Resenha

Juvenil Silva em voo existencial

Cantor, compositor e músico pernambucano lança 'Suspenso', seu terceiro álbum. O disco veio ao mundo via crowdfounding e é tido como o mais autobiográfico de sua carreira até agora

TEXTO Alef Pontes

27 de Março de 2018

Juvenil Silva em fase introspectiva

Juvenil Silva em fase introspectiva

Foto Danilo Galvão/Divulgação

Numa noite de quarta-feira de setembro, enquanto um público seleto assistia à apresentação da sazonal banda Sabiá Sensível no sexto andar do Edifício Pernambuco, era possível ver, da sacada deste prédio que se transformou em ponto de ebulição cultural no centro do Recife, surgir no chão da Avenida Dantas Barreto o verso: “Tudo que tem asas quer voar”. Um prenúncio da campanha que resultaria, meses depois, no lançamento de Suspenso, terceiro álbum autoral de Juvenil Silva. Nome ativo no front e nos bastidores da música independente, sempre inquieto seguidor do lema “faça acontecer”, o músico e produtor pernambucano apresenta agora as canções mais pessoais de sua carreira.

Em um repertório de 13 faixas, o sucessor de Desapego (2013) e Super qualquer no meio de lugar nenhum (2014) marca o amadurecimento e a busca pela experimentação estética do artista. Se os trabalhos anteriores foram marcados pelo folk rock psicodélico que o levou a estampar capas dos principais jornais e circular em festivais pelo país, na nova fase, Juvenil investe no balanço grooveado e no convite à dança para compor o repertório. Suspenso vem mais suingado, com influências de ritmos latinos e do brega pernambucano – vistas em uma maior presença das percussões –, sem deixar de lado uma certa “fritação” psicodélica.


Foto: Débora Bittencourt

Para lançar o trabalho, gravado entre o Recife e São Paulo, ele contou com o impulsionamento de fãs e artistas parceiros em movimento coletivo. Em uma bem-sucedida campanha virtual de financiamento, realizada entre dezembro de 2017 e fevereiro deste ano, no Catarse (goo.gl/R6m643), o músico angariou o apoio de mais de 150 seguidores, além de outros muitos envolvidos, para realizar a masterização, prensagem e divulgação do álbum. “Bicho, para fazer os meus primeiros álbuns, eu contei, basicamente, com muita ajuda dos amigos e músicos mais próximos. E fiz tudo muito na 'guerrilha', com as ferramentas que eu tinha em mãos, porque tinha que colocar pra frente. Desta vez, quis fazer uma coisa mais 'caprichada', um material mais elaborado, com calma”, conta o autor, sobre a busca pelo aprimoramento.

Abrindo mão da introspecção presente nas letras de quatro anos atrás, agora Juvenil quer levantar questões e expandir horizontes. Já na primeira música, Degolado, os elementos da soul music ajudam a expurgar os sentimentos de um término amoroso. Na sequência, Homens pardais, a única não assinada por ele, com autoria de Jalu Maranhão, é o groove que puxa versos sobre a coragem para transcender a dor. Em um dos destaques do disco, Se o meu legal te faz mal, composição guardada na gaveta por mais de 10 anos, ele se inspira no brega romântico que marcou o imaginário coletivo da periferia pernambucana, com coros que resgatam canções icônicas de nomes como Labaredas e Reginaldo Rossi. Na instrumental Solitude espontânea, por outro lado, referências da música caribenha se encontram com o hard rock norte-americano.


Foto: Débora Bittencourt

DIANTE DO ESPELHO
Apesar de só vir ao mundo agora, o trabalho foi gestado entre 2015 e 2016, período no qual boa parte dos brasileiros se deparou com desilusões, perdas e falta de esperança a partir das mudanças sociopolíticas ocorridas no país. Temáticas que frutificaram excelentes álbuns sobre transformação e resistência, como Morte e vida (2015), da Eddie, A mulher do fim do mundo (2015), de Elza Soares, e Duas cidades (2016), da Baiana System. Esta foi também uma fase de duras mudanças para Juvenil, inspirando o trabalho “mais autobiográfico até então”, como define.

As músicas, segundo conta, surgiram num período de “bad”, quando estava na pior – viveu o fim de um relacionamento e chegou a ficar sem residência fixa –; o tal estado de “suspensão”. Essa história conta nos versos de Zanza:

Eu suspenso, morando na mochila das minhas costas
Aprendendo a nadar numa maré de azar
Aprendendo a zanzar sem nenhum poleiro pra pousar


Foto: Débora Bittencourt

Em outra faixa, Vacas magras, é mais direto ao cantar:

Eu quero te levar pra viajar
quando essa fase ruim passar,
das vacas magras, dentro de casa,
no vão do meu congelador.

Dores e dificuldades à parte, o álbum tem como temática principal a desconstrução dos conceitos de amor. Temática pra lá de batida na música mundial, mas sobre a qual o artista propõe uma reflexão enviesada: “É preciso desfazer as amarras morais sobre o sentimento mais cantado do mundo”. No lugar no romantismo exaltado, ele apresenta um amor também feito de desencontros e ausências, que é carne, frágil e precisa se transformar para encontrar plenitude na tão sonhada liberdade. Em Gaiola, evidência de sua influência no rock psicodélico, Juvenil contesta a liberdade nas relações. “Tudo o que está preso quer fugir por aí, mesmo que depois tenha vontade de voltar”, canta ele, antes da frase filosófica, mencionada no início deste texto, que deu título à campanha de financiamento coletivo.


Foto: Débora Bittencourt

Numa época em que os mecanismos públicos de incentivos são sumariamente desmontados e as portas para o apoio privado se encontram ainda mais fechadas, o artista precisa buscar ser livre das amarras. E livre não significa andar só. O espírito de coletividade e a proximidade entre o autor e seu público ainda são as melhores ferramentas para continuar criando, como atestou Juvenil. “No fim, de uma forma ou de outra, nós vamos dançar”, é assim, com um certo otimismo (ou ironia), que ele encerra seu terceiro disco. Seu recado nos lembra: é preciso seguir e extravasar.

Ouça Suspenso no Spotify

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MAIS SOBRE SUSPENSO:

- O projeto gráfico de Suspenso faz referência ao arcano do Tarô O enforcado, que traz um homem pendurado pelo pé. Olhando o mundo sob uma outra perspectiva, em suspensão incomum, a carta propõe a ambiguidade: “O homem ou o mundo está de ponta-cabeça?”. Na capa do disco, no entanto, ele retoma a série de intervenções realizadas nas ruas do Recife que integrou a divulgação do projeto;



- além da banda base, formada por Rodrigo Padrão (guitarra), Leo Vila Nova (percussão) e Gilvandro R (bateria), o disco conta com o reforço do piano de Amaro Freitas, do teclado de Chiquinho Moreira, da percussão de Homero Basílio e das vozes de Nívea Maria, Kamila Souza e Joana Kobbe;

- a bem-sucedida campanha de financiamento atingiu a marca dos 107%. Entre as recompensas do crowndfunding, Juvenil colocou o link do disco, o caderno de anotações onde rascunhou as letras do disco, um passeio com bate-papo pela Rural de Roger de Renor e até nudes seus;

- o disco foi escolhido para inaugurar o projeto itinerante Rádio Cadê, promovido pelo Som na Rural, com audição em praça pública no Recife;

- a faixa Amor primo foi feita sob encomenda para a trilha sonora de Superpina, primeiro longa-metragem do cineasta Jean Santos. A parceria rendeu ainda um videoclipe para outra música do disco, Cabeça, coração, estrelado pela artista plástica Iza do Amparo;



- já disponível nas principais plataformas de streaming, Suspenso terá show de lançamento oficial no dia 7 de abril, no Espaço Cultural Lambe-Lambe (Rua da Conceição, 192, Recife).

ALEF PONTES é jornalista e produtor cultural.

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