Coco, ciranda e maracatu para francês ouvir e dançar
Artistas como Mestre Anderson Miguel, de Nazaré da Mata, e Mestre Arnaldo do Coco, de Olinda, participam da Caravana da Cultura Pernambucana e planejam concertos na França, Londres e Amsterdã
TEXTO Eric Delhaye
11 de Julho de 2025
Caravana pernambucana levou a cultura da Zona da Mata Norte para a cidade portuária francesa de Sète, no Mar Mediterrâneo
Foto Divulgação
Temperaturas escaldantes estão atingindo a França, e os turistas estão vagando por Sète, uma pequena cidade conhecida por seu porto de pesca no Mar Mediterrâneo, bem como por sua herança cultural e vitalidade. Este 9 de julho, como todas as quartas-feiras, é o dia do grande mercado. Mas em meio aos gritos dos comerciantes para atrair clientes, outra música pode ser ouvida: os ritmos do coco, da ciranda ou do maracatu, incomuns nesse lugar, que atraem alguns curiosos, inclusive uma criança dançando. “A cena dessa criança feliz, que dança ao som da nossa música, para nós que lutamos tanto, vale todo o dinheiro do mundo”, diz Mestre Anderson Miguel.
Por que o Mestre Anderson Miguel, famoso representante do maracatu rural de Nazaré da Mata, cujo magnífico álbum Sonorosa (2018) foi produzido por Siba e que já foi convidado para vários festivais importantes do país, está tocando em um beco, no sul da França, onde um pandeiro circula para arrecadar alguns euros? Ele faz parte da Caravana da Cultura Pernambucana, ao lado de outros quatro mestres: o trombonista Nailson Vieira, também de Nazaré da Mata, além de Arnaldo do Coco, Juninho do Coco e Lu do Pneu, todos de Olinda.
Acompanhados no palco pelo trompetista Guilherme Otávio e pela cantora Karin Úrsula, formam a trupe que desembarcou na França no início de julho, primeira parada de uma turnê europeia de um mês que os levará também a Londres (Inglaterra) e Amsterdã (Holanda). A iniciativa, a segunda do gênero após a primeira Caravana em 2012, é da empresa Terno da Mata Produções, especializada em música autoral e regional pernambucana. Seu dono, Sérgio Melo, explica o objetivo da turnê: “Vamos mostrar para o mundo essa cultura rica, mostrar a arte dos mestres. Queremos também abrir oportunidades para o futuro, fazendo contatos com produtores e com casas que recebem esse tipo de músicas na Europa.” A turnê se beneficia de contribuições públicas feitas pela editora Funcultura e pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe).
Além de se apresentar em Paris no dia 17 de julho, a Caravana participa do festival Baluê, que passa pelas áreas rurais francesas de Ardèche e Drôme. Bandas como Mundo Livre S/A e Forró na Caixa também estão entre os convidados. Poucas horas antes do show no Dancing de Sète, sentados no terraço de um albergue da juventude onde estão hospedados, os mestres da cultura regional se deleitam com esta aventura que reúne duas grandes tradições que nem sempre se cruzam, a do litoral e a do Sertão, assim como várias gerações que as representam. O mais velho da trupe, Mestre Arnaldo do Coco, que completará 60 anos em 31 de agosto, fala com experiência, já tendo participado da primeira turnê em 2012: “Quando a gente sai fora do pais, e quando a gente volta, somos mais fortes, somos mais bem recebidos e somos mais bem reconhecidos. Isso apoia a nossa cultura dentro do país, enriquece nosso currículo e dá mais valor para os editais.”
Como diz a expressão: ninguém é profeta em seu próprio país. Isto é especialmente verdade para os artistas brasileiros, de acordo com o escritor e poeta Hugo Dubeux: “Tem muito a ver com a colonização. Na mente das pessoas, o que vem da Europa ou dos Estados Unidos é maior, mais rico e, portanto, mais digno de respeito.” Hugo Dubeux também produz Orun Santana que apresenta seu solo de dança Meia Noite durante esta turnê (é financiado pelas mesmas instituições). O dançarino e capoeirista não hesita em participar dos shows que a trupe apresenta em espaços públicos para atrair pessoas aos concertos pagos. Ele conta: “Quando a gente vai pra ruas, fica tudo junto, capoeira, maracatu, coco de roda e toda a cultura nordestina. Se misturam sem esforço. A capoeira canta, toca e dança. O maracatu canta, toca e dança. O coco canta, toca e dança. O corpo, a voz e os instrumentos não estão dissociados.”
Assim como os mestres Arnaldo do Coco e Lu do Pneu, o cantor e percussionista Juninho do Coco vem do bairro do Amaro Branco, em Olinda. Visitando a Europa pela primeira vez como a maioria dos seus companheiros, tem consciência de beneficiar de uma oportunidade rara para apresentar a tradição herdada dos seus antepassados: “Venho de uma família de pescadores, bisneto de jangadeiros… Eu estava ouvindo tocar meu pai, meus avós, meus tios que estavam zabumbeiros… Estou carregando isso comigo na França, para voltar e poder demonstrar para todo o Brasil que o coco de roda tem uma força ancestral”.
Os sentimentos são os mesmos para o trombonista Nailson Vieira, que cresceu no maracatu rural: “A felicidade é imensa porque a gente vive num lugar acreditando na cultura popular como uma das principais forças de identidade de um povo. Tá sendo incrível porque eu estou com 23 anos e já estou aqui. Meu avô, que era chefe de um bloco rural, morreu aos 92 anos sem ter essa chance. A gente está aqui porque tem mestres, alguns que já morreram, que deveriam ter vindo mas que nunca conseguiram. Estamos aqui por eles”. Gostando de misturar tradição com música pop, ele cita artistas como Alessandra Leão, Renata Rosa e Karina Buhr que contribuem para abrir coco, ciranda ou maracatu a novos públicos, e não hesita em subir ao palco do festival Coquetel Molotov no mesmo programa de Pabllo Vittar e Amaro Freitas: “Essas são formas de conquistar novos espaços de respeito, como quando viajamos pela Europa.”
Mestre Anderson Miguel já gravou, em Recife, seu novo álbum que deve ser lançado no próximo verão. Entretanto, embora este passeio marque a sua primeira viagem fora do continente sul-americano, ele acredita que a Caravana faz parte da luta que vem travando desde o seu início: “Eu me sinto privilegiado de estar nessa aventura, saindo do seu lugar, do seu território, trazendo toda a cultura nossa do Brasil, do Pernambuco, da Mata Norte, do Sertão. A cultura popular sofre de desvalorizações e preconceitos, principalmente do lado religioso, da classe, da cor da pele. Não vai ter só flores mas a força do povo é maior. Quando olhamos para trás, nossos sacrifícios, as lutas dos nossos pais, dos nossos avós, dos nossos amigos que já morreram, a gente não pode desistir. É uma questão de preservar nosso tesouro cultural. É resistência pura”. E está apenas começando: é pura resistência. “É uma experiencia nova, única, mas com semblante de que valeu a pena plantar tudo o que plantamos pra trás. Estamos colhendo agora. Ainda é pouco mas tem muito pra frente”.
Quando de volta para casa, a Caravana não vai se separar. Convencidos de que seus destinos estão ligados, os mestres de diferentes tradições planejam continuar sua colaboração. Um encontro conjunto já está marcado para 30 de agosto, durante o festival Canavial, em Nazaré da Mata.