Reportagem

Bordado, arte contemporânea

Com a prática do 'industrianato', tradição resiste e se reinventa pelas mãos de artistas de Passira e outros recantos, mostrando como as linhas têm potencial também para o discurso político

TEXTO Eduardo Montenegro

24 de Outubro de 2017

Obra 'Avesso', de Clara Nogueira, traz a questão da mulher e do movimento feminista para suas linhas

Obra 'Avesso', de Clara Nogueira, traz a questão da mulher e do movimento feminista para suas linhas

Imagem Reprodução

Se assim pudermos dizer, o bordado é um personagem tão antigo na história da humanidade quanto a nossa própria existência. Segundo o livro Risco em anil, ponto em flor – memórias do bordado do Passira, organizado pela socióloga e designer de moda Teresa Branco, vestígios da técnica do que se conhece hoje como ponto-de-cruz foram encontrados ainda nos tempos da pintura rupestre, quando vivíamos em cavernas. Mas, se o próprio ser humano seguiu adiante, assim fez o bordado. Podemos encontrar este elemento tanto nas roupas eclesiásticas da Igreja Católica medieval, quanto em vestuários modernos de cama, mesa e banho ao redor do mundo – especialmente na Europa. Em Passira, polo da arte em Pernambuco, o bordado manual ainda resiste à indústria, enquanto que, não só lá, mas em cidades de vários países, o bordado recria-se de diferentes formas e, desta forma, (re)existe.

Uma das responsáveis por isso atende pelo nome de Odete Maria da Silva, uma verdadeira mestre. Sentada na cadeira de balanço do terraço de sua casa, ela segura, com uma mão, um pedaço de tecido bege, enquanto a outra dança para cima e para baixo, mergulhando a agulha no pano para criar formas florais em sua nova peça. Com 75 anos, nos conta, com sorriso largo, que é bordadeira desde os 10, quando aprendeu as técnicas com suas vizinhas em Limoeiro, cidade praticamente vizinha a Passira, hoje sua casa. Orgulhando-se de sua profissão, fala de sua arte como quem exibe um troféu na estante: “Tudo na minha vida eu devo ao bordado. Criei meus filhos, coloquei pra estudar, minha casa, tudo foi o bordado que me deu”. Por dia, produz cerca de duas peças, quando são simples; as mais elaboradas, como lençol, podem demorar uma semana. São desenhos florais, quase como arabescos, enrolando-se e criando formas que lembram o estilo art nouveau.


A mestre Odete Maria da Silva. Foto: Alcione Ferreira

Historicamente, a prática do bordado esteve inerente às mãos femininas: sequer era considerada uma expressão artística (o bordado tradicional), como tudo o que as mulheres faziam, era jogado e subestimado à margem da sociedade patriarcal. “Por que o que eu faço é considerado arte e o que elas fazem não?”, questiona-se Clara Nogueira, fundadora do projeto Linhas de Fuga, de bordado e artesanato têxtil. Aqui, o “elas” dela se refere às mulheres de Passira, que ainda bordam à mão, a despeito da desvalorização cultural e comercial da atividade. Olindense, 32 anos, Clara conta que tudo o que aprendeu na escola sobre bordar se deu graças à tradição da “terra do bordado manual”.






Processo do bordado em Passira. Foto: Alcione Ferreira

A história do Linhas de Fuga mistura-se à trajetória de Clara, que, por sua vez, entrelinha-se à vida de Odete: todas aprenderam a bordar desde cedo. De sua família, Clara é a única que continuou a criar depois de sair do colégio de freiras, algo pouco comum em sua geração – se compararmos à de Odete. Quando grávida de seu filho José, por exemplo, época em que terminou seu curso de Arquitetura e “mergulhou no lar”, Clara começou a pesquisar imagens antigas de anatomia – “para entender o que estava acontecendo com meu corpo durante a gravidez” – e foi daí que surgiu a série Incomum, em exposição colaborativa com sua amiga Clarissa Machado.“Quando José nasceu, depois de um tempo, passei a sofrer alguns problemas enquanto estava amamentando, aí fiz uma série chamada Mama.” Neste trabalho, diversas mulheres foram criadas amamentando seus filhos, tudo a partir do seu olhar sobre fotos enviadas espontaneamente, depois de um post em seu Facebook. “Eu fiquei arretada, porque tinha sofrido um abuso no ônibus. Eu estava amamentando meu filho e chegou um cara e ficou olhando para os meus peitos”, relata a artista.


José dentro, por Clara Nogueira. Imagem: Reprodução

Como se pode ver, em Linhas de Fuga, o bordado toma outros rumos, misturando-se a um discurso político, bem característico do que se compreende hoje como arte contemporânea. Em tempos nos quais a nudez é castigada, e o abuso ao corpo feminino, aceito – na música, na TV, no dia a dia –, os bordados de Clara tornam-se parte da luta feminista, ainda que delicadamente nivelados.

LINHAS FÊMEAS
“A poesia, para mim, passa pelo corpo. O corpo como território de urgência e resistência, como memória e pulsação”, delibera Luiza Romão, poeta paulistana, autora do livro Sangria, no qual reúne 28 poemas e 28 fotografias, com prefácio de Heloisa Buarque de Holanda. Como nos trabalhos de Clara, o corpo na produção de Luiza não é apenas a peça central de seu projeto, mas também é subvertido quando a costura é adicionada, criando um novo produto, uma nova visão sobre o que estamos vendo.

Em sua poética, a história do Brasil – passando pelas épocas do café, da borracha e do ouro – é recontada através da perspectiva da mulher, do útero, da vagina. Segundo Luiza, o fato de o país ter seu nome associado a “pau-brasil” é uma “ironia cruel da nossa história, uma metáfora adormecida, pronta para ser analisada”. “No Sangria, busquei revisitar essa trajetória compreendendo como os sentidos do feminino (em seus tantos recortes de classe e raça) estruturam nossa sociabilidade. Foi a custas de muitos estupros (principalmente de mulheres indígenas e afrodescendentes) e violações que o Brasil se firma enquanto país, e tal compreensão ainda é apagada dos dizeres oficiais”, ensina a artista, que costurava desde pequena, mas parou por um tempo e só retornou com seu atual projeto. “Claro que com uma pegada diferente. Uma coisa empírica de sacar a relação barbante-papel. A densidade dos materiais metálicos. Que tipo de objeto dialogava ou não com a fotografia, como não rasgar o suporte etc. Foi mais visceral que técnico, sem sombra de dúvidas.”

Para a capa, a artista, admiradora do body art, já tinha concebido uma imagem de uma boca costurada, que seria a síntese do seu livro, mas não sabia como realizar. A ideia de costurar as fotografias e tirar fotos do resultado final acabou vindo de seu editor, Daniel Minchoni, mas, como dito antes, o trabalho de Luiza Romão – que transita pelo bordado, mas vai além – é quem guia a fotoperformance. Linhas que lembram uma vagina desenhada nas mãos, ou uma língua perfurada de objetos metálicos, correntes, palavras escritas nos dedos: a imagem é reconfigurada pelo fio.






Imagens do livro Sangria, de Luiza Romão. Fotos: Sérgio Silva com intervenção da autora/Divulgação

O pênis pintado por Clara Nogueira em Ileso, por exemplo, poderia passar despercebido, não fosse o seu bordado sobre tecido, e a forma veiuda do órgão realça-se, podendo ser confundido com a Torre de cristal, de Francisco Brennand – a uma primeira vista. “Acho que o fio tem uma construção histórica ligada ao fazer feminino. As mulheres, pelo papel social delas, sempre estavam voltadas a fazerem trabalhos a mão etc. Utilizar isso e falar de temas que são lutas femininas, pelo corpo, é uma ferramenta pela qual optei. Um bordado de expressão artística que encontrei para isso. Uma ferramenta muito potente, que é o fio, o têxtil”, contempla Clara. “Resistir”, “saída”, “há saída”, “desvia”, “ocupe sem temer” são alguns dos dizeres bordados por ela em suas intervenções urbanas, em ônibus de seu trajeto entre Pernambuco e Paraíba, onde faz mestrado em Artes Visuais, pela UFPB, em suas oficinas ministradas durante ocupações em universidades públicas.

O aspecto político é bastante presente, também, nas obras de Rosana Paulino, de São Paulo, doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Negra, suas obras se destacam por envolveram questões étnicas, sociais e de gênero, como as obras Bastidores, em que costura a boca de mulheres negras, de um modo semelhante ao trabalho de Luiza Romão em Sangria.

E há ainda um novo elemento nessa produção contemporânea: o bordado como intervenção urbana. Também em São Paulo, o Coletivo Meiofio trabalha com o que chamam de “bordado urbano”, em que tecem figuras e dizeres em grades, portas, muros. A ideia do grupo é ir contra a rapidez das metrópoles através de criações cuja elaboração é mais lenta, numa ação de engajamento (a política, novamente). Transitando entre a capital paulista e carioca, a artista Karen Dolorez mescla o grafite com o crochê, sendo as linhas um complemento delicado, mas em alto-relevo, à sua pintura. São trabalhos inspirados em poesias ou músicas.




Intervenções urbanas em crochê, de Karen Dolorez. "Isto não é um artesanato", diz, parodiando Magritte. Fotos: Reprodução

Já os espanhóis e ingleses, de uns tempos para cá, também começaram a se deparar com o bordado em muros e paredes, dividindo espaço com grafites e pichações: a artista Raquel Rodrigo, do Arquicostura, é a responsável pelos jardins de rosas que crescem em Valência, Madri, Bristol e Londres.

HOMENS
Também existem homens que correram na contramão do machismo e adotaram a linha como meio de expressão. Um deles foi Bispo do Rosário. Negro, falecido em 1989, seu Manto de apresentação chama atenção pelos finitos detalhes sobre o tecido: passou a sua vida inteira trabalhando na vestimenta, preparando-se para o dia do juízo final. É que suas obras facilmente trafegavam em seu aspecto alegórico, delirante e sincero, certamente como resposta à sua realidade no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro. Seu próprio Manto é uma representação de todo universo controverso de Bispo: escreveu nome de pessoas que mereciam ir ao céu, grande parte desses nomes eram mulheres, além de ter bordado outros objetos na sua mortalha. Quase como se estivesse levando a vida terrena para a vida celeste, ou nos transpondo ao divino.


Manto, de Bispo do Rosário. Foto: Reprodução

Falar de novas formas de bordar é também pensar em Leonilson, um dos mais importantes artistas visuais do Brasil. Quando viu-se soropositivo e alérgico a tintas, migrou para o bordado. Não se enquadrava no abstrato, no conceitual, no lúdico, enfim, era inconstante, e isso se revela na sua atividade de bordado, em que expressa sua energia feminina. Percebe-se, no entanto, uma relação de artista-mundo que o filósofo francês Merleau Ponty poderia descrever como algo “inseparável da subjetividade”, especialmente em obras como O que você desejar, o que você quiser, estou aqui, pronto para servi-lo (1991), em que o artista costurou esses dizeres na barra de um vestido de noiva. Existe, enfim, um aspecto poético em Leonilson, como no trabalho Ninguém, costurado sobre um travesseiro. Quem é ninguém? Quem se deita, quem olha, ele é o próprio ninguém? Ou uma maneira contracorrente de se declamar a solidão?


O bordado de Leonilson. Foto: Reprodução

ARTE X MERCADO
“Bordar é uma arte”, declara Maria da Paz, passirense, bordadeira desde os 11 anos. “Bordar é uma coisa prazerosa, a gente se apaixona quando começa a fazer, porque você vê um negócio se transformando nas suas mãos. As pessoas que conhecem o bordado valorizam, quem não valoriza tanto somos nós mesmas, talvez. Porque é uma cultura tão tradicional, não tem em todo lugar.”

Contudo, quase todos os nomes citados acima, que produzem ou já produziram um bordado contemporâneo, possuem prestígio diferente no campo da arte, como lembra Clara Nogueira. Em Passira, de onde o bordado outrora era a maior fonte de renda para as famílias, a desvalorização simbólica e econômica é uma alarmante realidade. Outrora, as calçadas da cidade ficavam cheias de pessoas (mulheres, homens, crianças, idosos) bordando, cada lar funcionando como um ateliê ou coletivo de arte. Eram os tempos áureos da produção manual do bordado, até os anos 1980/1980, e poderia ter se perpetuado se não fossem a substituição do ofício pelas máquinas. Segundo Luzinete Maria da Silva, da Associação de Mulheres Artesãs de Passira (Amap), o comércio da cidade está mais abarrotado de bordado industrial do que de manual, o que encarece a produção, segundo ela, pois as vendas do manual, sendo mais caro, diminuem.

Pode-se dizer que Passira resiste, ainda é uma terra do bordado. A diferença está justamente na produção das peças bordadas: com a indústria, o bordado acaba sendo produzido muito mais rápido e mais barato para a clientela. A mesma associação acredita que o bordado manual vem perdendo espaço cultural e comercial dentro da própria cidade. Comercial, pela questão monetária; cultural, pela desvalorização – mesmo com o ensaio de uma relação entre governo e bordadeiras começando, lentamente, a movimentar a cidade. Se analisarmos o nome Centro Comercial e Cultural do Bordado de Passira, uma galeria de lojas onde as bordadeiras podem vender seus produtos, o simples fato do nome “comercial” aparecer primeiro que cultural já sinaliza o que é prioridade.


Bordado de Passira. Foto: Alcione Ferreira

Nas mãos de artistas mais novos, o bordado ganhou novas formas. Como toda arte, se transformou. E não faz muito tempo que as mulheres participantes da Ampa (cerca de 40) encontraram um novo jeito de empoderamento: unindo arte e bordado. Jaquetas, camisetas, casacos e roupas de criança são criadas manualmente, tanto o modelo e corte da peça, quanto bordado, pelas associadas. Passira, por fim, conquistou espaço nas passarelas da São Paulo Fashion Week, em 2010, e, desde então, também trabalham com moda e vendem mais para São Paulo mesmo. Se moda é arte, já é um outro debate. É inegável, no entanto, que moda é cultura, e, como expressão cultural, também se reinventa ao redor do mundo, ao sabor de cada época.

EDUARDO MONTENEGRO, estagiário da Continente e estudante de Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).

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