Resenha

'Vidas passadas': tão perto, tão longe

Com estreia no Brasil, filme da diretora coreano-americana Celine Song conta história de triângulo amoroso para falar de imigração e das conexões que se fazem pela vida

TEXTO Fernando Silva

24 de Janeiro de 2024

Os atores Teo Yoo e Greta Lee em cena do filme 'Vidas Passadas'

Os atores Teo Yoo e Greta Lee em cena do filme 'Vidas Passadas'

FOTO Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Nascida na Coreia do Sul, de onde partiu com a família, aos 12 anos, para o Canadá, e hoje estabelecida nos Estados Unidos, Celine Song se inspirou na própria trajetória para fazer seu primeiro filme, que, de cara, recebeu duas indicações ao Oscar, Melhor Filme e Melhor Roteiro Original. Em Vidas Passadas, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (25), o tema da imigração e das questões em torno de origens, identidade e estranhamento é central, mas ela os projeta na tela de forma peculiar. Ao contar a história de Nora, espécie de alter ego da diretora, o assunto flui em meio a um triângulo amoroso, construído por décadas e em continentes diferentes. Nele, os três se entrelaçam e giram à maneira de um carrossel.   

Como Song, a sul-coreana Nora (interpretada por Greta Lee) é uma garota que sai da terra natal rumo à América do Norte na pré-adolescência, filha de um cineasta que emigra. E tal qual a diretora, deixa para trás um amigo, colega de classe, namoradinho de infância, no filme, chamado Hae Sung (papel de Teo Yoo). Após uma tarde feliz, cheia de brincadeiras, os dois têm uma despedida brusca e de partir o coração. Mas o mundo sempre dá voltas.

Doze anos depois, a protagonista se surpreende com a informação de que o menino jamais a esquecera. Assim, voltam a conversar, via chamadas de vídeo. Nova York, atual casa de Nora, e Seul, lar de Hae Sung, se unem aos ventos de uma velha amizade retomada e de um interesse romântico cada vez maior. A cena em que ela utiliza um teclado desenhado com as letras do alfabeto coreano numa folha de papel como guia, para escrever uma mensagem a ele no computador de teclas com símbolos e letras ocidentais, mostra tanto a chama da paixão quanto coloca em primeiro plano a identidade, nunca perdida, abandonada.

Ao mesmo tempo, eles se afastam pelos cerca de 11 mil quilômetros separando uma cidade e outra, a diferença de 14 horas entre os fusos horários e as ambições divergentes. Vida que segue, a dramaturga Nora se casa com um norte-americano, o escritor Arthur (John Magaro), e Hae Sung conclui enfim o curso de engenharia na Coreia do Sul. Então, mais 12 anos se passam, e ele resolve rever a amiga onde ela mora agora, durante as férias do trabalho.

O encontro do filme é inspirado na visita do velho colega de classe que Celine Song tinha na Ásia e com quem não perdeu o contato na idade adulta. A própria ideia para o projeto que se tornaria Vidas Passadas nasceu de uma noite na qual ela se viu sentada com o marido, o romancista e dramaturgo Justin Kuritzkes, e o amigo em um bar, em Nova York. Naquelas cenas da vida real, logo descobriu, havia dois mundos, o passado e o presente juntos.

Em entrevista à rádio norte-americana NPR, a diretora afirma até ter notado na ocasião que os três atraíram olhares de clientes do estabelecimento, curiosos sobre os laços do trio e a dinâmica de relacionamento entre eles. “Quem diabos são essas pessoas umas para as outras?”, ela relembra. A sensação do instante a fez pensar. “E se eu pudesse contar isso?”

Song reconstrói a noitada no bar, onde se pode ver Nora conversando com Hae Sung e Arthur, em coreano e em inglês, fazendo inclusive as vezes de intérprete para ambos. Além de emocionar com toda a sequência da reunião dos amigos de infância – após 24 anos separados, sem se ver frente a frente, em carne e osso – e de seus passeios por Nova York.

A megalópole surge imponente na tela, com os trens do metrô, a Estátua da Liberdade, o Madison Square Park. Em vez do inglês, porém, é ao som do coreano que paisagens e lugares turísticos aparecem e os dois trocam confidências, contam novidades, findam saudades. No idioma no qual sempre conversaram, desde crianças, eles se reconectam.

Com Hae Sung, ela dialoga na língua pátria, resgatando a menina sul-coreana. Já com o marido, a protagonista fala em inglês, o vernáculo da nação em que escolheu viver. Esse movimento duplo, envolvendo o triângulo amoroso, realça o biculturalismo de Nora, deixando-a contudo em um limbo simultâneo de pertencimento e não pertencimento.

Celine Song seguiu ainda por uma terceira via para tentar dar conta dos sentimentos abordados no filme. “Costumávamos dizer que falávamos três idiomas no set”, conta a diretora de 35 anos em reportagem da revista norte-americana Rolling Stone. “Havia inglês, coreano e o silêncio. Tivemos várias cenas em que os personagens não conversavam muito entre si, mas em que havia muita informação sendo comunicada entre eles”.

Tais momentos vêm à tela repletos de dúvidas, de cumplicidade, de tensão sexual e do, às vezes, não saber muito como agir. E mesmo que Vidas Passadas mostre diálogos francos, à flor da pele e engraçados, abolindo discussões ou vozes alteradas, paira durante toda a história um tanto de mistério. Qual a equação, o que pode explicar as profundas conexões?

Para isso, o título produzido pela A24 tem um mote, o in-yun ou in-yeon (인연), algo como destino em coreano, que se refere a laços entre duas pessoas através de seus renascimentos.

“A única maneira de realmente entender este filme é por meio desse pensamento muito oriental, no qual o destino ou as conexões entre as pessoas não são algo que se procura ou vá buscar”, explica Song em matéria do jornal Los Angeles Times. “É algo que vem até você e não dá para impedir, mas em que é possível encontrar o seu caminho nele e apreciá-lo.”

Se toda vida é produto de uma história anterior, o conto de Nora, Arthur e Hae Sung revela caminhos, desencontros e descobertas de ser adulto. E reluz amor além de tempo e espaço.

 

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