Mirante

Um povo que se desnuda

TEXTO Débora Nascimento

05 de Outubro de 2017

'Torre de cristal', de Francisco Brennand (Recife, Pernambuco, Brasil)

'Torre de cristal', de Francisco Brennand (Recife, Pernambuco, Brasil)

Imagem Efeito ilustrativo sobre reprodução

“Obra-prima”. “O pior filme do ano. Talvez do século”. Mãe!, o novo longa-metragem de Darren Aronofsky, que estreou no Brasil no dia 21 de setembro, despertou reações polarizadas como essas. Mas não é dessa mãe ficcional e metafórica que vamos falar aqui. E, sim, de uma de carne, osso e alma, também alvo de opiniões extremadas. Ela havia levado a filha a um museu, onde um colega de profissão, o bailarino e coreografo Wagner Schwartz, fazia a performance La Bête, inspirada em Bichos, série de esculturas de Lygia Clark. Ele estava nu, no chão. O público, sentado ao redor, podia mexer no seu corpo. Várias pessoas registravam com seus celulares a ação artística. Um vídeo chegou à internet.

Nele, uma mulher, com a filha, se aproxima do artista, numa visível tentativa de mostrar à menina que a nudez, num país fundado por indígenas desnudos, é algo natural. A garota pega brevemente no tornozelo dele, fica por perto durante uns 30 segundos e sai. Vai na direção de um conhecido, que a cumprimenta com duplo high five. Sorridente, a mãe volta à roda de espectadores para se sentar com a menina. Não sabia que, por causas daqueles poucos segundos, estava prestes a se tornar alvo de uma histeria coletiva.

Wagner Schwartz fez sua performance na abertura da 35º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), na quarta-feira, 27 de setembro, mesmo dia da morte de Hugh Hefner, o fundador da Playboy, rei da pornografia, que enriqueceu com a venda da nudez feminina. A nudez, não pornográfica, é uma velha conhecida das praias de nudismos, de parques europeus e das galerias de arte. Sem nunca ter gerado tamanho estardalhaço. Isso até a chegada das redes sociais. E o fato de o Facebook bloquear postagens de obras de arte com nudez é um estímulo a mais para esse conservadorismo.

Três dias depois da performance de Wagner Schwartz, 20 pessoas protestaram na frente do MAM. Agrediram física e verbalmente funcionários do museu, como a assessora de imprensa Roberta Montanari, que levou um soco e foi chamada de “pedófila”.

"A questão foi que uma criança estava na instalação tocando o artista nu, com consentimento da mãe. Também não acho a atitude adequada. Mas podemos pensar que não sabemos que educação esta mãe dá a sua criança, quais códigos ela passa. Se pensarmos ser uma família adepta do naturismo, perceba que a coisa muda de figura. Seria apenas mais uma nudez. (...) Mas daí a chamar de pedofilia, também não. (...) Uma verdade que Schwartz mostrou foi a de que estamos todos à espreita, esperando um mínimo deslize para jogarmos todo o nosso ódio e insatisfação nas redes", escreveu o psiquiatra Alexandre Loch. 

Desde o vazamento do vídeo, pessoas que, há até pouco tempo, não sabiam da existência dessa mãe, entraram nos seus perfis no YouTube e Facebook para xingá-la, ameaçá-la. Alguns, sem disfarçar o machismo, perguntaram: “Cadê o pai dessa criança?”. Sites oportunistas aproveitaram para tirar vantagem do episódio com chamadas como: “Mãe votou em Dilma” e “Mãe que incentiva filha a tocar homem nu é militante do PT”. O Ministério Público iniciou uma investigação para apurar se houve violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por parte do MAM. Na terça-feira (3/10), na Câmara Federal, o episódio foi discutido calorosamente pelos deputados. Alguns até sugeriram a tortura como punição ao artista.

Diante da avalanche de ataques, a mulher se mantém afastada das redes sociais. Nos comentários, em seu perfil no Facebook, amigos tentam consolá-la, imaginando o inferno pelo qual está passando. O mesmo acontece com Schwartz. Em suma, duas vidas estão sendo afetadas por mais um exemplo do autoritarismo crescente neste país. Mais um episódio que demonstra a ausência da formação de um olhar libertário para a arte, que escancara a incapacidade que muitos demonstram em lidar não somente com a arte, mas também com a ciência, a educação, a política, o pensamento e, pior, o diálogo.

A repercussão negativa da performance no MAM vem se juntar a outros fatos lamentáveis que coincidentemente aconteceram em setembro. No dia 10, a interrupção da exposição Queermuseu pelo Santander Cultural (a propósito, vai haver ressarcimento aos cofres públicos, já que a mostra foi financiada com dinheiro de renúncia fiscal via lei Rouanet?), acusada injustamente de incentivo à pedofilia, zoofilia e desrespeito a símbolos sagrados. No dia 12 de setembro, foram presas duas das pessoas que protestaram, em frente à instituição, contra o fechamento.

Se os detratores da mostra queriam evitar que as pessoas vissem as telas, conseguiram o efeito contrário. Muitos dos quadros, que passariam despercebidos pela maioria da população brasileira, foram mais vistos após o encerramento precoce do que se tivessem permanecido expostos normalmente até o dia 8 de outubro. Agora, a exposição enfrenta o preconceito e o estigma para seguir o seu calendário. O Museu de Arte do Rio (MAR) não abrigará a Queermuseu por decisão do prefeito-pastor do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella.

Na sequência do efeito-Queermuseu, no dia 14 de setembro, uma comitiva de deputados estaduais do Mato Grosso do Sul resolveu ir, na companhia de policiais, ao Museu de Arte Contemporânea, em Campo Grande. Lá acontecia a mostra Cadafalso, da artista plástica mineira Alessandra Cunha (Ropre). Seu nome entrou na lista de pedófilos apenas porque o título da tela, que era, na verdade, uma denúncia, se chamava Pedofilia. O quadro – singelo, a propósito – foi apreendido.

Ainda no fatídico mês de setembro, no dia 15, a peça O evangelho, segundo Jesus, Rainha do Céu foi suspensa em Jundiaí. Uma liminar judicial atendeu ao pedido de entidades religiosas, políticos e da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). O magistrado chamou de “mau gosto” e escreveu que figuras religiosas não poderiam ser “expostas ao ridículo”. O “ridículo” era porque a história mostrava como Jesus Cristo seria tratado, se vivesse nos tempos atuais e fosse travesti. A decisão judicial já respondeu a questão inicial do espetáculo. Protagonizada pela atriz transsexual Renata Carvalho, que interpreta o papel de Jesus, a montagem apresenta o contraste entre a violência sofrida por pessoas LGBT (entre 2015 e 2017, foram 3.093 mortes) e os valores cristãos, como amor ao próximo e solidariedade.

Esses acontecimentos despertaram, nos conservadores, a sede de “justiça” e ânsia de controle. O deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) apresentou um projeto de lei que proíbe a “profanação de símbolos sagrados” nas manifestações artísticas. Em meio à crise política e econômica em que se encontra o país, o texto tramita na Câmara dos Deputados como “prioridade”. Se essa lei já estivesse em vigor, o filme Mãe!, que apresenta diversas referências bíblicas, poderia ter sua exibição proibida no Brasil, assim como aconteceu com Je vous salue, Marie (1985), de Jean-Luc Godard.

Todo esse retrocesso que atinge as artes está longe de ser o pior dos problemas do Brasil hoje, mas integra e simboliza o contexto tenebroso que vive o país (reformas trabalhista, previdenciária, “distritão”, privatização, cura gay, ensino religioso nas escolas, escola sem partido, desmonte das universidades públicas, perdão da dívida bilionária das igrejas, censura à internet...).

A arte, que era o refúgio de toda essa desventura, foi atingida em cheio. E principalmente porque nela se encontram muitos dos questionadores da engrenagem política e econômica do país. Essa agenda moralista contra a arte, além de afetá-la, também contribui para desviar a atenção do povo brasileiro para as ações do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. E ainda serve de discurso pronto, fácil e eficaz para ser utilizado por alguns presidenciáveis que visam as eleições de 2018, a exemplo do prefeito de São Paulo, apoiado pelo grupo juvenil que esteve à frente do protesto contra a exposição Queermuseu. As peças do quebra-cabeça vão se encaixando...

Como será a pauta cultural no futuro? Os projetos e as obras de artes terão que ser avaliados por uma comissão antes de chegarem ao público, como acontecia na ditadura militar? Se sim, isso tem um nome terrível: censura. A batalha do avanço social, intelectual e cultural está sendo perdida. O que pode ser feito? Curadores, artistas e diretores de instituições culturais sérias tentam reagir. Por enquanto, assistimos a tudo isso como um filme. O pior do ano. Talvez do século.

Desbravadora das performances de nudez interativa, a artista sérvia Marina Abramovic escreveu uma carta aberta a Darren Aronofsky, mas um trecho dela pode servir para os artistas que são rechaçados no Brasil de hoje: “Na minha vida, meus primeiros trabalhos dos anos 1970 foram destruídos quando ficaram prontos. Eu era tão mal-avaliada pela crítica, mas agora aqueles mesmos trabalhos são considerados ‘históricos’ e ‘pioneiros’. Você teve a coragem de expor o lado mais sombrio da natureza humana e do amor incondicional. (...) Acho, se não esta geração, mas a próxima entenderá. Uma boa obra de arte tem muitas vidas”.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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