Resenha

Morto não fala, mas diz muito

Baseado no conto homônimo do jornalista policial Marco de Castro, 'Morto não fala' explora a violência e a questão de classe no Brasil

TEXTO Augusto Tenório

16 de Outubro de 2019

Daniel de Oliveira como Stênio em 'Morto não fala'

Daniel de Oliveira como Stênio em 'Morto não fala'

Imagem Divulgação

Os lamentos dos cadáveres que chegam a uma unidade do Instituto Médico Legal (IML) da periferia de São Paulo podem ser ouvidos em Morto não fala (2019), obra que marca a estreia de Dennison Ramalho nos longa-metragens. Engana-se, porém, quem parte da premissa de que o terror reside apenas no suspense ou na plasticidade dos órgãos e sangue dos que já partiram: o filme costura com as mortes e discursos que perpassam a narrativa o recado de que o Brasil é um país violento, no qual a morte tem classe social favorita e essa classe mata, morre e não se surpreende com a tragédia dos seus iguais.

O longa, baseado no conto homônimo do jornalista policial Marco de Castro, conta o drama de Stênio, plantonista noturno do IML que possui o dom de conversar com os cadáveres. Os corpos que chegam à unidade possuem, quase todos, a mesma história: são de comunidades e perderam a vida de maneira violenta. O personagem interpretado por Daniel de Oliveira vive em uma dessas comunidades e, por fazer parte desse ambiente, quebra mais uma barreira de comunicação. A tranquilidade desta rotina de sessões de conversas com os mortos é interrompida quando um deles revela a Stênio um segredo sobre sua família, levando tragédias para a casa do plantonista por causa da quebra de uma regra inviolável no contato com o mundo dos mortos.

O drama, contado do começo ao fim sob uma fotografia de luz verde-escura, é incessante com a violência. Ela se faz presente, inicialmente, com a naturalidade da apresentação da habilidade de Stênio. Não há explicação nem introdução: acontece de forma nua e crua, diante de um morto que acaba de ser costurado pelo plantonista que comanda o “lava-rápido de peru”. O nome informal da ala é reflexo do fluxo de mortes na periferia e do destrato dos funcionários com os corpos que chegam ao local, que mesmo após a morte são alvo de piadas com as possíveis causas dos óbitos.

Para além da violência plastificada nas entranhas e no sangue, ela também se faz presente na banda sonora, que inclui as transmissões de rádio e TV que fazem parte do filme, trazendo notícias de tiroteios, mortes e até pregações agressivas de neopentecostais. A violência maior, porém, talvez seja construída na rotina de pobreza do protagonista, que mesmo levando uma vida com sufoco financeiro, se sujeitando a salário atrasado, dívidas na mercearia e convívio conflituoso com sua família, não larga o emprego.


Morto não fala também aborda drama familiar de família pobre. Imagem: Reprodução

Toda a problemática social canalizada por Stênio e potencializada pelo seu dom de conversar com os mortos conduz o público a um acompanhamento quase dostoievskiano da construção de uma mente atormentada pelos seus erros e pela miséria que a cerca, seja ela sobrenatural ou não. A formação dessa tensão, atravessada pelas violências simbólicas conduzidas por Dennison Oliveira com ritmo único, culmina em reações físicas que vão além do susto,  se tornando emocionais à medida que o filme nos aproxima do personagem de Daniel de Oliveira. A imersão na narrativa só é quebrada pela escolha técnica de computadorizar a atuação dos personagens falecidos nos rostos dos mortos, o que pode causar incômodo.

Encontramos em Morto não fala um filme de gênero que utiliza o terror como ferramenta de denúncia, e, nesse sentido, torna-se difícil medir até que ponto o incômodo da expressividade dos mortos é proposital. Pode-se notar, porém, que a atuação de Daniel de Oliveira impulsiona Stênio para um patamar expressivo que quebra o estereótipo do funcionário calejado e frio do Instituto Médico Legal. Destacam-se também as atuações de Fabíula Nascimento (Odete), Bianca Comparato (Lara) e Marco Ricca (Jaime).

VICTOR AUGUSTO TENÓRIO é estudante de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e estagiário da Revista Continente

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