No térreo de um prédio antigo no centro de São Paulo, 16 motores movidos à gasolina repousam no chão. O amplo salão, com pé direito alto e piso de cimento, recebe 40 pessoas com máscaras antipoluição – é o público do Festival Internacional de Música Experimental, o Fime. O silêncio é quase absoluto. Caminhando vagarosamente, a artista carioca Gabriela Mureb vai ligando os motores, um a um. O ruído preenche o ambiente. Ao mesmo tempo, o dióxido de carbono se espalha pelo ar. É uma experiência extrema: o ar envenenado, o som ensurdecedor, a fumaça que faz os olhos arderem. Quando todos os motores estão ligados, apenas cinco pessoas permanecem no salão. As máscaras não dão conta. Do lado de fora, a produtora e uma das curadoras do Fime, Natacha Maurer, é questionada sobre quem foi “o” artista que montou uma performance tão pesada.
Salvo algumas poucas exceções – como a francesa Eliane Radigue ou Yoko Ono, por exemplo –, a história da música experimental (ou do noise, ou da arte sonora, e aqui usamos as três denominações quase como sinônimos) foi (e é) conduzida pelo discurso masculino. Mas a primavera feminista, que tem questionado os padrões do entretenimento e das artes nos últimos anos, também chegou a esse nicho da música. Nos festivais e nas discussões, as mulheres se articulam e conquistam cada vez mais espaços. No último Fime, por exemplo, 50% das atrações eram mulheres. Percentual parecido traz o festival pernambucano Rumor – Ciclo de Arte Sonora e Música Experimental. O Novas Frequências, no Rio de Janeiro, também vem com um número expressivo de mulheres na programação.
Com a experiência de quem analisou 397 projetos artísticos para a curadoria do Fime deste ano, Natacha Maurer observa que a produção das mulheres está mais ampla. “Há trabalhos muito silenciosos, minimalistas, até noise mais pesado. Está sendo produzida muita coisa. É muito diverso, as mulheres estão em todas as áreas”, atesta Natacha, que, junto à artista Renata Roman, também produz há dois anos a série de apresentações Dissonantes, voltada para o protagonismo feminino. “Durante um bom tempo, as mulheres que se viam nas plateias eram as mulheres dos músicos. No Dissonantes, vemos uma mudança nisso, com um público majoritariamente feminino. Quando a mulher se vê no palco, há uma identificação, um incentivo”, argumenta Renata.
Desde 2005 frequentando o circuito, a musicista e pesquisadora Lílian Campesato afirma que os palcos são “um pouco mais coloridos agora”. “Não que as mulheres não já produzissem. Mas eram silenciadas. Virgínia Woolf tem uma frase muito boa: 'O anônimo é uma mulher'. Mesmo sendo um espaço de contracultura, de resistência, a música experimental ainda é predominantemente branca e feita por homens”, diz Lílian, que está no Recife para uma oficina e uma apresentação. “Lembro que quando comecei a me interessar por música eletroacústica na universidade, me disseram que eu tinha que passar pela história da música inteira para poder fazer isso. Isso já é um preconceito. As mulheres têm que ser muito melhores do que os homens, não podem ter dúvidas, têm que ser 'fodas'. Isso é muito cruel. Muitas meninas se emudecem”, comenta. “No noise, há uma falsa expectativa de que a mulher só vai encontrar um lugar se fizer um trabalho agressivo, ruidoso. De ir contra o estereótipo que coloca a mulher no lugar da delicadeza, da beleza, da diva. Isso não deveria ser uma discussão: a mulher deve fazer o que ela quiser”, defende.
A musicista e pesquisadora Lílian Campesato. Foto: Guilherme Tosetto/Divulgação
Em uma época na qual o discurso do feminismo é sugado e apropriado pelo capitalismo, com até grandes lojas de departamentos vendendo camisetas com dizeres como “The future is female”, a compositora, poeta e musicista Flora Holderbaum alerta para o perigo de se falar em uma “música feminista” ou “feminina”. “É um limiar muito tênue entre resistir e ser estigmatizada pelo que você é taxada. Acho bem complicado [as denominações] porque envolvem um campo semântico muito duvidoso e pouco esclarecido e, para piorar, está na moda. Ser feminista virou um filão de mercado e há que se tomar cuidado em não ser explorada e acabar atuando ao contrário das forças que você acredita.”
OCUPAR ESPAÇOS No Recife, a cena experimental como um todo já é pequena, e a participação das mulheres ainda mais restrita. No entanto, alguns projetos vêm tomando corpo, como o Teta Lírica, de Marie Carangi, e trabalhos fronteiriços de Ruth Steyer e Flávia Pinheiro. Para incentivar a criação e a produção por mulheres, um pequeno grupo começa a surgir, ainda sem nome. A artista sonora Tainã Ramos Leal conta que o objetivo das reuniões é não só trocar material de estudo sobre eletrônica e programação, mas principalmente criar. “A música experimental é branca, hétero e masculina. Isso dá uma certa insegurança para as mulheres apresentarem seus trabalhos. Nas nossas conversas, percebemos que todas nós tocamos e produzimos dentro de casa. Agora, queremos ocupar espaços. Não podemos esperar a validação de um homem para nos apresentar em público”, diz Tainã.
A compositora, poeta e musicista Flora Holderbaum. Foto: Adriana MC/Divulgação
Em São Paulo, a rede Sonora coloca, há dois anos, o foco nas mulheres em discussões semanais sobre música contemporânea. Todas as reuniões são gravadas e disponibilizadas no site www.sonora.me. Entre os projetos da rede, se destaca a série Vozes, que apresenta e discute a obra de compositoras. Há também uma lista de discussão por e-mail, aberta a interessadas e interessados: mulheresnamusica@googlegroups.com.
PARA OUVIR MULHERES
Maja Ratkje https://soundcloud.com/majasolveig A exuberante obra dessa norueguesa já ganhou diversos prêmios, como o da Russolo Foundation. É uma artista versátil – indo da doçura aos sons que subjugam o ouvinte. Usa muito a voz e ruídos em suas composições e improvisos. Tem trabalhos para o teatro, a dança, o cinema, as artes visuais e as óperas.
Eliane Radigue http://bit.ly/2nBUQ2b Uma das pioneiras da música experimental, começou seus trabalhos na década de 1950 como assistente de Peter Schaeffer – de quem rompeu para criar sem as amarras da música concreta. Na década de 2000, Radigue passou a compor também para instrumentos acústicos. Ainda na ativa, aos 85 anos, compõe em média uma peça a cada três anos.
Valéria Bonafé https://soundcloud.com/valeriabonafe “Entendo a composição como espaço de choques”, é como Valéria apresenta seu trabalho. Compõe majoritariamente para instrumentos acústicos, com destaque para obras com pianos e instrumentos de cordas, além de trabalhar com objetos do cotidiano.
Diamanda Galás http://diamandagalas.com Compositora, pianista e cantora norte-americana de origem grega que trabalha desde a década de 1980 com temas obscuros. Suas performances vocais são intensas, para dizer o mínimo.
Fari Bradley https://soundcloud.com/farib Artista sonora nascida no Irã e radicada na Inglaterra e nos Emirados Árabes, Fari desenvolve trabalhos com aparelhos eletrônicos, sons do ambiente e colagens.