Resenha

Fórmula Marvel atrapalha 'Wakanda para Sempre'

TEXTO Mariane Morisawa

10 de Novembro de 2022

Em 'Wakanda para sempre', outra pessoa assume a posição de Pantera Negra, o super-herói protetor de Wakanda

Em 'Wakanda para sempre', outra pessoa assume a posição de Pantera Negra, o super-herói protetor de Wakanda

Imagem Divulgação

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Como continuar em frente quando seu rei morre repentinamente, sem deixar herdeiros claros? Ou, no caso de Pantera Negra (2018), como seguir depois da morte de seu ator principal, o carismático e adorado Chadwick Boseman? Era esse o desafio de Kevin Feige, diretor do Estúdio Marvel, e de Ryan Coogler, diretor e roteirista, em Pantera Negra: Wakanda para Sempre, que estreia nesta quinta-feira (10), no Brasil. O filme já estava escrito quando Boseman morreu de câncer, em agosto de 2020. Foi preciso reimaginá-lo em menos de um ano, em meio à pandemia e à perda. Como costuma ser no luto, há certo caos envolvido na produção.

ATENÇÃO: o texto a seguir tem discussões sobre a trama de Pantera Negra: Wakanda para sempre, mesmo sem entrar em detalhes mais importantes.

De cara, Wakanda para Sempre lida com a morte de seu ator, de seu rei. Shuri (Letitia Wright), a irmã mais nova e gênio da família, tenta encontrar a cura para T’Challa. Mas não consegue. Começa então uma bonita homenagem, com um funeral que é ao mesmo tempo do protagonista e de Boseman e que chora a morte e celebra a vida ao mesmo tempo, trazendo para a tela as culturas africanas. Em seguida, vem a vinheta, desta vez sem música e só com fotos de Chadwick Boseman, fechando a cerimônia para começar o filme da Marvel.


Foto: Divulgação

Se Pantera Negra fosse escrito por George R.R. Martin, criador de As Crônicas de Gelo e Fogo, haveria uma guerra pelo trono envolvendo mil estratagemas, golpes e batalhas. Ou pelo menos o drama de um rei – ou rainha – relutante ou sedento demais de poder. Mas Pantera Negra é um produto da Marvel, em que o drama precisa ceder lugar ao espetáculo e ainda apresentar os personagens que depois vão aparecer em outros produtos da Marvel. Não há conflito na transição. Um ano após a morte de T’Challa, quem governa é sua mãe, a rainha Ramonda (Angela Bassett). Ela faz um discurso decolonial de aplaudir em pé, acusando as grandes potências, especialmente Estados Unidos e França, de tentar se apoderar do vibranium, o metal poderoso exclusivo de Wakanda, para fins de guerra. Ramonda é a rainha, mas não é Pantera Negra. Ela sabe que seu país, agora aberto para o mundo, está desprotegido.

A força do primeiro Pantera Negra vinha principalmente dessa afirmação do continente africano e de sua cultura, da introdução de temas como colonização e resistência, inclusive nas diásporas, da novidade de ver um elenco formado quase exclusivamente por pretos, com personagens que tinham suas razões mesmo quando precisavam fazer o papel de vilões.

E a força que há em Wakanda para Sempre está na continuidade dessas discussões, com a chegada de um novo reino escondido, agora no fundo do mar. Talocan é formado por povos mesoamericanos forçados a se refugiar devido à brutal colonização espanhola. Seu líder é Namor (Tenoch Huerta), o Príncipe Submarino dos quadrinhos, um mutante adaptado para a vida subaquática, aqui transformado em um indígena latino-americano. Acontece que esse país secreto agora está ameaçado porque as grandes potências da superfície querem encontrar vibranium a qualquer custo, inclusive no fundo do mar. E que bacana é ver atores latino-americanos, sempre sub-representados, trazendo um pouco da rica cultura e maias e astecas para a tela.

Namor é um antagonista nos moldes de Killmonger (Michael B. Jordan). Você entende suas razões ou até concorda com elas, mas seus métodos são pouco defensáveis. Aqui, ele quer a ajuda de Wakanda para capturar e matar a cientista que criou um detector de vibranium. Acontece que ela é apenas uma garota, Riri Williams (Dominique Thorne). E é aí que começa a confusão para Wakanda para Sempre.

 
Angela Basset é rainha Ramonda, que passa a governar Wakanda um ano após a morte de T'Challa. Foto: Divulgação

Como muitas vezes nos filmes da Marvel, há uma tensão entre tentar ser um bom filme, agradar aos fãs e dar continuidade ao Universo Cinematográfico Marvel. A pressão é ainda maior neste caso, porque Ryan Coogler é um cineasta autoral, e Pantera Negra é o único longa do UCM a concorrer ao Oscar de melhor filme e o único a levar três estatuetas (figurino, trilha e design de produção). Então, além de lidar com coisas sérias, como o luto, a escolha de um sucessor e identidade, representatividade, resistência e descolonização, temas caros ao diretor, o filme precisa ter muitas cenas de ação, apresentar novos personagens que serão vistos em outros filmes ou séries e ter um vilão, mesmo que seja um vilão com causa. Junte-se a isso tudo o roteiro ter de ser reformulado, e o filme ser feito em meio à pandemia, sendo paralisado por meses devido a uma contusão de Letitia Wright.

Com tanta coisa, o tempo ficou curto, mesmo que o filme tenha 2 horas e 41 minutos de duração. A morte de T’Challa é devastadora para Wakanda, principalmente para Shuri, que perde o rumo totalmente, Ramonda, a general Okoye (Danai Gurira) e Nakia (Lupita Nyong’o), a amada do rei. Só que o drama delas fica perdido em meio a cenas de ação genéricas, sem propósito.

O mesmo acontece com Namor e Talocan. A sacada de transformar o Príncipe Submarino em um maia-asteca é muito boa, porque torna o personagem e Talocan espelhos de T’Challa e Wakanda. “Uma terra protegida onde as pessoas não têm de partir, nem mudar quem são”, diz Namor, admirado pelo país africano. Sua gente, afinal, teve de fugir de sua própria terra, morrer para renascer como outro povo. Sua luta é legítima. Mesmo assim, a semelhança e o conflito podiam ter sido mais bem explorados.

 
Shuri (Letitia Wright) participa do funeral do irmão, T'Challa. Foto: Divulgação

A ideia de que tudo está conectado parecia bem legal no começo, mas agora está emperrando as engrenagens dos filmes individualmente. O volume aumentou demais. A Fase 1 do Universo Cinematográfico Marvel teve apenas seis filmes. A segunda incluiu o mesmo número. A Fase 3 pulou para 11. Já a atual, a Fase 4, que Wakanda para Sempre encerra, teve sete longas, oito séries e dois especiais. Não há quem consiga dar conta de controlar tudo isso.

Mesmo que a Marvel enxergue seus filmes como episódios de uma grande série, é preciso lembrar que eles têm de ser fortes individualmente também. Uma série dá conta de um ou outro episódio mais fraco, mas não de vários em sequência.


Namor (Tenoch Huerta) é o Príncipe Submarino, líder de Talocan,
um reino subaquático formado por povos mesoamericanos
refugiados. Foto: Divulgação


A fórmula de uma batalha final, nem sempre consequente, virou alvo de brincadeira em Mulher-Hulk, mas não há sinal de que o estúdio a abandonará tão cedo. A série, e todos os outros produtos que tentaram algo um pouco diferentes, foi detonada por grande parte do público. É possível que não haja solução para a Marvel, pois boa parte dos fãs não admitiria menos tempo dedicado à ação, nem a falta de conexão entre os produtos.

A questão é que a Disney e a indústria cinematográfica estão apoiadas neste modelo. Praticamente só os filmes de super-heróis dão dinheiro hoje em dia, porque os estúdios e os cinemas afastaram os outros públicos para atender somente a esse. Os filmes da DC já enfrentam uma crise, assim como a saga Star Wars. O que vai acontecer se a Marvel também não der mais resultados?

No fim, Wakanda para Sempre é importante e tem ideias interessantes, o que é mais do que costumam ser os filmes da companhia. Mas, ainda assim, acaba se perdendo no formato Marvel.

MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Morou em Los Angeles por sete anos e cobre festivais em todo planeta.

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