(1946-2021). Parecia exagero, mas não era. Falecido no último dia 20 de setembro aos 75 anos, de uma parada cardíaca, ele eternizou, em disco e livro, alguns músicos pioneiros e deixa como legado sua habilidade virtuosi e grande repertório. Henrique Annes tocava uma montanha de choros e valsas de antigos compositores nordestinos que só ele sabia, estando parte desse valioso acervo salvo apenas sua memória - na cabeça e também a muscular, de seus dedos.
Além de guardião da memória do choro pernambucano, Henrique também era um inspirado compositor. Grandes virtuoses da atualidade, do clássico Edson Lopes ao chorão João Camarero, gravaram a Caribeana nº 3. E em seu recente disco, o pernambucano Vinícius Sarmento registrou Recife Antigo. São indicativos de que, com o passar do tempo, o interesse pelas peças de Annes deve ainda mais crescer.
Prosador singular, voz grave, Henrique contava peripécias intercalando com a indefectível frase “entendeu, não?”, pronunciada de forma rápida. Era personagem habitado, que já motivou inspirações musicais. O cantor e compositor Guinga lhe dedicou o frevo Henriquieto. Outro músico carioca, Maurício Carrilho, homenageou o colega com dois temas neste ano: Caribenho e Voa, meu amigo!, composta um dia após sua morte.
DEDILHADAS
Por sinal Maurício, junto com o produtor e letrista Hermínio Belo de Carvalho, ajudaram Henrique Annes, ainda no começo dos anos 1980, no papel de articulador cultural e de integrante de grupos musicais, como a antológica Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco, ao lado de 11 supercraques conterrâneos. A formação mais conhecida era de João Lyra, Adelmo Arcoverde e Antônio Dias (três violas caipiras); Rossini Ferreira, Marco César e Ivanildo Maciel (três bandolins) um cavaco (Bozó) dois violões (Henrique Annes e Nilton Rangel), além de Marcos Araújo (baixo), Geraldo Leite e Inaldo Gomes (ambos na percussão).
Foi assim que o choro pernambucano passou a circular mais nacionalmente. Hermínio inicialmente queria produzir um disco em tributo aos 80 anos de Capiba. Mas sua empolgação com a Dedilhadas o fez conversar com o maestro Cussy de Almeida para criarem o Projeto Nelson Ferreira, através do qual o grupo tocou no disco de Capiba e ainda lançou o primeiro LP com músicas autorais.
Em seguida, a Dedilhadas acompanhou o cavaquinista recifense Jacaré (1929-2005), que estreava em disco com Choro Frevado, aos 56 anos de idade. Os elogios de figuras como a cantora Nana Caymmi e o maestro Radamés Gnattali evidenciaram o quanto Jacaré tinha muito mais arte do que o que aparentava apenas tocando nos bares recifenses.
OFICINA DE CORDAS
O ano de 1987 foi especial para o Dedilhadas. Eles gravaram um disco pela gravadora Som da Gente, que furou o nicho dos violões e bandolins, permitindo que os 12 músicos dividissem o palco com Art Blakey e Sarah Vaughan, no encerramento do Free Jazz Festival. “Depois do nosso show, só consegui ir pra plateia andando deitado que nem rã de tão lotada que estava a casa”, recorda o bandolinista Marco César, um grande parceiro de projetos de Henrique Annes.
Ainda no mesmo ano, Henrique gravou um LP solo interpretando músicas de Zé do Carmo (1895-1977). Já nos anos 1990, ele e Marco César bolaram a Oficina de Cordas, com sete integrantes, que rendeu dois belos CDs, produzidos por gravadoras americanas: Sounds of Pernambuco (1992, WTA Recordings) e Pernambuco’s music Brazil (Nimbus Records, 1994). O fio condutor era semelhante ao que marcara a Dedilhadas - a de se inspirar em grupos como a Orquestra Armorial e a Camerata Carioca e criar arranjos com assinatura própria, de linguagem camerística mas com instrumentos tipicamente populares. O repertório mesclava choros, frevos, maracatus e baiões, em temas autorais de releituras do cancioneiro de Pernambuco.
“Henrique era inspirador e coletivo. Tanto a Dedilhadas quanto a Oficina são trabalhos dos mais emblemáticos da música instrumental. Depois deles surgiram o Romançal, a Orquestra Retratos do Nordeste, a Acariocamerata, o Trio de Câmara Brasileiro, o Saracutia, o Galho Seco, Choro Miúdo, Conjunto Pernambucano de Choro, o Sagrama e um sem fim de grupos e formações diversas”, enumera o violonista e arranjador pernambucano Caio Cezar, em depoimento à Continente.
INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
Henrique José Pedrosa Annes nasceu no Recife em 25 de julho de 1946. Filho de criação de Elly de Medeiros Annes e de Celina Josefa Pedrosa Annes, ganhou do pai um cavaquinho aos 10 anos de idade e, tempos depois, recebeu de presente um violão oferecido pela mãe. Autodidata, aos 14 anos despertou a atenção do radialista Brivaldo Franklin, que convenceu os pais a levarem o menino para o programa Quando os violões se encontram, que era transmitido aos domingos pela Rádio Jornal do Commercio.
Foi no programa que conheceu os grandes violonistas da cidade, como Romualdo Miranda (1897-1971), irmão do bandolinista Luperce Miranda, Canhoto da Paraíba (1926-2008), Moro Rosé, Tozinho e Conceição Dias (1925-2014), que – ao que se sabe - era a única mulher violonista a se apresentar em rádio, à época.
No Recife dos anos 1950 e começo dos anos 1960, havia outro programa de rádio dedicado ao violão, o Clube das cordas, conduzido pelo violonista Zé do Carmo e transmitido pela Rádio Clube de Pernambuco. E no mesmo período havia saraus regulares em residências desses músicos já citados, além de Oscar Feitosa e tantos outros. Quem também participava dos encontros era Ernani Reis, Milton Dantas, Jaime Duarte, Armando Cunha, Rossini Ferreira, Sebastião Malta e Mestre Sérgio (os dois últimos não compunham e nem tocavam, mas agitavam os eventos).
O escrivão João Dias, marido de Conceição Dias e amigo de Jacob do Bandolim, vivia pra lá e pra cá com um gravador de rolo – não havia fita cassete ainda – registrando tudo o que podia dessas tocatas. E foi nesse convívio que Henrique Annes aprendeu diretamente dos mestres tantos choros inéditos.
Da sua formação musical, Henrique estudou violão com Amaro Siqueira e José Carrion e teoria e solfejo com Severino Revoredo. Além de tocar nos saraus, ele fez parte da equipe do Teatro Popular do Nordeste, em 1967. No ano seguinte, a convite de Cussy de Almeida Henrique Annes criou o curso de violão clássico no Conservatório Pernambucano de Música, onde ensinou por 37 anos. Também em 1968 entra no estúdio da Rozenblit para acompanhar no disco de estreia de Canhoto da Paraíba (1926-2008).
Nos anos 1970, Henrique atuou na Orquestra Armorial e mantinha presença constante nos saraus. Há uma foto, um registro histórico, já amarelado e corroído no qual vemos Henrique ao lado do seu mestre José Carrión. Na imagem também estão os violonistas Oscar Feitosa, Aloízio Gouveia e Júlio Moreira. Mais do que exibir rapazes em pé, de mãos juntas, que nem jogadores em cobrança de falta, a rara imagem remete aos encontros informais de violão na capital pernambucana daquela época. E assim Henrique foi costurando sua vida e obra na linha do tempo da música instrumental do país.
Da esquerda para a direita: scar Feitosa, José Carrión, Henrique Annes, Aloízio Gouveia e Júlio Moreira. Foto: Acervo Violão Brasileiro/ Divulgação
DESPEDIDAS
A morte de Henrique Annes repercutiu no meio violonístico brasileiro. O compositor Mauricio Carrilho, que o conheceu por volta de 1978, sempre se hospedava em sua casa quando visitava o Recife, e dirigiu a gravação do primeiro disco da Dedilhadas relata: “Tudo o que a gente fez juntos deu muito certo. Henrique formava um elo entre a geração atual e os antigos violonistas do Nordeste. A gente havia programado trazê-lo para o Rio de Janeiro para gravar aquele monte de histórias e muita música na Casa do Choro. Mas a pandemia não deixou. Pena porque, além de amigo, Henrique era gigante como artista”.
A violonista carioca Vera de Andrade lembra que conheceu Henrique Annes em 2002 quando fui convidada para tocar na peça teatral Submundo, do grupo Sobrevento. Henrique fez a trilha e a direção musical. Mas devido a muitos compromissos, não pôde acompanhar a longa turnê da peça e ela o substituiu. “Como ele compôs de maneira livre, sem partituras, aprendi direto com ele de violão para violão. Quando a peça estreou no Recife. Tive a honra e a alegria de estar no palco ao lado dele. O mestre e cabrita, como ele costumava me chamar.
O violonista e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Marcelo Fernandes recorda quando rodaram o país com 80 shows em 20 estados brasileiros na turnê Sonora Brasil, em 2009, do Sesc. “As anedotas que ele contava nessas viagens rendiam boas risadas e encheriam um livro”.
Na visão de Marcelo, Henrique Annes é um legítimo representante da profunda, refinada e sincera tradição do violão solista brasileiro. “Como compositor, tinha a inspiração de um Dilermando Reis. Era também exímio acompanhante e arranjador. Entretanto, sua magnitude não se revela a uma percepção trivial. Henrique é um caso único. E nem sempre suas performances gravadas ao acaso fazem jus ao seu legado”.
De fato, a dimensão do legado de Henrique Annes não está na performance dos shows que realizou no final da vida e nem nos vídeos disponíveis na internet. É um personagem complexo que atacou em várias frentes. Quando o convidei para a série de shows Acordes do rádio, que concebi e produzi para o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em 2011, foi que percebi melhor o recado que ele havia dado e quanto ele influenciou minha maneira de produzir cultura.
Com sua partida, lamentamos não apenas sua morte,mas também a perda de boa parte da história do violão e do choro em Pernambuco. Ele puxou da memória diversas peças antigas e inéditas de vários compositores e as passou adiante. Recebi dele algumas preciosidades também. Mas tinha muito o que gravar ainda. Não deu tempo. Felizmente o parceiro bandolinista Marco César segue produzindo muito. E novas gerações seguem criando como nunca a partir do legado de Henrique Annes.
ALESSANDRO SOARES é jornalista, produtor musical e pesquisador do violão brasileiro.