Ruth de Souza, um exemplo de primeira grandeza
O cineasta Joel Zito Araújo partilha de sua experiência ao lado da atriz cujo centenário é celebrado este mês
TEXTO Joel Zito Araújo
11 de Maio de 2021
Ruth de Souza, grande atriz brasileira falecida em 2019, aos 97 anos
FOTO Gianne Carvalho/ Folhapress
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A primeira vez que tive a honra de dirigir a atriz Ruth de Souza foi em 1994, quando a convidei para atuar no documentário Eu, mulher negra, que tinha como tema a saúde da mulher negra, a convite do prestigioso instituto Cebrap. Ela faria o papel de uma espécie de mulher negra imemorial, declamando um texto poético, que depois seria entrecortado por entrevistas e pela estilização de danças de orixás femininas. Quando Ruth de Souza entrou no estúdio, e começamos a gravar, eu entendi por que se tornou uma lenda. Mal começou a fazer sua interpretação do meu longo texto e todos ficamos hipnotizados. Não se ouvia nem mesmo a respiração dos membros da equipe. No final, estávamos com os olhos cheios d'água. Ruth tinha memorizado páginas e páginas e interpretou divinamente em uma única tomada.
Na minha inexperiência de ainda jovem diretor, não destaquei no texto, que lhe entreguei dias antes, os pontos de interrupção e corte que faria quando fosse filmar. E ela, na sua disciplina, educação, e talvez por um carinho que já nascia por minha pessoa, não me questionou. Trouxe o texto todo decorado com a compreensão que iria ser gravado em um só take. Foi assim que nasceu a minha eterna admiração, e fomentou-se uma grande amizade e parceria que se repetiu em outros filmes, especialmente no meu primeiro sucesso, o documentário A negação do Brasil, e no meu primeiro longa ficcional Filhas do vento, levemente inspirado em sua história de vida.
Na querida Ruth, à medida que ficava encantada com o resultado desses trabalhos que fizemos, crescia o seu carinho e amizade. Até o fim de sua vida, ela me telefonou regularmente, muitas vezes me puxando as orelhas pela demora e falta de assiduidade de minhas visitas. Ela vivia em um modesto, mas confortável, apartamento na Rua Paissandu, no bairro Flamengo, no Rio de Janeiro.
Eu desfrutei imensamente desses encontros. O conjunto de qualidades que ela reunia era admirável. Especialmente sua simplicidade, seu profissionalismo, sua imensa memória e cuidado na preservação – em vídeos e fotos – dos filmes, novelas e peças de que participou. E possuía um acervo incrível. Em várias dessas visitas, enquanto desfrutava do uísque que sempre oferecia, eu via fotos e mais fotos, além de trechos de filmes relacionados a algum tópico que nascia nas conversas de cada encontro. Ruth de Souza não apenas guardava as fotos e os fatos em sua memória, como mantinha a lembrança dos nomes e sobrenomes das pessoas que passaram por sua vida, ao longo de quase um século de existência. Sua capacidade de memorização e de retenção na memória era prodigiosa.
Não me canso de repetir que o nome Ruth de Souza sempre foi sinônimo de elegância, talento e pioneirismo. Comprovando isso, vou usar essa oportunidade para relatar, mais uma vez, abreviadamente, suas conquistas e importância, na passagem do centenário dessa carioca nascida em 12 de maio de 1921 e falecida aos 98 anos, em 28 de julho de 2019.
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A revelação do seu talento teve início nos anos 1940, a partir de sua parceria, e amor, pelo grande líder negro Abdias do Nascimento, que resultou na criação do TEN – Teatro Experimental do Negro. Observando sua trajetória, a partir de então, constatamos que ela foi sempre uma estrela de primeira grandeza. Em maio de 1945, um elenco inteiramente negro pisou pioneiramente nos palcos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. E ela foi a protagonista. A peça era uma adaptação para o português do texto dramatúrgico O imperador Jones, de Eugene O’Neill, feita por Abdias Nascimento.
Cinco anos depois de estrear no cinema, no filme Terra violenta, baseada em romance de Jorge Amado, ela se destacou no Festival de Veneza, disputando o grande prêmio de melhor atriz, o Leão de Ouro, por sua atuação no filme Sinhá moça (1953). E assim ela se tornou a primeira atriz brasileira de cinema a ser indicada para um prêmio internacional dessa magnitude.
A partir daí, ela interpretará uma grande diversidade de papéis no teatro, no cinema e na televisão, atravessando décadas. Fez 25 peças de teatro e 46 minisséries e telenovelas, desde o momento em que este gênero se tornou campeão de audiência do horário nobre.
Para além dos personagens nos estereótipos de negra escrava e negra empregada doméstica que foi obrigada a fazer, ela conseguiu ser escalada para interpretar professoras, diretoras de colégio, juíza, mães-de santo, donas-de-casa, líder quilombola e líder abolicionista, tendo destaque em obras, como: A deusa vencida (1965), Passos dos ventos (1968), A cabana do Pai Tomás (1969), O bem-amado (1973), O rebu (1974), Sétimo sentido (1982), Corpo a corpo (1984), Mandala (1987), Pacto de sangue (1989), Rainha da Sucata (1990), Memorial de Maria Moura (1994) e O clone (2001).
E, no cinema, fez 37 longas-metragens, desde a segunda metade dos anos 1940 até os últimos anos de sua vida. Atuou em clássicos como Todos somos irmãos (1949), O assalto ao trem pagador (1962), Ladrões de cinema (1977) e Jubiabá (1987). Ela, mesmo com dificuldades em andar, nunca deixou de sentir o desejo de atuar no cinema ou na TV, e sempre esperava o convite para algum novo papel. Memória e lucidez nunca lhe faltaram.
A sua elegância, esse outro traço que sempre provocou admiração em todos nós, seus amigos, pode ser vista em fotos publicadas nas revistas semanais. Desde a histórica O Cruzeiro, nos anos 1950. Para a minha alegria, quando, nos anos 1990, eu fazia pesquisas para o livro e filme A negação do Brasil, descobri casualmente na Biblioteca da ECA-USP, ao folhear exemplares da revista Você, que ela escrevia um artigo semanal sobre moda, elegância, filmes e sobre o mundo cinematográfico norte- americano, no período compreendido entre 1956 e 1959, para esta revista.
Creio que parte desse conhecimento foi resultado da fase em que passou nos Estados Unidos como bolsista da Fundação Rockfeller, estudando na Howard University e fazendo um curso de interpretação na Escola de Teatro da Karamu House, em Cleveland, Ohio. Seguramente, por isso, ela também deve ter sido a primeira mulher negra a escrever regularmente em um periódico especializado em TV e cinema no Brasil.
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Mas ela também guardava ressentimentos. A falta de respeito de alguns diretores e a desconsideração pelo seu trabalho, pelos papéis e conquistas que teve ao longo de sua carreira no cinema e TV, lhe faziam sofrer, e voltava à tona em cada encontro. Apesar do reconhecimento nacional do seu nome e do seu talento, desde os anos 1950, a maioria dos papéis em que era convidada a atuar na TV e no cinema não escapavam do estigma da representação do negro como subalterno e inferior racialmente. Ser negra, em uma sociedade que valoriza acentuadamente o branqueamento e os traços arianos, impôs a ela, e aos outros atores e atrizes afro-brasileiros, personagens que eram retratados como feios e secundários socialmente, e de pouca relevância para a trama.
Para uma pessoa bonita, competente e elegante como ela, isso era quase uma espécie de morte em vida. Se observamos os poucos prêmios que recebeu ao longo de sua rica carreira, entenderemos os motivos de sua tristeza e ressentimentos.
Para a minha surpresa, seu primeiro prêmio como protagonista de um filme foi exatamente no nosso As filhas do vento, no Festival de Gramado, em 2004, mais de meio século depois de seu início no mundo do cinema. Somente na última década de sua vida é que começou a ver sua importância celebrada pela mídia.
Mas, mesmo diante dessas histórias, foi também surpreendente constatar que Ruth de Souza não se considerava bonita. Ela me confessou que só percebeu a beleza que sempre teve já na maturidade. Nos seus primeiros 50 anos de vida, nunca se achou bonita, creio que como reflexo da ideologia do branqueamento que atingiu a todos nós, obrigando-nos a nos medir sempre pelo espelho ariano.
Felizmente, a nova geração de atores e atrizes negras reconhecem que têm melhores chances de conseguir bons papéis graças ao pioneirismo e o exemplo deixados especialmente por ela, uma das maiores de sua geração. Seu exemplo de talento, elegância e dignidade ficará eternamente na história das artes brasileiras. E será sempre um antídoto contra a falsa ideia de que a população negra não teve maior destaque na nossa indústria audiovisual por falta de empenho ou de competência, ou por ter pretensamente se acomodado a um lugar subalterno em que o branco gostaria que ela sempre estivesse.
JOEL ZITO ARAÚJO, cineasta, autor e diretor do filme e livro A negação do Brasil (2001), As filhas vento (2004), Meu amigo Fela (2019).