Música

Maestro Duda comemora 90 anos de vida e 80 anos de música

Um dos mais importantes compositores e arranjadores do frevo, o autodidata José Ursicino da Silva trabalhou com grandes maestros, tocando instrumentos de sopro e fez música para cantores consagrados

TEXTO José Teles

23 de Dezembro de 2025

Foto Marcelo Lyra/Secult-PE/Fundarpe

Nadja Maria foi cantora de destaque no cast da Rádio Jornal do Commercio, nos anos 1960. Uma das estrelinhas do rádio e do iê-iê-iê recifense. Em 1966, ela estreou com um compacto simples pela Mocambo/Rozenblit, acompanhada pelo conjunto The Silver Jets (que teve Reginaldo Rossi como vocalista). No lado A, trazia “O rapaz que sonhei”, versão de “Spanish flea” (sucesso do maestro Herb Alpert). O disquinho tem produção e arranjo assinados pelo maestro Duda, que também toca sax tenor. Na outra face “Não te amo mais”, um hully-gully, de autoria de Duda.

Duda iniciou a carreira como músico precocemente. Foto: Acervo pessoal

Nos tempos atuais, certamente causaria surpresa um maestro lendário, que nesta antevéspera de Natal comemora seus 90 nos. Referência país afora, que fez história no frevo e na música de concerto, em Pernambuco e no Brasil, arranjador, e autor de iê-iê-iê? Ora, há 60 anos, o músico era um profissional, pau pra toda obra. Todos os célebres maestros locais, incluindo Guedes Peixoto, Edson Rodrigues, José Menezes, Nelson Ferreira, Mario Mateus e Clóvis Pereira, tocavam em bailes, em teatros, criavam jingles. Não se limitavam a reger sua orquestra formavam heptetos, quintetos, trios, grupos com os quais complementavam a renda.

Na época, um dos programas dos sábados à noite era sair pra dançar. Duda, o saxofonista, contribuía animando bailes, festas temáticas nos clubes, e sempre com o ritmo do momento. Inclusive bossa nova, durante algum tempo, o ritmo da moda. Duda e o também maestro José Gomes formaram nem meados dos anos 1960 o conjunto O Bossa 7.

ORGULHO

Filho de músico, Lídio Pereira da Silva, baterista, mas que tocava pratos na banda filarmônica Saboeira, Duda (também chamado de Zezinho), começou a aprender um instrumento muito criança. Aos dez anos, ele entrou na mesma banda em que o pai tocava. Seu instrumento era a trompa, ou sax-horn, popularmente conhecida como “cachorrinho”. Não cabia em si, ao desfilar pelas ruas da acanhada Goiana de meados dos anos 1940: "Eu me sentia orgulhoso, porque, ainda menino, e já estava vestindo a gloriosa farda da Saboeira", comenta o maestro, 80 anos depois. Orgulho totalmente justificado. Pode-se afirmar que as duas bandas de música de Goiana, para seus moradores, tinham tanta ou mais importância do que times de futebol na capital. A outra banda era a Sociedade Musical Curica, simplesmente Curica, de 1848 (apoiadora do Partido Conservador), que tem um ano a maís do que a Saboeira, oficialmente Sociedade 12 de Outubro (ligada ao Partido Liberal). No auge, os encontros das banda acabavam em brigas, até tiroteios. Ambas continuam em atividade. A Curica é a banda mais antiga da América Latina. 

Muito provável que a facilidade que Duda tem de ir do popular ao erudito deve-se, em parte, à influência do seu início na Saboeira. O frevo, certamente, foi. "A banda tocava muito frevo, de Levino Ferreira, Nelson Ferreira, Zumba, Toscano Filho e outros. Furacão, o meu primeiro frevo, compus com 10 anos. A banda tocou muito, mas nunca foi gravado. As partituras desapareceram", lamenta. Anos depois foram encontradas por um pesquisador, entre a papelada na sede da Saboeira, mas voltaram a se perder. 

Ainda na sua cidade natal, Goiana, de 12 para 13 anos, Duda, já como saxofonista, formou uma mini jazz band com alguns amigos e sua idade, a Jazz Infantil. Apresentavam-se aos domingos à tarde, As músicas que tocavam, Duda escutava no rádio e, depois, passava para a partitura.

Como detalhou em depoimento ao potiguar Ranilson Bezerra Farias, para a dissertação de conclusão de mestrado (“Maestro Duda: A vida e a obra de um compositor de frevo”, 2002), Duda voltou a sua iniciativa pioneira como maestro: “(...) o rádio tocava, e o povo cantava pelas ruas. Aí eu tirava. Eu já era mais danadinho do que os outros, já escrevia as melodias pros cabras tocar (...) Ouvia o rádio, aí tirava a melodia, escrevia, aí juntava eu, [meus amigos] Marcos e Mario ... A gente fez o conjunto, um PSTU, um trombone e um sax, que era eu. Não tinha menino que tocasse bateria. Era Jazz Infantil, agora o baterista tinha um bigodão, seu Israel, um velho, porque era o único jeito. (...) Mario era da Curica e eu e Marcos, da Saboeira. Foi uma briga danada na cidade, Não pode misturar os músicos".

Em entrevista ao autor deste livro, Duda contou como tentou por fim a rivalidade entre as duas bandas de Goiana.

“Aquilo são 177 anos de rivalidade, a Curica e a Saboeira. Nasci numa família que é da Saboeira, fui aprender nela, porque meu pai era músico na Saboeira. A cidade tem três patrimônios vivos, eu, a Curica e Zé do Carmo, o que faz santos em barro, o artesão. Então a Câmara Municipal [de Goiana] me concedeu, em setembro, a maior honraria da cidade. Pedi que no dia da festa eles convidassem as duas bandas, a rivalidade permanece, mesmo assim elas foram. Apesar de eu ser Saboeira, a Curica também toca muita música minha. Na hora, pedi pra Saboeira tocar uma música, e a Curica tocar outra. Cada uma tocava uma música. Aí eu disse: as duas vão tocar juntas, eu vou reger as duas bandas. Tocaram juntas “Nino, O Pernambuquinho”, foi a celebração da paz. Se sou Patrimônio Vivo de Pernambuco, desta cidade, nasci aqui, me criei aqui, o mundo inteiro toca música minha, e aqui continuar esta rivalidade? Vai tocar as duas juntas. Foi um espetáculo muito bonito”.

ERA DO RÁDIO

Duda, no saxofone, com seu grupo na TV Jornal. Foto: Acervo pessoal

A Rádio Jornal do Commercio, inaugurada em 1948, funcionava com um padrão comparável ao da Rádio Nacional, do Rio, em alguns pontos até mais sofisticado. Foi moldada segundo a BBC1, de Londres. O dono da emissora, Francisco Pessoa de Queiroz, contratou os melhores e mais populares artistas da cidade, parte de músicos do Sudeste. Contratou inclusive um locutora canadense, miss Jane Slater, ex-BBC, porque durante uma parte do horário a Rádio Jornal transmitia em inglês. O slogan, “Pernambuco falando para mundo", era muito gozado no Sudeste, principalmente. Porém não se tratava de megalomania. Os transmissores da emissora foram adquiridos da própria BBC. Foram usados durante a Grande Guerra para difundir propaganda aliada mundo afora.

A oferta de polpudos salários pagos pela Rádio Jornal do Commercio tirou muita gente boa da Rádio Clube de Pernambuco, que até então surfava em ondas tranquilas, rivais. Um desse, foi o cantor Claudionor Germano, que naquela época ainda não conhecido como intérprete de frevo, mas que já desfrutava de muita popularidade no estado. Duda tampouco era músico de frevo, nem nunca foi. Tal como grande parte de músicos pernambucanos, também compunha frevos. Para ele, sua passagem pela emissora da família Pessoa de Queiroz foi fundamental para seu aprendizado empírico: “Minha grande escola foi a Rádio Jornal do Commercio, com a orquestra tocando no rádio, porque quase não se tocava disco. Os cantores vinham do Rio de Janeiro, da Radio Nacional, com os arranjos debaixo do braço. Tinha que tocar ao vivo, não era playback, pegar um pendrive e botar para tocar e cantar em cima. Naquele tempo, tinha que botar a orquestra para tocar. Aqueles grandes arranjos de Gnattali, Astor, Panicalli Pixinguinha, Guerra-Peixe, quando chegavam na minha mão, para gente tocar, eu pegava a partitura e ia estudar as coisas que achava bem-feita, ia aprender, via como era para fazer no meu arranjo. Esta foi a minha grande escola. Eu achava bonito, vou ver o que ele faz para ficar bonito, e fui incorporando isso ao frevo. Já os 42 anos que passei na Orquestra Sinfônica do Recife, dizem tudo. Comecei observando aqueles grandes compositores, como eles faziam, sou autodidata”. Aliás, o único na família. Todos os filhos e filhas, netos e netas fizeram cursos formais de música, boa parte no Conservatório Pernambucano de Música. Nem todos seguiram a profissão do patriarca, só uma minoria. 

Em 1950, aos 15 anos, José Ursicino da Silva, seu nome de pia, ainda estava com o estilo em formação, mas já acumulara influências de vários tipos de música, incluindo a música norte-americana, através de partituras chegadas ao Recife, geograficamente estratégica para a Marinha e Força Aérea dos Estados Unidos, na II Guerra Mundial. No Cassino Americano, no Pina, os soldados jogavam, bebiam, dançavam a música da Era do Swing, das big bands, que fizeram a trilha dos americanos durante o conflito. E, para o Recife, vieram muitos militares dos EUA, para os quais se promoviam bailes no prédio em art déco do cassino, de frente para o mar. Depois da guerra, Duda e outros músicos tiveram acesso às partituras que foram deixadas na cidade e, confessadamente, assimilou muito da música de Glen Miller, Tommy Dorsey e outros. Ele conta que analisava, minuciosamente, as partituras, por vezes, encontrando soluções que entendia como mais interessantes.

Esta história das partituras de swing americano chega a ser irônica, pelo fato de os puristas guardiães do frevo não admitirem estrangeirismos na mais popular das músicas carnavalescas pernambucanas. Um desses árbitros da cultura do estado, Valdemar de Oliveira tinha ojeriza às jazz bands tocando frevo: “As orquestras de jazz, deturpam o caráter enérgico do frevo, aveludam sua estridência metálica, roubam-lhe arestas, tornando-o, por isso mesmo, menos brilhante. Os saxofones tomam relevo na textura harmônica, romantizando a execução. Em desvantagem numérica, os trombones passam a plano secundário. O piano sacrifica o equilíbrio dos timbres. Há uma efeminização geral”. No entanto, curiosamente, não dirigia a bateria crítica à formação das orquestras de frevo, que emulavam suas congêneres americanas. Estranho que o árbitro da música pernambucana não notasse sotaque gringo nas composições de Capiba, admirador de George Gershwin.

Na Rádio Jornal do Commercio, como músico da Orquestra Paraguary, quase um garoto, Duda conviveu com instrumentistas do porte de Sivuca, Luperce Miranda, e Jackson do Pandeiro (que começou como ritmista - o que se conhece hoje por percussionista). A emissora mantinha também uma big band e uma jazz band, encarregadas de acompanhar as estrelas locais e as que vinham do Sudeste, onde se localizavam as emissoras de escutadas por todo o país.  “Fiz muitos arranjos para grandes estrelas, como Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Cauby Peixoto; fora as estrelas locais, Claudionor Germano, Expedito Baracho, Fernando Castelão, Luiz Geraldo etc”.

Independente das críticas, o sax tornou-se indispensável a uma orquestra de frevo. O instrumento de grandes maestros como José Menezes, Ademir Araújo, Edson Rodrigues, Já o maestro Duda aprendeu também oboé e corn inglês, mais para ingressar na Orquestra Sinfônica do Recife, “por necessidade” argumenta, mas seu instrumento sempre foi o sax. A ”necessidade” a que se refere porque com a inauguração da TV Jornal do Commercio, em 1960, os programas ao vivo no rádio praticamente acabaram. Parte dos músicos foi transferida para a televisão, e muitos foram dispensados, porque a TV não comportava todos.

Um golpe igualmente forte foi a introdução do videotape o que, a curto prazo, encurtaria a grade de programas locais. O golpe mortal foi a transmissão de programas do Sudeste via satélite, o Intelsat, que tornaria as emissoras regionais retransmissoras das TV do Rio e São Paulo. Assim como muita gente boa, Duda optou por ingressar na Sinfônica do Recife, onde trabalharia até a aposentadoria oficial. A OSR empregou músicos de alto gabarito dispensados de emissoras locais. Foi o caso de Levino Ferreira. Desempregado aos 70 anos (idade avançadíssima para a época) foi admitido como fagote.

Um dado pitoresco. O saxofone que Duda usava desde o final dos anos 1950, e que está, há alguns anos, nas mãos de Rafael, seu neto, que toca na Spokfrevo Orquestra, é um instrumento com história: “Aquele sax é do tempo 1958, 1960, por aí. Não era permitido trazer instrumento dos Estados Unidos. Comprei no Acordeom de Ouro, na Rua da Carioca. Eles trouxeram dois saxes dos Estados Unidos. Um foi pra Pixinguinha, o outro pra mim, da Selmer, a melhor marca de saxofone que existe”.

O autodidata José Ursicino tem uma obra, como já se ressaltou, que se estende do pop ao erudito. Ambos de fácil absorção pela ouvinte. Entre outros dons, Duda tem de fazer o difícil soar como se fosse fácil. Estudar, apenas um curso de regência com o padre Jaime Diniz, mas não foi além disso. Musicólogo, pesquisador, compositor, escritor, instrumentista, maestro, o padre Jaime Diniz (1924/1989), pernambucano de Água Preta, foi um personagem vital (e esquecido) para a música pernambucana e brasileira do século 20.

ROZENBLIT

Claudionor Germano e Duda, a TV Jornal anos 1960. Foto: Acervo pessol

Em 1966, a imprensa local noticiou que o maestro Nelson Ferreira se desentendeu com a Rozenblit (conhecida como Mocambo, por causa do seu principal selo) e deixaria a gravadora da Estrada dos Remédios, onde exercia o cargo de diretor artístico desde 1954, quando foi inaugurado o parque industrial empresa. O maestro Duda seria seu substituto. E ele assumiria a função exatamente quando Nelson Ferreira saiu e alguns dos mais importantes intérpretes de frevo se recusaram a gravar. Indagado sobre essa reviravolta, que abalaria o mercado a música carnavalesca, não apenas de Pernambuco, mas do Nordeste, que consumiam o suplemento da Rozenblit, o maestro Duda, com seu jeito despachado, desmente a notícia: “Eu não sei dessa história não. Ele, Nelson, nunca brigou com Rozenblit não. Estava cansado, e me deu a direção musical, para ele descansar um pouco; e os cantores não querer gravar, é mentira, eram todos doido para gravar. Desde que me entendi de gente, eu vivi pela Rozenblit. Fui diretor musical ali. Nélson era diretor artístico, tudo aquilo passava pelas minhas mãos. Nelson dizia: ‘Menino, veja isso aí, eu fazia arranjos, harmonizava, fazia gravações, lançava cantores. Eu mesmo vendia, com Ozires Diniz e Ivan Ferraz (divulgadores). Levava discos nas estações de rádios para tocar, e tocava. Agora se leva, mas não se toca. O programa de Geraldo (Freire) toca uma vezinha ou outra; Ednaldo Santos, na quinta-feira. Só a radio universitária com Hugo Martins é que toca com mais frequência”.

De memória afiada, Duda se sai com detalhes de trabalhos históricos que realizou na Rozenblit, incluindo o LP mais vendido da gravadora, Capiba 25 anos de frevo, de 1959, uma homenagem a Lourenço Barbosa: “Eu estava naquele disco. Era do tempo em que só tinha dois canais, então veio um técnico de som de São Paulo para gravar, Cardoso, parece, um velhinho gordo, uma pessoas espetacular. A gente gravava tudo dentro, ele botou o cantor do lado de fora. O cantor cantava fora do estúdio. Dois canais: um para a voz, outro para orquestra. Quando passou para quatro canais, o estúdio já estava na [Rua] Visconde de Albuquerque”. 

Louvado pelos arranjos, Duda chegou a ser laureado como um dos 12 “Arranjadores do Século”, concedido pelo Projeto Memória Brasileira, da Secretaria de Cultura de São Paulo (afora dezenas de prêmios, honrarias e o título de doutor honoris causa).  O que José Ursicino não aprendeu na escola, absorveu de outros músicos, pelas passagens na Jazz Band Acadêmica, na Orquestra Paraguari, nos vários grupos de baile. Culminando com uma espécie de pós-graduação, durante os quatro anos em que trabalhou na TV Bandeirantes em São Paulo, de 1968 a 1970.

“Eu fui para a inauguração da TV Bandeirantes. Entre muitos trabalhos que fiz na TV, dirigi o programa de Francisco Petrônio, O Baile da Saudade, muito famoso na época” Duda estendeu seus tentáculos sonoros pela Paulicéia.Trabalhou com artistas populares, parte empresariada pelo pernambucano Genival Melo. E foi encarregado por Genival para fazer um teste com um cantor novato chamado Antônio Marcos, e o aprovou. “Preparou” a balada italianizada “Tudo passa, tudo passará”, de Nelson Ned. Que com ela, emplacou um sucesso estrondoso no Brasil e nos países hispânicos. Escreveu arranjos para Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Claúdio Fontana,Vanusa, assim como teve sambas gravados por Jamelão.

Trabalhar com artistas de renome nacional, àquela altura, para o maestro já passara à rotina: “Ainda jovem, convivi com todos eles e fiz muitos arranjos para grandes estrelas”, confirma. O que continua acontecendo até os tempos atuais. Como nos créditos dos discos o destaque vai para o produtor, causam surpresas as músicas arranjadas pelo maestro Duda. Boa parte dos frevos de sucesso de Alceu Valença tem a caneta de Duda. Roda e avisa, por exemplo. Mais recentemente Caetano Veloso e Céu gravaram músicas arranjadas por Duda.

ARMORIAL

Em 1970, quando Duda voltou ao Recife, o professor Ariano Suassuna tinha deflagrado o Movimento Armorial que, basicamente, visava criar uma arte erudita brasileira a partir de raízes da cultura popular da região nordestina, com um viés para as manifestações musicais do sertão. Queria blindar as raízes nordestinas do contubérnio da MPB com o rock e ritmos importados. Sem militar no armorial, Duda teve uma breve participação no movimento, a convite do violinista Cussy de Almeida, maestro da Orquestra Armorial de Câmera, quando, às vésperas de uma viagem para Brasília, vários deixaram o conjunto. Duda, pau para toda obra, quebrou aquele galho. Sem se ater às teorias de Ariano Suassuna, a música de Duda já estava impregnada de cultura popular, que existia em fartura na Zona da Mata Norte, onde nasceu. Pode-se afirmar, sem nenhum exagero, que o maestro Duda conseguiu fazer a liga entre o popular e o erudito com muito mais facilidade do que o armorial, sem alarde. Para Duda reger a Orquestra Armorial se tratava de uma empreitada como tantas outras

Na cobertura da imprensa, cita-se Cussy de Almeida, mas há concertos - como o que foi realizado no Hotel Nacional, com a presença do governador Eraldo Gueiros, mais próceres da república militar (sic), sem faltar o generalíssimo Garrastazu Médici - em que a imprensa não cita o regente da orquestra. José Ursicino não se mostra tão envaidecido em estar à frente da Armorial. Foi mais um concerto regido por ele que mexeu nos arranjos, e na instrumentação da orquestra. Afinal, no fundo, ele já fazia aquilo, porém sem embasamentos teóricos. Indagado pelo autor da tese acadêmica., assim ele definiu o que fez na endeusada Orquestra Armorial de Câmera: “Eu sei que fiz tanto forró, tantas coisas. Porque aquilo tudo é forró mesmo”.

Enquanto a grande parte dos que fizeram a música armorialista precisou pesquisar a cultura popular, Duda a trazia nas suas memórias afetivas, e elas vieram á tona quando passou a compor também peças eruditas. A ciranda, originada na Mata Norte pernambucana, por exemplo, está na “Suíte Monette”, das mais elogiadas de suas peças de concerto. Já em “Uma visão nordestina”, Duda trouxe o maracatu para a música de concerto. Por sua vez, em “Suíte Recife”, há baião, isquenta Muié (banda de pífanos) e frevo. Quase todas as composições eruditas dele terminam em frevo. O reprocessamento da cultura popular pelo maestro Duda finda por mais abrangente do que a música armorial.

Na citada dissertação, o autor Ranilson Farias, analisando o estilo de composição de Duda, acentua a habilidade com que este une o intuitivo aos seus conhecimentos técnicos de música: “O maestro Duda não explora em suas melodias grandes intervalos, ou passagens cromáticas, mas emprega com bastante frequência graus conjuntos, arpejos e intervalos simples, criando melodias, várias delas, baseadas em modos que são comuns nas canções e toques de viola dos cantadores nordestinos. Esses modos são o lídio (quarta aumentada) e o mixolídio (sétima abaixada), que ele utiliza como escala nordestina”.

Maestro Duda recebe o cantor China no palco. Foto: Fernando Silva/PCR

Na biografia Maestro Duda – Uma visão nordestina, o escritor, músico, e crítico de música erudita Carlos Eduardo Amaral enfatiza esta dualidade em Duda de transitar com facilidade entre o popular e o erudito, sem que teorize sobre isto. O projeto modernista de Mario de Andrade visou à formação de um caráter nacional, uma ideologia em torno da originalidade de nossa formação étnica, mas que ao cabo revelou-se sectária e pouco capaz de construir os elementos necessários para a sedimentação de uma cultura musical moderna: universidades, bibliotecas, novas formas de administração de orquestras etc. Pelo contrário, esse modernismo andradiano foi por vezes até obscurantista, dado a proibições, vetos e outras manifestações inquisitórias. “Em sua busca obstinada do folclore, praticamente eliminou o que pudesse ser considerado estrangeiro”, o texto entre aspas é do professor da ECA-USP, citado na biografia, ao fim do qual o autor emenda: “Enquanto isso, o frevo e Duda seguiam seu percurso e deixavam sua marca na alta cultura nacional. O hibridismo (a mistura, para falar mais simples) sempre foi a regra, sempre foi natural”.  

Em 2007, ano do centenário oficial do frevo, o maestro Duda apresentou o projeto Eruditos no Frevo. “O erudito parece distante, em tese. Mas quando você soma ao frevo, surgem novos estímulos. Um músico pernambucano logo reconhece as raízes, tem toda a carga da cultura popular. Gera identificação”, comenta o maestro Maviael Jr, professor do Conservatório Pernambucano de Música, filho de Duda, para o qual foi dedicado o frevo de rua Nino, O Pernambuquinho.

A prática do maestros e compositores transitarem do popular para o erudito não é comum. O que geralmente acontece é exatamente  contrário. Lá fora um exemplo clássico é o do maestro americano Leonard Bernstein (1918 – 1990) um dos mais importantes regentes do século XX, autor de sinfonias, música de câmera, ópera, mas que se notabilizou pelo que compôs para musicais da Broadway e para o cinema, sobretudo a trilha de West Side Story (1959, Amor sublime amor, no Brasil). Vários autores eruditos transitaram pelo popular, notadamente Heitor Vila-Lobos (1887-1959) que empregou folclore e a música popular - choro, cirandas, valsas, serestas modinhas etc.

O maestro e compositor César Guerra-Peixe, que incorporou muito do rico balaio de ritmos que encontrou em Pernambuco, com o comentário a seguir explica e justifica o fato de parte dos autores de frevo de rua enveredarem pelo caminho do erudito: “Considero o frevo como a mais importante expressão musical popular, por um simples fato: é a única música popular que não admite compositor de orelha. Isto é, não basta saber bater numa caixa de fósforos ou solfejar para compor frevo. Antes de tudo, o compositor de frevo tem que ser músico (...). A maioria dos compositores de frevo é composta de músicos completos, que conhecem música e são estudiosos do assunto”. É certo que alguns desses compositores, digamos, anfíbios passaram a compor música de concerto depois de terem seus conhecimentos práticos e teóricos estendidos quando foram, como citado antes, alunos de Guerra-Peixe, no Recife.

Duda conta que descobriu sua veia erudita quando entrou na OSR, em 1964: “No ambiente sinfônico, comecei a desenvolver a minha veia erudita, assim como outros músicos, Levino Ferreira, Felino, Zumba ou Capiba (que não pertenceu à sinfônica)”. Assim como resumiu da forma mais prosaica possível a música armorial, Duda, aos 90 anos, com um legado tão grandioso, quanto aclamado, reduz seus 80 anos de música, a uma nordestina e minimalista definição: “Minha obra é como caldo de cana: você mói e bebe”. 

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