Os títulos dos discos de Cinval ficam entre o surreal e o escalafobético, um bom exemplo: Pigdigigarêlépó Miscigenação, ou Vigiando a Tanajura. Por este parâmetro, batizar um CD de Os Amores de Sofia, sendo ele, é uma provocação. Não tem nenhuma faixa com o mesmo título do disco, que é uma recompilação. Ou seja, uma compilação em que as músicas originais são reprocessadas. Mas consta uma Sofia nos créditos das fotos da capa, Sofia Brown.
Desconhecido da maioria dos que curtem música alternativa, Cinval tem bom conceito entre os músicos. Em Overdose de Carnaval, um frevo tresloucado, que termina com sample de música indiana, Silvério Pessoa é o convidado especial. Já em O Vagalume é Isaar que junta sua voz à de Cinval. Cada uma das 13 faixas, uma surpresa. Em Banana Elétrica, um coco, súbito, entre ruídos eletrônicos artesanais, irrompe uma rabeca, tocada por Siba Veloso, e o coro de Joaninha e Carol.
Um disco que soa como um happening, de sons inusitados não premeditados, intuitivos, com letras dadaístas ou surrealistas, experimentalismo naïf. Os títulos das canções já dão uma ideia do conteúdo: “Vou Jogar Um Coco na Sua Cabeça”, “É À Noite que O Bicho Pega”, “Catador de Papelão”, “Xi-Xi-Clete” e “Calçadas Urbanas”.
A originalidade de Cinval deve-se ao fato de ele não ler teorias musicais, quase não escutar música contemporânea, não ter influências, pelo menos identificáveis, e ter escutado uma miríade de artistas, tanto os de rua, quanto os de disco. Sua música é um delírio, lisergia sem ácido. Em “Tô-de-Boa” ele se apossa de “Tudo é divino/é maravilhoso”, mas nunca foi de ouvir Caetano Veloso, nem tropicalismo.
Enfim, um disco desses só mesmo escutando. Mais músicas de Cinval estão no Spotify na playlist. Os uploads são bem recentes. O responsável por levar Cinval Coco Grude às plataformas é o DJ Elcy, amigo desde os anos 1990. Ele promete continuar com a empreitada de disseminar a obra deste objeto não-identificado da música (im) popular brasileira.
Desde seu primeiro disco solo, Falando das ruas, de 1998, Cinval mostrou-se cronista do cotidiano do Centro do Recife, onde mora (no fuzuê da Conde da Boa Vista, próximo à Rua do Hospício). “Catador de Papelão” é o nome de sua música gravada no segundo álbum da Querosene Jacaré, a que ele voltaria nos discos solo. “Andando de Kombi” está no Falando nas Ruas, com “Picolé Saia e Brusa” (picolé barato, metade escura, metade branca). Saia blusa, ou saia e brusa, como fala o picolezeiro: “A inspiração é o centro. A minha identidade. Vamos fazer uns clipes, eu e DJ Elcy, pelo Centro, Fomos esta semana para aquele lugar por trás do São Luiz. Tinha um projeto de fazer uma praça ali, mas nunca saiu. Gosto do centro porque é onde tá o besteirol, o cinema São Luiz, o 13 de Maio, o Teatro do Parque, o Beco da Fome, os noiados. Tá cada vez pior, parece que tá vindo uma saída, com o que estão fazendo no Cais de Santa Rita, hotel, centro de convenções. Então as pessoas que vão trabalhar ali vão querer morar no Centro, talvez revitalize, mas não acredito”.
Durante a pandemia, encarando o isolamento social sozinho (separou-se de sua companheira bem antes do ataque do vírus), Cinval quase é tragado pela solidão do centro: “Fiquei pirado. Só fazia beber, passei dois meses sem sair. Só descia pra beber cachaça. Às vezes saía caminhando pelas ruas desertas do centro, sem nem pensar que poderia ser assaltado. Dei muita sorte. Mas foi muita doideira. Arrumei até duas cachorras pra criar. Ia no bar de Caldácio, ele abriu na pandemia, enchia a cara e dormia ali mesmo, num cantinho”. O excesso de álcool nesse período por pouco não leva Cinval. Quando houve a abertura, ele estava com cirrose e alcoólatra, e continuava bebendo. Os amigos e parentes tanto fizeram que ele acabou concordando em ir a um hospital. Teve alta, mas continua paciente do Oswaldo Cruz.
Mas isto de sair por aí faz parte do temperamento dele. Fez isto no Novo México, quando tocou com o Querosene Jacaré, nos Estados Unidos, no início dos anos 2000. O grupo tinha agendado shows também no Arizona e na Califórnia. Mas já no Novo México, Cinval saiu por aí, na noite de um show importante, sem que os companheiros de grupo tivessem a menor ideia para onde tinha ido:
“Fizemos duas viagens, pra Portugal e pros Estados Unidos, passamos 17 dias em cada país. Em Portugal, foi tranquilo. Nos Estados Unidos, a gente bagunçou mais. Tocamos em vários bares. Fomos para um festival de índio. Uns índios que tocam rock. Quem levou a gente foi um americano chamado Jefferson. Ele veio aqui para ver o maracatu, conheceu a banda e nos convidou, através de Zé da Flauta”, conta Cinval, acrescentando que o sumiço foi só uma curtição: “Encontrei por lá uns brasileiros, até aqui de Pernambuco. A gente se danou a beber. Fomos pro aniversário de um ricaço, um militar. Um apê enorme, num prédio luxuoso. Conheci uma cearense na festa. Sei que logo a gente estava se agarrando na sala. Os gringos olhavam e só faziam rir. Passei fora um dia e meio. Depois encontrei o pessoal da banda”.
Se Cinval conseguisse se lembrar mais do que aprontou nos EUA certamente enriqueceria a matéria. Mas puxando pela memória ele traz mais histórias: “ A gente foi tocar numa porra de um bar lá. Era uma boate grande. No dia seguinte, quem ia se apresentar ali era George Clinton. Agora, não tinha bebida. Só Redbull e chocolate. Tomei dez Redbulls, não me fez efeito nenhum”. A Querosene parou a turnê por aí. Iam de van para Los Angeles, quando ligaram e informaram que o show estava cancelado.
Ele pode ser visto na mesa de uma turma que frequenta o Bar do Barbosa, na Mamede Simões, próximo ao 13 de Maio. Porém, só observa, não bebe mais. Seus discos são peças de colecionador, pelo menos dos poucos que curtem ou conhecem a música de Cinval. Ele não atrai mais atenção provavelmente porque não se encaixa nas pautas identitárias em voga. É branco, hétero, classe média, não compõe inspirado em pautas, ou ritmos da moda. Optou por ficar à margem da sociedade, não para fazer ou vender música. Escolheu seu modo de vida, sem ser influenciado por ninguém, a não ser por ele mesmo. Nunca leu Bukowski ou afins.
Raramente faz shows. Tampouco recebe convites para eventos, públicos ou privados. Não sabe, obviamente, como incluir suas músicas nas plataformas (muita gente coloca os discos no YouTube, sem que ele lucre nada com isto), muito menos divulga os lançamentos: “Meu problema é que não tenho produtor. Batalhei muito no começo, queria tocar, que o público conhecesse minha música. Acabei deixando mais de lado. Fiz shows no FIG (Festival de Inverno de Garanhuns), em Triunfo. Porém, a partir de 2008, eu não quis mais tocar. Não mandei mais documento pra Fundarpe, prefeitura. Tive uma empresária por algum tempo, mas ela parou de trabalhar comigo”.
A geração nascida nos anos 1990 tem procurado descobrir a música dos tempos de décadas passadas. Cinval já desperta interesse entre este pessoal. No entanto, encontram dificuldade para ouvir os discos, ausentes das plataformas digitais. Há alguns discos, e faixas avulsas, clipes no YouTube. Porém, boa parte com baixa qualidade sonora. Mesmo assim, Cinval conta que é abordado na rua, por jovens que querem saber da carreira dele, de como encontrar seus discos: “De vez em quando, aparece alguém na rua que me conhece. Tiram foto, querem fazer perguntas. Tem este lance do analógico, da volta do CD. Com este processo de resgate, talvez eu tenha uma chance despertar a curiosidade dessa turma”.
Como será que Cinval explica de onde vem sua música? Se citar suas influências, muitas delas sampleadas nos seus discos, a maioria dos jovens não vai saber quem são. No pequeno apartamento em que mora na área mais movimentada da Conde da Boa Vista, sua coleção de discos espalha-se amontoada por todos os espaços. No aperto financeiro, já se desfez de muitos, mas ainda resta uma quantidade considerável, recheada de raridades, como o bootleg duplo do Led Zeppelin, Going to California, ou o Their Majesties Satanic Request com capa em 3D. Muito funk americano dos anos 1970, soul a perder de vista, Steely Dan, mais jazz do que rock, Herbie Hancock, John Coltrane, Miles Davis, vanguarda, como a banda Henry Cow, e preferência pessoais, a exemplo da banda holandesa Shocking Blues:
“Ouço MPB pouquíssimo, o Brasil quase não tem rock. A MPB tem uma levada meio lenta. Da bossa nova nunca gostei, em vez de cantar parece que estão falando. Soul brasileiro também não. Ed Motta ruim demais. Só gosto daquela antiga, “Manoel”. Tim Maia é um dos poucos de que gosto. A música brasileira de hoje, todinha, tá ruim. O Aviões do forró é muito ruim, mas, diante das merdas que apareceram, se tornou bom. Quando o Rio de Janeiro começou a dizer que aquela música deles era funk, eu achei que o pessoal tinha enlouquecido, pra chamar aquilo de funk. Só dá música de corno, fuleiragem da porra, padre cantor. Roberto teve uma fase boa, nos anos 1960, a gravadora foi manipulando, e ele vai envelhecendo. Mas escuto forró clássico. Gosto muito de Luiz Gonzaga, é um Bob Dylan”, avalia. O mais original na música de Cinval é que os seus funks, jazz, reggaes, rocks são entremeados por emboladas, as letras se encaixariam em cocos. Para não perder o cacoete do rótulo: Cinval faz o naïf futurista.
Por fim, mas não menos importante, impossível se escrever sobre Cinval, e não citar o artista plástico Isaac Vieira, que vende seus trabalhos num box na Casa da Cultura. Isaac é casado com uma irmã de Cinval (Cláudio Assis filmou no apartamento em que mora com a mulher, pertinho do Cine São Luiz). Ele assina a arte e a ilustração de 23 capas de discos da Cinval Coco Grude.
Só recentemente ele aderiu ao celular, ainda sem muito interesse, Também voltou a ver TV, mais para assistir a DVDs de música. Porém, curte o noticiário: “Pelo noticiário, o Brasil tem jeito não. Entra ano, sai ano, nada muda. Daqui a pouco eu bato as botas, e adeus everybody”.
Assista ao vídeo A toca de Cinval Coco Grude, do DJ Elcy: