Música

Arnaldo Antunes e Vitor Araújo encerram “Lágrimas no Mar” no Recife

O artista, que recentemente teve sua obra poética celebrada em Portugal, termina, na capital pernambucana, a turnê de três anos do espetáculo de música e poesia, ao lado do pianista recifense

TEXTO Antônio Martins Neto

02 de Dezembro de 2024

Foto José de Holanda/Divulgação

É só voz e piano. Mas não é uma voz qualquer. É a voz de Arnaldo Antunes, potente, única e identificável à menor entonação. Tampouco é um piano qualquer. É o piano de Vitor Araújo, experimental, preciso e “sinfônico”, que, nas palavras de Arnaldo, às vezes “soa como se fosse um baixo, uma percussão”. Só eles, juntos, é mais do que suficiente para preencher o palco e a hora e meia do espetáculo Lágrimas no Mar, que encerra a temporada de três anos no sábado (7), no Teatro do Parque, no Recife, a terra natal de Vitor. Além das faixas do álbum homônimo gravado pela dupla, o repertório traz canções de outras fases da carreira de Arnaldo e alguns de seus poemas.

O eterno Titã costuma dizer que Lágrimas no Mar é "um disco que tem uma vontade engasgada de chorar". E é essa mesma vontade que se sente ao ver o espetáculo, que correu o Brasil e o mundo, com uma turnê pelos Estados Unidos e cinco pela Europa, passando por países como Portugal, Espanha, Inglaterra, Itália e França. A última digressão internacional ocorreu no mês de outubro passado e incluiu na programação uma parada especial em Penafiel, cidade de 70 mil habitantes a 30 quilômetros do Porto, norte de Portugal, que este ano rendeu uma homenagem a Arnaldo Antunes, sobretudo ao poeta Arnaldo Antunes.

Se a vontade de chorar se manteve engasgada, não se pode dizer o mesmo das palavras de Arnaldo. Elas estavam por todo lugar, a começar pela farmácia que ele e a mulher, a artista visual Márcia Xavier, foram assim que chegaram à cidade portuguesa. Ao se aproximar do balcão, e antes mesmo de pedir qualquer coisa à atendente, o casal se surpreendeu ao ver sobre o tampo de vidro a caixa de um “remédio para a alma” com o nome e a foto do mais performático dos Titãs. Acostumado a curar multidões com música, poesia e performance, Arnaldo gostou de se ver como princípio ativo prescrito em dose única e manipulado para uso frequente e sem contraindicação, como descrito na embalagem. O casal até tirou foto do medicamento, e se deixou fotografar com os farmacêuticos, que lançaram o produto como uma espécie de mimo ao artista.

Foi um dos tantos regalos e surpresas que Arnaldo Antunes teve entre os dias 21 e 27 de outubro, ao ser o homenageado da 17ª edição do Escritaria, o festival literário de Penafiel, o único a dedicar uma semana inteira a um autor vivo de língua portuguesa, tendo distinguido em anos anteriores nomes como José Saramago, Mia Couto, António Lobo Antunes, Manuel Alegre, Pepetela e Miguel Sousa Tavares. Agora foi a vez de Arnaldo. O primeiro brasileiro. O primeiro que também é cantor. O primeiro a usar as instalações do recém-inaugurado centro cultural da cidade, um moderno e sofisticado equipamento com auditório, anfiteatro, salas de exposição, pátio e jardim. Enfim, um espaço ideal para abrigar a obra de um artista multifacetado, que pôde retribuir a homenagem com dois shows magníficos. O primeiro com a banda e a presença da cantora Adriana Calcanhoto. O segundo, o mesmo Lágrimas no Mar que será apresentado aos recifenses, acompanhado apenas do piano subversivo do pernambucano Vitor Araújo, num espetáculo singular e potente de música, poesia e arte visual em que também faz um belo dueto com Márcia Xavier, em participação especial.


"Este ano quisemos homenagear alguém que trabalhasse a escrita numa outra plataforma e o Arnaldo, sendo um artista total, que está na música, está na poesia, está nas artes visuais, era a pessoa certa para nos ajudar a mostrar que a escrita é muito mais do que romance ou só poesia ou só crónica, pode ser muito mais coisas", explicou Tito Couto, responsável pela programação do evento.

Se já é difícil conter a obra de Arnaldo Antunes num só rótulo, imagine encerrá-la num só um espaço, por mais completo que este seja. Foi necessário então ocupar toda a cidade. A poesia concreta do autor foi materializada em faixas e cartazes dispostos em ruas, fachadas, pontos de ônibus, vitrines, outdoors. O trabalho envolveu boa parte dos moradores e comerciantes. “As faixas que nós temos espalhadas pela cidade com versos do Arnaldo nas fachadas das casas foram muitas delas feitas por idosos que estão institucionalizados, nos centros de dia, nos lares de idosos. Há muitos trabalhos também que estão nas lojas feitos pelos alunos das escolas e há muitas lojas que prepararam, por iniciativa própria, materiais e intervenções para o homenageado sem participação nenhuma nossa; são projetos independentes e que as pessoas fazem todos os anos”, disse Couto.

O homenageado também teve sua imagem espalhada por praças, becos, esquinas e até sobre as ruas, fazendo-o pairar junto às nuvens. Penafiel virou uma Arnaldolândia, embora a modéstia do artista o impedisse de ser assim tão direto. “Eu tô adorando tudo, eu tô me sentindo o Mickey na Disneylândia”, limitou-se a dizer na entrevista concedida diante do público do festival. “O que mais me emocionou foi ver a minha poesia ocupando as ruas e dialogando com o espaço público. Foi uma coisa muito gratificante porque a poesia é uma arte tão minoritária e vê-la espalhada pelas ruas de uma cidade adorável como Penafiel me tocou, ainda mais por ser a minha poesia”.

   
Homenagem a Arnaldo Antunes nas ruas de Penafiel. Fotos: Antônio Martins Neto

Quando se trata de Arnaldo Antunes entrevista vira show, dança vira verso, música vira imagem. Nada estranho, portanto, que ele respondesse a primeira pergunta do interlocutor entoando a canção “Homenagem”, de Lupicínio Rodrigues, de que se lembrou tão logo soube que seria o agraciado do festival, e que começa com os versos: "Eu agradeço essas homenagens que vocês me fazem, pelas bobagens e coisas bonitas que dizem que eu fiz". Arnaldo cantou-a inteira, numa expressão de gratidão, humildade e graça.

Inteiros estavam também seus próprios versos, reunidos pela primeira vez em um só volume pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, de Portugal, sob edição de Jorge Reis-Sá. A antologia, lançada no festival, obrigou o autor a se debruçar por obras que não revisitava havia décadas, publicadas em vários formatos, que tiveram de ser redimensionadas para caber nas 640 páginas do livro. "Tudo nele tem a ver com a linha gráfica, com a linguagem, com o trabalho na palavra, e é a partir daí que depois se expressam os tais sentimentos. Portanto, não é apenas o verso. É a maneira como o verso está na própria palavra, na própria página", explicou Reis-Sá.

Intitulado Quase Tudos, a obra foi discutida e teve trechos recitados pelo editor e pela cantora e compositora Adriana Calcanhoto, que também é poeta. “Eu acho a poesia dele muito material, muito corpórea. Ele lida muito com isso, tanto com o corpo da palavra como com o corpo em si. Com fluidos, com líquidos, com excrementos, com produtos do corpo”, definiu Adriana. “Ao mesmo tempo é um artista plástico. E às vezes tem uma expressão máxima dele que é muito poética, mas não é da palavra, que é ele dançando. Às vezes há poemas dele que estão na página como se fosse ele a dançar”.

Quase tudos, de Arnaldo Antunes, lançado no festival. Foto: Reprodução

É impossível fazer qualquer apanhado da obra de Arnaldo Antunes sem falar dos Titãs, do rock brasileiro, dos Tribalistas, da cidade de São Paulo, do Colégio Equipe. A singularidade desse artista deixou marcas por todos esses movimentos e lugares. Arnaldo já era Arnaldo, e sempre foi Arnaldo, mesmo em grupo, desde quando se envolvia nos eventos culturais do colégio que, no final dos anos de 1970, estimulava os alunos com futebol, artes visuais, poesia e muita música. Principalmente nos finais de semana, com os shows produzidos pelo hoje apresentador Serginho Groisman, que na época comandava a programação e convidava nomes como Caetano Veloso, Belchior, Clementina de Jesus, Gal Costa. Era luxo só.

Foi no Colégio Equipe que boa parte dos oito integrantes originais das Titãs se conheceu, como lembrou a jornalista Herica Marmo, autora do livro A Vida até parece uma festa: a história completa dos Titãs. Numa das mesas do festival, ela ressaltou que, desde o colégio, o grupo, em especial Arnaldo, já demostrava interesses que iam além da música, interesses esses que muitas vezes se expressavam na produção gráfica dos discos. “Essa coisa da preocupação com a capa, com o visual, com o conceito completo era uma coisa que vinha já dos Titãs”, afirmou, citando como exemplo o álbum Õ Blésq Blom, de 1989. “É uma capa do Arnaldo, muito bonita, feita à mão com borra de café, bem artesanal, e enviada de malote para a gravadora”.

A artesania de Arnaldo Antunes foi destrinchada ao longo de toda a semana em detalhes como o citado acima. Nas sessões e mesas, a programação foi intercalada com a exibição de mensagens gravadas em vídeo e enviadas por parceiros e amigos, de Nando Reis a Bruna Lombardi, passando por Marina Lima e Marcos Valle. No palco, estiveram ainda Mia Couto e Marisa Monte, numa conversa-concerto moderada por Tito Couto e pelo escritor português Valter Hugo Mãe. Uma homenagem que lhe chega aos 64 anos e que Arnaldo pôde desfrutar ao lado dos filhos Rosa, Celeste e Tomé - compromissos profissionais impediram que o ator Brás Moreau Antunes pudesse comparecer -, além do enteado, Pedro, e da mulher, Márcia. Uma homenagem que ele fez questão de dedicar à poesia brasileira, em especial a dois poetas: Augusto de Campos, sua principal referência, e Antônio Cícero, cuja morte, na Suíça, coincidiu com a semana do festival. “Um grande amigo, um poeta imenso, do qual eu queria dizer um micro poema que é uma beleza: vida, valeu; não te repetirei jamais”.

Arnaldo deixou um busto e muita saudade em Penafiel, assim como Lágrimas no Mar tem deixado saudade em que tem o privilégio de o assistir. No caso do show, o sentimento pode ser aliviado de tempos em tempo com o documentário Lágrimas no MAM (Globoplay), que inclui uma gravação do espetáculo no Museu de Arte Moderna da Bahia. Mas vale a pena ver ao vivo para ter do que lembrar e relembrar.

ANTÔNIO MARTINS NETO, jornalista pernambucano, radicado em Portugal.

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