álbum completo – encontramos a cadência rítmica do coco mais nítida. Na música, Siba fala sobre “a corrida inútil contra o tempo”. Ela é um “hino à preguiça e atualização da cansada tese de que não vale a pena levar nada tão a sério”, define o artista.
Coruja muda é um disco que não se descortina de imediato ao ouvinte. Por mais que possa aparentar ser uma continuação do que Siba já vem fazendo nos últimos anos, a obviedade passa ao largo. Talvez seja o menos óbvio dos três álbuns solo do cantor. Profundamente imagético, de alquimia e trançado complexos, Coruja muda exibe e confirma a habilidade de Siba para a conjugação incomum entre elementos de naturezas diversas, seja no campo rítmico, no poético ou no conceitual. Cada estranheza que o seu som pode despertar em nós (para, depois, nos envolver), cada verso que mais intriga do que diz... tudo isso está repleto de sentidos e significados não tão nítidos assim, mas que estão ali, diante do ouvinte, a todo instante.
Por tudo isso, é preciso estar atento e não se desviar: a tal coruja muda tem muito a nos dizer.
LEONARDO VILA NOVA, jornalista e músico.