A guerra pela perspectiva do cinema
O longo conflito entre Rússia e Ucrânia vem sendo abordado com frequência na produção audiovisual de realizadores ucranianos
TEXTO Mariane Morisawa
12 de Abril de 2022
'Donbass' (2018), longa premiado na categoria Melhor Direção, na mostra 'Um Certo Olhar', em Cannes
Foto Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Para os ucranianos, a invasão russa em 24 de fevereiro é uma ampliação da guerra iniciada em 2014, quando o país vizinho anexou a região da Crimeia e deu apoio a separatistas no leste do país, uma área conhecida como Donbass.
Pouca gente prestou atenção ao chamado conflito na época, mesmo quando um avião civil foi derrubado na região, matando quase 300 pessoas. Mas os cineastas ucranianos vêm mostrando sua visão do que lá ocorre desde então.
O mais famoso deles, Sergei Loznitsa, dedica-se, em obras de ficção e documentários, a recuperar a história complexa e sangrenta dessa parte do mundo desde a Segunda Guerra Mundial. Ele investigou, por exemplo, o clima de desvario desde o início do confronto na fronteira com a Rússia na ficção Donbass (2018).
Mas Loznitsa não é o único. A presença ucraniana foi marcante nos principais festivais de cinema dos últimos anos. Valentyn Vasyanovych tratou do tema em Atlantis (2019), que venceu o prêmio de melhor filme da seção Horizontes em Veneza, e Reflection, que competiu pelo Leão de Ouro no mesmo festival no ano passado.
A house made of splinters, do dinamarquês Simon Lereng Wilmont, que fala de um orfanato no leste da Ucrânia, levou o troféu de direção na mesma categoria em janeiro deste ano, em Sundance. Enquanto isso, Klondike, da ucraniana Maryna Er Gorbach, foi escolhido como melhor direção de ficção internacional em Sundance e foi o mais votado pelo público da seção Panorama no Festival de Berlim, ambos em 2022.
KLONDIKE: A GUERRA NA UCRÂNIA (2022), de Maryna Er Gorbach
Irka (Oksana Cherkashyna) está grávida. Mas ela mora em Donetsk, quase na fronteira com a Rússia, onde separatistas pró-russos enfrentam forças nacionalistas. Ela vê o conflito dentro de casa: seu marido é pressionado por amigos para integrar as forças separatistas, e por isso é considerado pelo irmão de Irka um traidor da pátria. O cotidiano é marcado por cenas surreais. Um dia, a parede da casa é explodida por um míssil lançado por engano. Em outro, um avião civil é derrubado, matando quase 300 pessoas – algo que aconteceu de verdade e foi uma das razões pelas quais a diretora quis fazer o filme. Segundo ela, se um fato de tal magnitude ficou impune, quem é que ligaria para os moradores de Donbass? Nada ali faz sentido, mas o efeito na vida das pessoas é real. O longa-metragem tem estreia marcada nos cinemas brasileiros para o dia 28 de abril.
DONBASS (2018), de Sergei Loznitsa
Quando décadas de animosidades são estimuladas por corrupção e mentiras, não sobram muitos traços de civilização, como o diretor nascido em Belarus e criado na Ucrânia mostra neste longa premiado com o troféu de melhor direção na mostra Um Certo Olhar, em Cannes. Ele traça um panorama de caos, absurdo, crueldade e desinformação com uma série de vinhetas. Civis são maquiados para parecer vítimas de um bombardeio. Cidadãos são extorquidos quando vão dar queixa de seus veículos roubados. Um homem é humilhado e torturado, preso a um poste. É um retrato de uma sociedade em desatino. O filme está disponível na Reserva Imovision.
ATLANTIS (2019), de Valentyn Vasyanovych
Em um futuro não muito distante, a distopia na região conhecida como Donbass é real. Mas Atlantis até que tem um fiapo de esperança, mesmo que os efeitos da guerra ainda estejam muito presentes: a água e o ar estão poluídos, a economia, destruída, e as pessoas, idem. Serhiy (Andriy Rymaruk) lutou na guerra e sofre de estresse pós-traumático, como seu amigo Ivan (Vasyl Antoniak). Os dois não sabem o que fazer consigo mesmos. Até o dia em que Ivan não aguenta mais. Depois da fábrica fechar, Sergiy acaba indo trabalhar na exumação e identificação de corpos deixados pela guerra, conhecendo Katya (Liudmyla Bileka) e, talvez, algum sentido no meio disso tudo. O longa pode ser visto na plataforma Reserva Imovision.
REFLECTION (2021), de Valentyn Vasyanovych
No ano passado, Vasyanovych voltou a falar da guerra, agora por meio de uma família fraturada. Na primeira cena, o médico Serhiy (Roman Lutskyi) vai ao aniversário da filha, que vive hoje com a mãe (Nadia Levchenko) e o marido dela, Andriy (Andriy Rymaruk), um soldado das forças nacionais na guerra contra os separatistas. Serhiy não parece muito disposto a seguir pelo mesmo caminho. Mas, de repente, ele está em um jipe atingido pelos adversários, é capturado e torturado. As cenas são fortes. As marcas no personagem, não apenas torturado, mas obrigado a auxiliar os torturadores, inclusive colocando corpos em um crematório portátil, serão para sempre. E uma nação de pessoas traumatizadas é uma nação quebrada.
A HOUSE MADE OF SPLINTERS (2022), de Simon Lereng Wilmont
Em seu documentário The distant barking of dogs (2017), o diretor dinamarquês retratou a guerra em Donbass pela perspectiva de um adolescente. Ele volta à região para mostrar a vida em uma casa de passagem para crianças negligenciadas. A guerra é mencionada apenas aqui e ali, mas é impossível não imaginar que seus efeitos econômicos e desestruturadores não afetem os adultos e, por conseguinte, os pequenos. São pais e mães sem trabalho, vítimas da violência, alcoolatras e com problemas de saúde mental. As crianças tentam ter esperança, mas aprendem logo cedo que seus pais não vão conseguir cumprir suas promessas.
MARIANE MORISAWA, crítica de cinema.