Reportagem

O brega é nosso! [parte 2]

À revelia da historiografia hegemônica e na luta por espaços de legitimação, gênero se afirma em Pernambuco e amplia alcance nacional a partir da produção que sai do Grande Recife

TEXTO Antonio Lira

01 de Julho de 2022

Dany Myler em show durante o 'Festival de Inverno de Garanhuns', em 2019

Dany Myler em show durante o 'Festival de Inverno de Garanhuns', em 2019

Foto Felipe Souto Maior/Secultpe-Fundarpe

[continuação do especial de capa da ed. 259 | julho de 2022]

Em busca de conhecer essa origem, a equipe da Continente foi ao Clube Bela Vista, no Alto de Santa Terezinha. Fundado em 24 de outubro de 1980, o local é conhecido por ser um reduto da música latina, realizando, todo primeiro e terceiro domingo do mês, a festa Encontro da Família Cubana. Mas, na véspera do dia 1º de maio, lá acontecia o Brega do Trabalhador, enquanto uma casa de shows a poucos metros dali realizava apresentações de artistas de brega e brega funk. A festa do Bela Vista estava lotada e o público se dividia entre quem estava nas mesas – geralmente ocupadas por baldes de cerveja – e na pista de dança – repleta de casais dançando coladinhos.

No camarim do Bela Vista, conversamos com José Carlos de Lira, o Mitó, vocalista da banda Labaredas, programada para fechar a noite de apresentações. A voz grave e marcante que imortalizou hits como Garotinha linda e Kelly contou que, no início, a Labaredas era uma banda de baile e tocava todo tipo de ritmo. Na gravação de seu primeiro álbum, porém, ao perguntar para os fãs quais músicas eles deveriam trazer no repertório do disco, a preferência era uma só: o brega.

“A linguagem do brega é diferente. Nele, você fala de tudo. Você fala de uma gaia que o cara levou, você fala de uma mulher prostituta, de um cara que ama demais, de um cara que finge que ama. Acho que o romantismo está presente em todo mundo. Apesar das brigas, existem as horas de amor. O que a gente canta é isso. É o que acontece todo dia, o que a gente escuta, o que a gente vê acontecer”, afirma. Após 10 minutos de conversa, uma fila de fãs se formava, com seus celulares em mãos, para tirar uma foto com seu ídolo. E ele fez questão de dar atenção a todo mundo. A entrevista teve que ser encerrada.


Mitó imortalizou, com a sua voz, músicas como Garotinha linda e Kelly.
Foto: Dondinho

Ainda naquela noite, entrevistaríamos Ziane Martins e Ellyson Marques, os jovens vocalistas da Banda Sentimentos, nova sensação do brega pernambucano. Dessa vez, os celulares não estavam nas mãos de fãs que se organizavam em fila no backstage do Bela Vista. Ao invés disso, o público se aglomerava na beira do palco, esperando que os artistas pudessem gravar vídeos nos perfis pessoais deles.

Ziane e Ellyson chegaram a lançar, no período de isolamento, um DVD gravado no litoral sul de Pernambuco, sem a presença do público. Com o título Marcante, o EP duplo saiu em 2021, no canal do YouTube, plataforma na qual a banda conta com mais de 200 milhões de visualizações. Seis meses após a experiência de se apresentar ao vivo pela primeira vez, eles têm agenda cheia todos os finais de semana. No dia seguinte à nossa entrevista, por exemplo, a banda se apresentaria no Forte Orange, na Ilha de Itamaracá. Depois, seguiriam para uma apresentação em Moreno, retornando à ilha para fechar a noite com um terceiro show. Para Ziane, a adaptação a essa nova dinâmica tem sido proveitosa para aprender, na prática, como lidar com o palco. Mesmo imersa numa rotina que ultrapassa seis apresentações por fim de semana, a dupla não deixa de se surpreender com o calor e o carinho do público.

Como explicar todo esse sucesso? Para Ellyson, a banda, formada em 2019, pelo empresário Djalma Dayverson, da D&D Produções, acertou ao apostar na tradição para conquistar toda uma nova geração de fãs apaixonados pelo brega. “A gente sempre teve esse desejo de trazer de volta o brega romântico na forma de dupla. Era uma coisa que estava fazendo muita falta no brega. Estava rolando uma ascensão do brega funk, do brega de passinho, e havia uma carência no brega romântico. Foi quando ele fez essa proposta pra gente e deu supercerto”, conta o vocalista.

Essa ascensão que Ellyson comenta teve início quando o filho de dona Maria de Fátima Oliveira Chagas, mais conhecido como MC Leozinho do Recife, resolveu misturar o funk que cantava nos bailes de galera com as músicas que sua mãe ouvia pelo rádio e nos clubes de dança que ela frequentava. Alagoana de Maceió, Maria de Fátima criou José Leonel em Pernambuco e, de acordo com o filho, é uma “bregueira raiz”. “Ela tem 64 anos, mas ainda sai para dançar o brega antigo, cumbia, merengue, tudo. Fui criado ouvindo isso, minha mãe tinha vários CDs de brega. Às vezes, a gente acordava cedo para ouvir rádio, na época que existia A Hora do Papudinho, na JC FM. Quando o rádio era muito bom. Fui criado ouvindo músicas de brega, dentro do brega, só que meu forte era o funk. Era a raiz, era o que eu gostava de cantar. Era ‘música de jovem’. A gente foi criado cantando funk e escutando brega”, relembra.

Com o crescimento da violência urbana em Pernambuco, no início dos anos 2000, veio o aumento da repressão policial, que fez com que boa parte dos bailes de galera fosse obrigado a fechar as portas. Era nessas festas onde o funk pernambucano, ainda muito inspirado pelo carioca, encontrava seu lugar. Foi nesse tempo de crise que Leozinho se arriscou a gravar algumas músicas de brega romântico, o que, no início, confundiu seus fãs. Quando andava pelas ruas de Maranguape, em Paulista, e as pessoas o questionavam se ele agora cantava brega ou funk, ele sempre respondia: “Brega e funk, brega e funk, brega e funk”. Da mistura entre as canções, guitarras e teclados do brega romântico com os beats e a consciência periférica do funk recifense, surgiu um novo gênero musical que era a cara de Pernambuco.

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Desde que o brega funk viralizou, no Carnaval de 2018, com a canção Envolvimento, de MC Loma e as Gêmeas Lacração, o gênero nunca mais parou de chamar atenção no Brasil. Sucesso nos streamings e referência para vários artistas de alcance nacional – como Anitta, Leo Santana, Pabllo Vittar e Gloria Groove –, esse fenômeno ganhou até mesmo documentário no Spotify. Logo em seguida, essa batida cheia de envolvimento seria acompanhada de uma coreografia específica – e igualmente característica – o Passinho dos Maloka ou, simplesmente, o passinho. Em paralelo ao movimento semelhante que aconteceu no Rio de Janeiro, foi criada uma nova maneira de dançar, tipicamente pernambucana e que, em tempos de TikTok, contribuiu e segue contribuindo para a divulgação e a propagação do gênero.

Dona do hit Gera bactéria, que, no fim de 2018, cantava: “Esse passinho é novo e nasceu na favela/ Nós manda embrazado lá dentro do brega”, a dupla Shevchenko e Elloco reconhece a importância que o passinho teve para o crescimento do brega funk. “O que o brega tem hoje que é a cara de Recife é o passinho, irmão. Que foi o que mudou vidas. O passinho foi o que fez o brega funk ficar conhecido nas plataformas mundiais. A gente não tinha essa oportunidade. Então, depois do surgimento do passinho, o nosso movimento ficou mais valorizado. O nosso movimento hoje se encontra em outro patamar, junto com o forró, junto com o sertanejo, junto com o funk”, afirma Shev à Continente, numa entrevista realizada com a dupla momentos antes de uma apresentação em Jaboatão dos Guararapes, numa casa de shows próxima à Praia de Piedade.

Durante a nossa conversa, em mais de um momento, eles fizeram questão de destacar a relevância do brega funk para a cultura das periferias pernambucanas. Robson Oliveira Rodrigues, o Shevchenko, morava no Bairro do Arruda e conheceu Cleiton José da Silva, o Elloco, do Alto do Pascoal, numa época em que se encontravam para pichar. Através do estímulo mútuo, ambos acreditaram no sonho de serem cantores e, hoje em dia, entendem a importância da música que fazem para as suas comunidades. A dupla sonha com o momento em que o brega funk ganhará espaço nos palcos principais do carnaval do Recife. “O mais difícil mesmo a gente fez, que foi chegar, abrir o espaço para a cultura. Então, agora, é trabalhar, como eles pedem. Que a gente faça nosso trabalho para poder chegar no nosso objetivo maior, que é, no dia de carnaval, podermos estar nos polos, estar tocando no Galo. Quem não sonha? Hoje, somos uns moleques sonhadores, assim como tem muitos jovens hoje também sonhando com a música, que estão crescendo através do brega funk.”


Show de Rayssa Dias no Festival Rec-Beat, no Carnaval de 2020. Foto: Hannah Carvalho

Dentro de Pernambuco, a potência do movimento brega e do brega funk se expandiu também para além dos arredores da capital. Foi em Orobó, no agreste do estado, que a atriz e cantora Mun Há foi atravessada pela primeira vez, quando ainda era criança, pelo brega romântico. Natural do Rio de Janeiro, ela se mudou para Pernambuco quando tinha cinco anos e, desde então, começou a conviver com canções de artistas como Conde, Companhia do Calypso, Vício Louco e Banda Metade. Naquela época, mesmo que ainda não tivesse passado pela experiência de sofrer por amor, aquelas músicas faziam com que ela sentisse algo diferente.

A partir da graduação em Teatro, na UFPE, que começou a cursar em 2014, a artista foi aprofundando suas reflexões e pesquisas sobre a importância de corpos trans e não binários estarem presentes nas artes e na música. Seguindo o exemplo de Danny Batidão, primeira MC trans do brega funk, Mun Há entende a importância de ocupar esse espaço dentro do movimento, abrindo caminho para novas pessoas, tanto no brega funk quanto no brega romântico. “O brega romântico em si já traz essa pegada mais do amor, da sofrência. E nossos corpos também sofrem, nossos corpos também amam e também são sexualizados, então, é importante que a gente esteja nesses espaços, falando sobre a nossa vida, nos amando e nos empoderando”, afirma a cantora.

A potência que o brega tem, há anos, de modificar a realidade das comunidades é algo que inspira novos artistas a entrarem para o movimento. Rayssa Dias cresceu no Bairro de Salgadinho, em Olinda, e teve o brega como parte de sua vida desde criança. Mesmo antes de aderir ao movimento, quando ainda cantava na igreja, a força dele chamava a sua atenção. “Sempre quis entender essa magia, porque ele deixava as pessoas tão envolvidas dentro da favela. Eu pensava: ‘Caramba, que incrível, como uma música consegue mexer tanto com todo mundo?’ Isso me fascinava.” Hoje, seu repertório passeia entre o brega funk e o brega romântico, reconhecendo a potência de ser uma mulher, negra e LGBTQIAP+ num movimento que, muitas vezes, ainda é dominado por homens. Rayssa reforça a importância dessa expressão artística para a autoestima das pessoas que moram nas periferias.

“Quando a gente não tem alguém que nos represente, é meio que opaco. Você, provavelmente, já teve alguém que foi inspiração para você, mesmo que não saiba. Você pensou: ‘Poxa, aquele cara é tão empoderado, quero ser um pouco disso’. Você não vai ser ele, mas vai ter um pouco disso, do seu jeito. Se não tiver alguém que represente ela, a favela não tem o brilho. É diferente quando você sabe que tem alguém como você cantando o que você sente e você canta sentindo a mesma coisa daquela pessoa”, diz Rayssa. No último Carnaval, em 2020, ela se apresentou no palco do Rec-Beat, sendo a primeira mulher a representar o ritmo no festival, no mesmo ano em que a cantora Priscila Senna se apresentou no palco principal do carnaval do Recife, no Marco Zero.

Para o pioneiro do brega funk, MC Leozinho do Recife, é preciso observar a diferença de tratamento entre o brega romântico e o brega funk nas programações dos eventos. Quando perguntado sobre o que mudou para o brega e o brega funk com a aprovação da lei e a promessa de maior presença nos palcos das festas organizadas pelo poder público, a resposta dele foi em sintonia com a de quase todos e todas as outras artistas que entrevistamos. Mesmo aqueles que destacavam a importância do reconhecimento, afirmaram que a aprovação da lei não havia mudado nada, ou havia mudado muito pouco.

Em relação ao movimento, Leozinho, que continua misturando brega romântico com brega funk, acredita na importância e na potência da união entre os artistas para o fortalecimento mútuo. Mas acha que, mesmo que o brega romântico venha ganhando espaço em alguns palcos importantes, como o do Festival de Inverno de Garanhuns e o do polo principal do carnaval do Recife, no Marco Zero, para o brega funk, a situação é mais difícil.

“Tenho plena certeza de que, pelo menos daqui uns cinco, seis anos, ainda não vai ter. Pode uma banda perdida, no máximo, tocar no Marco Zero, mas um brega funk acho muito difícil tocar em um polo desse, grande, que concentra milhares de pessoas do mundo inteiro, que gostam da música, que curtem a música, mas não vão ter o privilégio de ouvir a gente cantar. Eles vão jogar a gente na zona norte, em um polo dentro da periferia, mas acho que é muito difícil botar em um polo desse. É muito raro”, afirma o cantor. No entanto, pensar políticas públicas para o movimento brega e para o brega funk não pode ser algo que se restrinja a conseguir espaços nos palcos do Carnaval.

***

Para GG Albuquerque, jornalista, pesquisador e doutorando em Comunicação pela UFPE, é importante que se entendam as particularidades de cada manifestação cultural na hora de se pensar e construir as políticas públicas adequadas para cada situação. O jornalista administra o portal Embrazado, que produz textos e conteúdos audiovisuais sobre culturas periferizadas de todo o Brasil, e nos conta sobre como compreende não só a evolução do brega funk, mas também a percepção que as pessoas têm sobre ele. Entusiasta do funk carioca e da música eletrônica, ele reitera a importância de olhar para essa música não apenas como um fenômeno de importância social, mas também uma seara de inovações estéticas.

“No caso do passinho, por exemplo, as pessoas falam muito de sexualização, no movimento da botada. Mas, se você olhar, o pessoal do passinho está fazendo coisas incríveis, por exemplo, com o movimento da câmera, na hora de gravar os vídeos. Eles fazem planos sequências, mostrando vários personagens. Existem invenções múltiplas (no brega funk), em muitas camadas. Mas o olhar das pessoas muitas vezes já é direcionado para querer reduzir o brega funk e as culturas das periferias, encontrar uma sexualização que, na verdade, é provocada por outrem, é provocada por uma história do racismo e da colonialidade. Para querer encaixar (as culturas das periferias) em um lugar fácil de vilanizá-las.”

De acordo com GG, estereótipos machistas e racistas – que hiperssexualizam, sobretudo, corpos negros e periferizados – existem desde o início do processo colonial e aparecem, nessas músicas, também como uma negociação, num processo de apropriação tática, por parte dos artistas. O jornalista pernambucano acredita que mais do que o reconhecimento oficial do Estado às manifestações culturais e medidas que facilitam que um artista de brega esteja no Marco Zero durante o Carnaval, é necessária a criação de uma estrutura de políticas públicas que permita aos movimentos culturais, seja o brega ou o maracatu, ter autonomia, sem que se gerem interferências, por parte do poder governamental, nas lógicas produtivas dos artistas populares.

“(Em Pernambuco) sempre foram incentivadas as coisas num formato imposto, que não surgiam necessariamente dos brincantes. No livro da Michelle Assumpção sobre Lia de Itamaracá, tem isso. Nos primeiros festivais de ciranda, tinha-se um modelo para participar. E, logicamente, todas as cirandas vão começar a se formatar nesse modelo, porque querem participar e ganhar algum dinheiro. Então, essa mudança é de cima para baixo”, afirma GG. No caso do brega funk, o pesquisador acredita que uma solução possível seria o incentivo, por exemplo, à criação de escolas de música nas periferias, onde os jovens pudessem ser ensinados a trabalhar com programas de edição de música.

Para Lúcio Souza, que é jornalista, pesquisador, dançarino e mestrando em Comunicação pela UFPE, pensar políticas públicas para o brega implica uma discussão maior sobre o direito à cidade. Por frequentar os espaços públicos quando dançava e pesquisava o k-pop e o voguing, Lúcio está por dentro dessas discussões e reflete sobre a repressão policial sofrida por grupos de passinho em espaços como o Parque da Jaqueira e o próprio Marco Zero do Recife. O pesquisador enxerga uma contradição entre a ação do Estado através da polícia – que cerceia o espaço dos dançarinos – e a maneira como esse mesmo Estado se apropria da estética do brega funk na publicidade oficial.

“Já que o passinho é uma dança tão difundida na periferia, já que há esse estímulo ao seu uso para o turismo, que há o uso do brega funk em campanhas eleitorais, que isso seja feito de maneira honesta. Com incentivo das prefeituras para que esses artistas se desenvolvam”, afirma Lúcio. Em 2021, após um ano eleitoral em que o brega marcou presença na pauta das eleições municipais, o prefeito do Recife, João Campos, aprovou o projeto de lei 1/2021, que fez do movimento brega Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. O novo reconhecimento traz, em si, novos desafios. Para o professor e pesquisador Thiago Soares, torna-se importante fazer uma discussão sobre preservação da memória e da história do movimento.

“Eu acho que a gente precisa se preocupar com a documentação, com a história, com a memória da música brega. Porque o que acontece com a música brega é o que acontece com a história das periferias do Brasil. É uma história que não está documentada. Não está em museu, não está em arquivo, está perdida. E quando a gente chama algo de patrimônio, esse patrimônio precisa ser visto, precisa ser colocado, precisa ser arquivado”, afirma o pesquisador. Foi partindo da vontade de cuidar desses patrimônios vivos da cultura de Pernambuco que a cantora e empresária Dany Myler planejou o projeto Boteco Brega, no qual ela convida artistas que fizeram história na música brega pernambucana para cantar com ela.

A primeira edição do projeto, lançada em maio deste ano, conta com participações de Mitó, da Labaredas, Kelvis Duran, além de Gino Liver e Walter de Afogados, dois nomes das antigas que são responsáveis pela composição de hits do cancioneiro nordestino, como Me usa – sucesso da banda de forró Magníficos, de autoria de Gino – e o clássico Morango do Nordeste – composição de Walter em parceria com Fernando Alves, que fez sucesso na versão de Lairton e Seus Teclados.


MC Leozinho foi um dos primeiros a misturar instrumentos do brega romântico com a batida do funk. Foto: Chico Ludermir


Tocha
 também é um dos pioneiros do brega funk. Foto: Dondinho

Em entrevista à Continente, Walter, que está na música há mais de quatro décadas, também relembra a importância de valorizar os artistas da velha guarda. Embora afirme já ter sofrido preconceito, durante sua carreira, por cantar brega, ele reafirma seu amor pelo gênero: “O brega é onde eu me sinto bem. Hoje, me sinto muito feliz. Nas casas de show, quando eu chego, é casa cheia, o povo em cima. Mulheres, crianças. Eu adoro, gosto demais. E não pretendo mudar o meu estilo”. Nesse primeiro momento, Dany Myler procurou trazer artistas da geração anterior à dela, mas também pretende contemplar, em edições futuras, as outras faces do movimento.

A preocupação em contar a história bregueira vem desde a época em que Dany participava do projeto Amigas do Brega, com Palas Pinho, Eliza Mell e Dayanne Henrique. Sobre a importância de trabalhos como esse, ela afirma: “Acho que é justamente para a gente mostrar a força que o movimento tem. E que não é de agora, é de muitos anos. O legado musical do brega é muito grande, muito amplo, é uma história ampla, de muitos artistas, de muita luta. De várias pessoas que contribuíram com a cultura da nossa capital”.

Em sua trajetória musical, na qual também passou pelo brega paraense e pelo forró eletrônico, Dany Myler teve a oportunidade de conhecer várias partes do país e entrar em contato com gêneros diferentes. Para ela, as semelhanças entre o forró eletrônico, o brega do Pará e o brega de Pernambuco é que, em todas essas tradições, o jeito de cantar está mais próximo do dia a dia do povo. Mas, ao contrário do forró, ela ainda sente que falta, no brega, uma maior união em torno do movimento, além do incentivo à profissionalização. Independentemente disso, acredita que a chama que aquece o movimento nunca irá apagar. “Músicas boas não morrem. Um bom show de brega sempre vai ter gente, sempre vão ter pessoas para curtir. Desde que você monte uma proposta bacana, sempre vai ter público para assistir”, considera.

Na última saída que realizamos para a elaboração desta reportagem, conversamos novamente com a Banda Sentimentos, dessa vez no camarim do Classic Hall, em Olinda, durante a realização da festa Red Baile. Enquanto Ziane e Ellyson se preparavam para a gravação de mais um DVD, as apresentações iniciavam no palco da casa de shows. Além da Banda Sentimentos, ainda estavam programados para tocar ali Grazi Almeida, Tocha, Troia, Menor, Sheldon, Luiza Ketilyn e Luanny Vital, todos artistas de brega. E, para encerrar a noite, aquele respeitável público iria assistir à apresentação da cantora Gloria Groove.

Em uma rápida conversa realizada logo após seu show, MC Troia, um dos nomes mais queridos do brega funk, mal podia conter a emoção que havia sentido junto ao calor do público do local. “É um prazer estar tocando para uma galera assim, para outro público. E estar numa festa com a Gloria é uma satisfação para mim. O brega vai ganhando espaço e o importante é isso: é cultura!”, afirmou para, logo em seguida, retornar com sua equipe aos camarins. Dali, eles partiriam para Jaboatão dos Guararapes, onde continuariam a noite de shows.

Ainda no backstage, Ellyson e Ziane explicaram o porquê da escolha do nome Sentimentos. A proposta da banda era trazer, em suas canções, os sentimentos do seu público, das pessoas que viviam as situações que eles narravam, que, muitas vezes, moravam nas regiões periferizadas do Grande Recife. O nome, então, acabaria por abraçar muito a proposta da dupla, que honra a história e a tradição do brega romântico fazendo aquilo que ele sempre fez: interpretar o amor da maneira mais simples e sincera possível.


Show de MC Troia (de azul), destaque do brega funk, no Red Baile, Classic Hall.
Foto: Dondinho

Mesmo assim, ainda existem pessoas que encontram dificuldades na hora de falar sobre seus sentimentos. Para Roberto Rossi, artista e filho do cantor e compositor Reginaldo Rossi, essa dificuldade talvez explique por que tantas pessoas têm problemas com a música brega. “Eu acho que por vergonha de assumir que elas próprias sejam exageradas romanticamente. Ou por vergonha não só de assumir, mas de se expressar. De expressar o verdadeiro sentimento, no fundo do seu âmago. A pessoa toma um chifre e só fala que está triste, que está puta, ao invés de deixar aflorar os sentimentos, de cair em prantos, de passar uma semana de cama, adoentado e sofrendo porque perdeu aquele amor, porque foi traído.”


Extra:
Assista ao especial No beat do brega funk
Leia edição #092 da Continente sobre o brega


Responsável por cuidar do legado artístico de seu pai, Roberto terminou nossa entrevista contando a maior lição que Rossi lhe deixou. E que, talvez, ajude a entender um pouquinho sobre a potência afetiva da música que seu pai e tantas outras figuras bem pernambucanas fazem há mais de 50 anos. Ele lembra, como se fosse hoje, quando o Rei do Brega virou para ele e falou: “Se um fã te abordar, você tem que tratar ele com todo o carinho do mundo e com toda a generosidade que você possa dar ali, naquele instante. Ele não é merecedor de uma grosseria sua, de ser ignorado. Temos que estar de braços abertos para quem sempre nos tornou essa coisa grandiosa”.

ANTONIO LIRA, músico, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.

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