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Adeus ao Mestre J.Borges

Xilogravurista e cordelista faleceu, aos 88 anos, nesta sexta-feira (26), em Bezerros, deixando legado nas artes que contribuiu para projetar internacionalmente

26 de Julho de 2024

Foto Leopoldo Conrado Nunes

“A arte dá liberdade ao pensamento humano”

“A gravura ficou conhecida por causa do cordel. Hoje é quase uma coisa de primeira necessidade. Todo mundo quer ter um cordel em casa”, afirmou J.Borges, em uma de suas últimas entrevistas. Nesta sexta-feira (26), às 6h, o mestre faleceu, de causas naturais, em sua terra natal e de toda a vida, Bezerros (agreste pernambucano), aos 88 anos, deixando um legado na arte.

O depoimento acima foi concedido à Continente, para a reportagem sobre gravura contemporânea, publicada na edição trimestral de julho, que traz, como brinde encartado, uma das últimas xilogravuras assinadas pelo artista. Nessa entrevista, Borges estava em sua casa-ateliê, em Bezerros, recuperando-se de uma costela quebrada e com o abdômen enfaixado. “Desde que levei essa queda, nunca mais me faltou dor (risos)”, disse, sem perder o humor.

Nascido em Bezerros, em 20 de dezembro de 1935, José Francisco Borges, conhecido como J. Borges, somente frequentou a escola por um ano. Então, aprendeu a ler, escrever e fazer contas praticamente sozinho. E passou a trabalhar a partir dos 10 anos. Na adolescência, trabalhou em diversas funções, como carpinteiro e pedreiro, até descobrir a literatura de cordel, passando a escrever seus poemas. Aos 20 anos, começou a carreira de artista popular, ilustrando os cordeis que escrevia e vendia, sendo também autodidata na técnica da xilogravura.

J.Borges em seu ateliê, no início dos anos 1970. Foto: acervo pessoal

“Entrei na arte abrindo caminho a fogo. Não sabia nem o que estava fazendo. Depois que fui olhar no dicionário o que era xilogravura. Aprendi porque precisei. Escrevia cordel - tem 300 - mas não tinha quem ilustrasse”, contou. O primeiro folheto é de 1964, com capa do poeta e xilógrafo Dila: O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina. A primeira xilo foi uma pequena imagem de uma igrejinha para o cordel O verdadeiro aviso de Frei Damião. A madeira que servia de matriz era reduzida para caber nos livrinhos de cordel. “Na época não tinha como aumentar e diminuir o tamanho na impressão.”

Autodidata, J.Borges espalhou seu conhecimento pelo mundo. “Já dei aula na Suíça, França, Alemanha, Portugal, Estados Unidos…”, citou, mencionando o país norte-americano como “o melhor país do mundo fora o Brasil. Eles são iguais a nós, nordestinos. Andam com roupa comum e fazem questão de centavos. Não tem abatimento na conta não (risos)”.

“Pelo Brasil também já ensinou muito e trouxe história para contar. Algumas boas, outras nem tanto”, escreveu a repórter Carol Botelho, na reportagem sobre a gravura contemporânea, publicada na Continente. Durante a entrevista, enquanto o fotógrafo da revista, Leopoldo Conrado Nunes, disparava os cliques, Borges comentou: “Todo fotógrafo é exigente. Uma vez em Brasília um fotógrafo mandou eu subir em uma cadeira para me fotografar. Sou deficiente. Essa perna (mostra a perna direita) tem o fêmur quebrado. Subi na cadeira que ele mandou. Mas depois ele colocou outra cadeira em cima e queria que eu subisse. Safado, queria fazer o cabra de besta. Pensa que sou matuto do interior”.

J.Borges, em seu ateliê, em 2024. Foto: Leopoldo Conrado Nunes

J.Borges imprimiu estilo singular, marcante e inconfundível ao entalhe da madeira, da árvore canela-louro. A identidade gráfica borgiana, repleta de desenhos da paisagem agrestina, pássaros, árvores, frutas, pessoas, santos e animais, tornou-se um dos ícones da cultura pernambucana. E esse trabalho já ilustrou obras de escritores como José Saramago e Eduardo Galeano. “A única coisa que criei inspirado no exterior foi a Torre Eiffel. E só porque foi encomenda de um francês”, contou.

Uma obra de J.Borges foi escolhida pelo presidente Lula para presentear o Papa Francisco, na viagem ao Vaticano em 2023. A gravura, A Sagrada Família, de 96 cm X 66 cm, se tornou, então, uma das mais vendidas no ateliê. “Agora virou 'a gravura do papa'. Vendemos muito. Só não vendi mais porque a reportagem saiu quatro dias antes da Fenearte e não deu para fazer mais”, contou o mestre artesão, Patrimônio Vivo Imaterial de Pernambuco desde 2005 e agraciado com a Ordem do Mérito Cultural do Brasil em 1999.

O artista contribuiu para que a xilogravura superasse o elitismo das artes plásticas ao ser inserida nas galerias, a partir da iniciativa do marchand pernambucano Carlos Ranulpho, falecido em abril deste ano. O escritor e dramaturgo Ariano Suassuna (1927-2014), por sua vez, colaborou para propagar o nome do artista, apontando J.Borges como o melhor gravador popular do Brasil. Atualmente, a obra borgiana pode ser vista em exposição no Museu do Pontal, na Barra, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

No ateliê de J.Borges, onde podem ser adquiridas obras suas, trabalham 16 pessoas. “Gosto de trocar ideias. Meu lema é: conte a história mas não meça o tamanho do bicho. Senão a mão fica parada e não trabalha (risos)”. Quatro dos 18 filhos seguiram a profissão do pai. “A maioria já faleceu. Sou vítima de enterrar sete filhos”, lamentou. O mais novo, Bacaro Borges, 23 anos, é um nomes promissores da prole.

“No panteão da gravura em madeira, J. Borges é um dos grandes do Brasil, internacionalmente reconhecido e reverenciado. No ramo dos editores populares, a Gráfica Borges por ele liderada escreveu parte desta história, a da literatura de cordel brasileira. O poeta é autor de narrativas posicionadas entre os clássicos de cordel”, escreveu, a jornalista, poeta, pesquisadora Maria Alice Amorim, autora do livro J.Borges, entre fábulas e astúcias (Cepe Editora, 2019). “Constituiu aprendizes, disseminou saberes. Manejando memórias seculares, com alegria e vitalidade concedeu-nos a cada dia intenso legado de invenção artística e tradições. Importante deixar para outras gerações este precioso patrimônio artístico.”

“‘Abri caminho a ferro e fogo', era o que gostava de dizer J. Borges sobre a própria vida. E tinha grande lucidez, sensibilidade e alegria, sempre que fazia um balanço da trajetória artística: ‘O sentido do artista é a criação, a arte dá liberdade ao pensamento humano, alimenta o espírito. Gosto muito da liberdade de trabalhar criando o que me satisfaz’. Assim era o nosso Mestre, preciso nas palavras, sábio na compreensão da vida, do mundo”, afirma Maria Alice. “E, felizmente, permanece entre nós com a sua obra tão prolífica, tão consistente; com o exemplo de vida que legou à família e às amizades, com o rico patrimônio de memórias, de histórias, de arte, de poesia que foi construindo com as próprias mãos por todos os cantos por onde passou e viveu”.

Foto: Leopoldo Conrado Nunes

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