Os sonhos que David Lynch nos deixou
Cineasta norte-americano conhecido pelos filmes perturbadores faleceu aos 78 anos
17 de Janeiro de 2025
Lynch nos deixa com seus sonhos tão lúdicos quanto terríveis e absurdos
Foto Thiago Piccoli/ Divulgação
O cineasta do sombrio, irônico e refinado humor negro David Lynch deixou um espaço vazio no cinema surreal de horror deliciosamente indigesto, que Hollywood comprou e popularizou em obras como Eraserhead (1977), Coração selvagem (1990) Lost Highway (1997), Cidade dos sonhos (2001), O homem elefante (1980) e Veludo azul (1986). Sua série mais famosa, Twin Peaks (1990), é genialmente conduzida por um mix de humorismo quase pueril misturado ao horror, estilo que os irmãos Coen captaram perfeitamente em Fargo (1996). A morte de Lynch, aos 78 anos, foi anunciada pela família nesta quinta-feira (16), em uma postagem na conta do diretor no Facebook.
A fórmula tiro-certo do controverso panorama de terror a acometer cidade pequena e pacata acerta o alvo com a história do assassinato da doce, porém lasciva Laura Palmer. Há um irritante machismo sombreado de pedofilia que ronda a série o tempo todo, com a Laura ao mesmo tempo sensual e angelical, objeto de desejo de toda a masculinidade amedrontada com o ser feminino. Mas se damos um desconto a isso, entramos em ousadias eróticas que a TV norte-americana deixou passar no horário nobre. Personagens tão bobinhos quanto macabros e reais como o anão que fala demoniacamente de trás para frente em um cenário quadrado e cercado de cortinas coloridas do vermelho pecaminoso e infernal do imaginário coletivo.
Há também que se dar desconto à óbvia discriminação com os povos indígenas de lá, convertidos em um manso policial e um selvagem assassino que toma a alma dos mais carismáticos personagens da pequena comunidade de Twin Peaks. O pano de fundo de belas florestas e árvores gigantes faz par perfeito com a trilha sonora de Angelo Badalamenti, autor de outras trilhas de Lynch, morto aos 78 anos em decorrência de um enfisema pulmonar. Ele próprio atua como um policial um tanto bobalhão com problemas auditivos. São muitos os personagens absurdos, como a mulher que conversava com um tronco.
O diretor foi, senão pioneiro, entusiasta de nos fazer enxergar o horror perturbador que existe por trás da família perfeita de comercial de margarina. Ele colocou, literalmente, um cavalo branco na sala de estar para avisar que não é sonho. Alguma coisa muito estranha está acontecendo. A série foi cancelada e só 25 depois ganhou segunda temporada. Não fez nem de longe o mesmo sucesso nem teve o mesmo impacto.
Lynch também se arriscou na ficção científica em Duna, fracasso retumbante dos anos 1980 que após algumas décadas virou cult e ganhou até versão nova, como manda a tradição da cultura pop. O cineasta não quis ver o filme depois de concluído e se arrependeu por toda a vida por ter aceito assinar o contrato para dirigir o filme sem ter direito ao corte final.
Não é muito conhecida sua persona artista visual. Mas são tão surrealistas quanto as obras cinematográficas, suas pinturas revelam criaturas estranhas e familiares que povoam nossos sonhos mais lúdicos. Até se transformarem em pesadelo ou simplesmente no mundo real.
Lynch nasceu em Missoula, Montana, nos Estados Unidos, em 1946, estudou pintura na Filadélfia e, quando começou a fazer curtas-metragens, passou a morar em Los Angeles. Também dirigiu comerciais para a TV; o clipe de Dangerous para Michael Jackson, a pedido do cantor; escreveu um livro sobre meditação transcendental; e até uma linha de café inspirada no policial de Twin Peaks, Dale Cooper, vivido pelo ator Kyle MacLachlan. Fez ainda campanhas publicitárias e ganhou Globo de Ouro de melhor série dramática com Twin Peaks, além de Oscar Honorário em 2020 pelo conjunto da obra.
Nas redes sociais, a família postou: "Há agora um grande vazio no mundo com a sua partida. Mas, como ele mesmo diria, 'Olhe para o donut e não para o buraco'. É um dia lindo, com um sol dourado e céu azul por toda parte".