A Sede da ONG, na mesma Rua Ary Peter onde hoje se encontra, veio da doação de uma pesquisadora acadêmica, suíça, que fazia voluntariado de cooperação internacional naquela área. Não imaginava a dimensão que tomaria o processo de cooperação que estava apenas iniciando. Aquela acadêmica “vinda de longe” chamou a atenção da menina Domitila, segundo escutei de Roberta, na época em que sua filha foi escolhida liderança mundial pela Unesco – onde eu trabalhava como consultor internacional. Domitila – freireana precoce – dizia haver estabelecido, já aos 13 anos, um método pedagógico que ela define como artivismo: arte e diversidade cultural como instrumentos da transformação de vidas e, portanto, das sociedades onde vivem.
Ela tornou-se contadora de histórias para as meninas da comunidade, ao mesmo tempo em que organizava desfiles em passarelas imaginárias. Desfiles que lançavam aos ares a autoestima das estudantes das atividades de reforço escolar do CAMM. Domitila já dizia saber que entraria para a universidade. Foi na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) onde iniciou seus estudos em Serviço Social.
Minha memória não falha ao lembrar-se daquela menina discursando sobre seus sonhos, diante do alto representante institucional da Unesco. Era realmente impressionante – diria mais, inesquecível – como se destacava aquela menina. “Naquele tempo, eu vi a minha autoestima subir pelos ares”, lembra Domitila, em entrevista à Continente. Dali a viajar como convidada para conferências em eventos de prestígio, como na Universidade de Harvard, na Disney e no Instituto McDonald's, foi um pulo. É embaixadora da Symrise, eleita em 2018 uma das três maiores empresas de grande porte da Alemanha que adotaram um padrão ecologista em todos os seus processos de produção. Na revista Vogue da Inglaterra, durante a London Fashion Week, deu entrevista falando de Letícia, de Elba, meninas artesãs, suas eternas amigas do bairro da Linha do Tiro. O seu contrato mais recente é o de garota propaganda da maior companhia de trens da Alemanha, Deutsche Bahn. “Até do lixão nasce flor, já diz aquela música dos Racionais MCs”, lembra Domitila.
Foto: Divulgação
Em Berlim, conheci uma advogada brasileira, filha de ativistas do movimento negro carioca, que se tornou a primeira brasileira a ter um cargo eleito no SPD, partido que acaba de ganhar o governo Alemanha. É amiga de Domitila, a Daiane Kühn. Foi então que lá me chamou a atenção uma publicação de uma amiga olindense, fotógrafa, fundadora do primeiro museu alemão sobre a migração e organizadora de shows de Gil e Caetano em Berlim. Suely Torres, a olindense, estudou como bolsista na mesma instituição que Domitila, a Universidade Livre de Berlim – derrotando, ambas, centenas de concorrentes mundiais. Foi por meio dela, de Suely, que me fizeram a pergunta: “Como não conheces Domitila?”. Na Europa, comenta-se muito sobre a brasileira, então candidata a Miss Alemanha quando nos conhecemos para realizar esta matéria.
Estão as brasileiras, desde Julia Mann – a mãe do mais importante escritor alemão, Thomas Mann – predestinadas a mudar a história do país germânico? Não acredito em coincidências. O Concurso Miss Alemanha anunciou a seleção de participantes no dia do centenário de Paulo Freire (setembro de 2020). Domitila mora até hoje em Berlim, devido a uma bolsa de estudos na mesma Universidade Livre de Suely, a Freie Universität, onde cursou o mestrado em Ciências Políticas e Sociais.
Domitila começou a ser chamada de embaixadora social principalmente por ter se tornado famosa como greenfluencer e nômade digital, especialista em marketing, e ter sido homenageada pelo Ministério de Relações Exteriores do governo da Alemanha. Também por ter aparecido numa importantíssima publicação ao lado da mulher responsável pela Biontech (no desenvolvimento da vacina antiCovid-19). O título lhe foi outorgado por grandes empresas, que passaram a contratá-la para associar seus nomes às suas ações de responsabilidades sociais corporativas.
“Eu sou uma diplomata da minha realidade social e cultural”, afirma Domitila, antecipando-se ao moderno conceito de diplomacia pública, que vem se tornando objeto de estudo em várias academias. “Eu olho na cara dos políticos e empresários europeus e digo, com convicção, que eu sei do que eu estou falando. Eu conheço as causas e tento apresentar diversas soluções. Quando você olha pro meu rosto, você vê diversidade.”
Quando a vice-presidenta dos Estados Unidos, Kamala Harris, fez o discurso de posse, lembrou-nos de Shirley Chisholm, a primeira congressista negra daquele país e primeira mulher a concorrer à presidência. Domitila sabe, como ninguém, captar a atenção de milhares de seguidores falando de cada uma das suas nove tatuagens, ao mesmo tempo em que não para de citar Chisholm: “Se não te derem um lugar à mesa, traga a sua própria cadeira e sente-se”.
Ao telefone comigo, ela não deixa de mencionar a síndrome de burnout que lhe atacou quando só tinha 30 anos. “Foi logo depois do mestrado, numa fase, emocionalmente falando, muito turbulenta e com uma carga elevada de horas extras”, relata. “Eu tive uma crise de ansiedade no escritório onde eu trabalhava e fui levada às pressas para a emergência médica. Só superei depois de três anos de terapia. Porém, as sequelas são sinais diários que me ajudam a manter a calma e o foco na saúde. E, principalmente na assertividade, o aprender a dizer não e ser transparente quando eu mais preciso”, diz Domitila, que, com terapia e muita ioga, vai superando os problemas que lhe deixaram marcas até na coluna vertebral.
“Eu fiz o meu primeiro desfile aos sete anos e lembro até que me faltava um dente na frente, na primeira sessão de fotos. Aos 13, eu dei os primeiros passos como educadora na ONG dos meus pais. Aos 21, eu me virei como modelo profissional para poder ajudar a cursar minha própria universidade em Berlim, onde já trabalhei até pro governo, depois de obter um título do idioma alemão. Mas também já trabalhei de babá e de atriz.”
Domitila havia participado da telenovela mais famosa e polêmica da Alemanha (Gute zeiten, schlechte zeiten), com mais de 7.300 capítulos exibidos. Percebeu que a dezena de biquínis confeccionados pelas amigas de infância da Linha do Tiro haveria de se transformar em uma linha de bijuterias ecológicas, “já que Berlim nem praia tem”. São biojoias, com produção estudada em escolas europeias de arte, marketing e design, joias produzidas com o material brasileiro capim dourado, o “ouro verde” com as quais chegou a participar da famosa Berlin Fashion Week e foi convidada a integrar o mais importante congresso de sustentabilidade da Europa, junto à presidente da Comissão Europeia (Ursula von der Leyen) e do cardeal africano Peter Turkson – a autoridade eclesiástica mais cotada para ser o próximo papa.
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“Eu sempre fui assim, amostrada mesmo. Chego, grito, pulo, falo com as mãos. Baixa em mim uma Rihanna ou uma Beyoncé.” A mídia alemã define Domitila Barros principalmente como “selvagem”. O nome da sua marca de moda: Ela é da Selva. Exótica? Quando descobriu que o concurso de Miss Alemanha entrou na onda mundial de desconstruir-se dos parâmetros de “beleza exterior”, sendo um dos primeiros a abolir os padrões internacionais de participação, não duvidou em se inscrever. “Eles só aceitam alemãs nesse concurso. Só eu sei o que eu passei para conseguir ter a nacionalidade alemã. Esse país só reconheceu recentemente que é um país de migração. Quando eu entro por aquela porta, o racismo e a xenofobia saem pela outra”, afirma ela, reforçando que, até 1970, mulheres negras nem podiam participar do concurso de Miss Mundial.
Focada, explicou-me seu desejo de querer a família cada vez mais perto: “Eu mereço, nós merecemos”. “Sabes que eu quase morri, criança, afogada, na Ilha de Itamaracá? Pois agora eu não vivo sem o mar. Em Portugal ou na Espanha, por exemplo, eu, como boa canceriana, quero passar um bom tempo na praia, surfando, quero sol e quero cuidar melhor de mim e das pessoas que eu amo e que me amam, desfrutando ao máximo da minha família – nesses tempos difíceis que estamos vivendo, no Brasil e no mundo”.
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Aqui, selecionamos mais trechos dessa conversa exclusiva com Domitila Barros:
HISTÓRIA DE VIDA
“Aos 13 anos, fiz minha primeira viagem sozinha. Aos 15, a Unesco me levou aos Estados Unidos. Hoje eu falo quatro idiomas. Mas é bem verdade que quando eu entrei pra trabalhar como atriz numa importante telenovela alemã, eu meti as caras sem nem saber falar alemão direito. Eu fui somente com o básico que eu aprendia e estudava em meio ao meu trabalho de babá.”
FORMAÇÃO
“A Domitila que sou hoje jamais sentaria nas mesas que senta, tirando selfie com a presidente da Comissão Europeia – e nem estaria no top 22 do Miss Alemanha [ranking à época da conversa] – se não soubesse falar quatro línguas, se não tivesse mestrado e se não tivesse as experiências na rua que eu tive. Com toda convicção do mundo, eu preciso dizer que, se não fosse a formação acadêmica, eu não teria como atuar em lugares e funções tão diferentes. E é, definitivamente, a junção de todas essas vertentes de uma mesma Domitila o que eu creio que faça a diferença em mim. Eu sempre gostei de estudar, eu era aquela que levava – por livre vontade – a tarefa de casa pro churrasco de família, sabe? Eu levei muito a sério a oportunidade de formação acadêmica que eu tive. Eu tenho total entendimento de que isso é um privilégio restrito. E, por isso, explico isso também nas minhas redes que quem tem esse privilégio deve ter também a responsabilidade e noção do que ele significa. E quem ainda não tem, mas quer ter – o que já é muito importante –, lembre-se: o não a gente já tem e o sim a gente tem que correr atrás mesmo.”
AUTOESTIMA
“A minha autoestima sempre foi muito baixa: 'a perebenta do cabelo pixaim'. Porém, com o decorrer do tempo, eu percebi que autocuidado e autoestima são ferramentas necessárias para a sobrevivência na selva de concreto. E numa vida adulta coerente com os meus valores. Hoje eu tenho consciência que a pereba sarou e o que ficou foi a lição, a cicatriz. Porque eu sou bem aquela menina que cai e levanta de novo. Quebrei braço, pé, e tudo o que uma infância tem direito.”
REDES SOCIAIS
“As redes sociais exigem muito jogo de cintura, transparência e autenticidade, tudo ao mesmo tempo. Há um custo psicológico e emocional muito alto. Eu, que nunca tive nenhum escândalo amoroso ou profissional, conduzo as minhas redes assim: solto o meu anjo. Emito opiniões, algumas vezes, não convencionais. Sem me preocupar em perder seguidores ou interação com eles. E prefiro uma rotina bem aleatória, pois cada dia na minha vida é uma coisa mais louca que a outra. Nada é igual todo dia: tem dia que tudo se resolve lançando o passinho; no outro, só na ioga mesmo e tem dia que é tanto Zoom, um atrás do outro. E olhe que seria até fácil falar sobre a minha vida pessoal nas redes sociais, o difícil é lidar com os comentários. Estes, sim, têm o poder de influenciar completamente o seu dia a dia. E podem morgar sua vibe totalmente. Daí que, literalmente, por motivo de saúde e responsabilidade virtual, eu levo muito a sério os parceiros com quem trabalho, os projetos nos quais me envolvo e a forma e intensidade com que eu divido a minha intimidade. Os temas principais da minha vida pessoal abrangem uma complexidade cultural e emocional muito alta para serem digeridos nas redes sociais. Por isso, eu os prezo muito. E é por isso que eu amo aprender e crescer com a comunidade virtual, de uma forma orgânica e bem particular.”
FUTURO
“Meu ponto focal agora é alcançar cada vez mais pessoas, empreendimentos e iniciativas que, assim como eu, estejam dispostos a entrar nessa aventura que é criar um futuro mais justo e sustentável para o mundo. Uma estimativa da ONU afirma que a mudança global para uma economia verde poderia criar até 24 milhões de novos empregos no mundo. Acredito e quero contribuir também, nesse sentido, com o meu próprio país. Confesso, entretanto, que o meu objetivo final é atuar, ser atriz e protagonizar o meu próprio filme ou seriado. Nem sei por que, mas, desde a minha infância, e com os déjà vu que eu sempre tenho, até me parece uma loucura. Mas, vai que dá bom, né? Se é sonho, otimismo ou realidade, já veremos.”
FLÁVIO CARVALHO, sociólogo e escritor.