Memória

O que aconteceu a Connie Converse?

Cantora e compositora, um dos nomes pioneiros do folk, desapareceu sem deixar rastros, permanecendo um mistério na música norte-americana

TEXTO José Teles

09 de Novembro de 2023

Gravações caseiras da compositora foram posteriormente lançadas em disco

Gravações caseiras da compositora foram posteriormente lançadas em disco

FOTO Squirrel Thing Recordings / Divulgação

Há quase 50 anos, a americana Elizabeth Eaton Converse, depois de escrever alguns bilhetes de despedida para os parentes e amigos, entrou no seu fusca, e nunca mais se soube do seu paradeiro. Estava, então, com 50 anos. De nome artístico Connie Converse, ela completará, ou completaria, 100 anos em 2024. Um mistério da música popular. Nascida no estado de New Hampshire, Connie começou a compor ainda nos anos 1940.  É considerada pioneira no folk autoral, de voz e violão, anos do formato surgir no Village, em Nova Iorque, numa cena badalada, de que Bob Dylan fez parte no início dos anos 1960.

Connie largou a faculdade, em Massachusetts, e foi morar em Greenwich Village, em Nova Iorque, para escrever e compor. Porém, sua única apresentação pública aconteceu, em 1954, num programa de Walter Cronkite, um dos âncoras mais célebres do jornalismo televisivo dos EUA. Ela foi extremamente discreta em sua vida pessoal, apesar de boêmia, fumar e beber em demasia. Quando se foi, não se sabe para onde, Connie Converse deixou para trás todas as canções que tinha escrito desde 1944, quando Bob Dylan estava com três anos de idade, e Joni Mitchell um ano.

Uma matéria na BBC atribui a ela o estilo singer/songwriter, ou seja, cantava músicas autorais, confessionais, intimistas, mas também com temas politicamente engajados. Algo que faria sucesso, criaria uma tendência, duas décadas mais tarde. Connie não fez apenas música. Foi chargista, ilustradora, poeta, ativista (participou de manifestações pelos direitos das mulheres). Acredita-se que tenha sido comunista e gay, mas não se sabe com certeza. Embora se resguardasse com tanto afinco, não fosse sociável, Connie Converse era de muitos amigos e, segundo os que privaram de sua intimidade, muito bem humorada.

Sua obra musical sobreviveu porque teve o cuidado de registrá-la num gravador doméstico. Há canções suas bem à frente do seu tempo, com letras nonsense, que lembram o Bob Dylan de Tombstone Blues: “Era uma vez um trompetista que tocou uma balada para sua amada/mas não foi suficiente para ela/ então ele tocou uma salada de lagosta/toque um pouco mais alto, amor/mostre-me que você está pensando na sua querida/sopre com mais força, amor/prove que você me ama” (a letra perde muito de sua graça nesta tradução literal). Os versos são de A little louder love, o próprio título, Um pouco mais alto, amor, soa como A little lotta love, grosso modo, Um pouco de muito amor.

OBSCURIDADE

Com exceção da ida ao programa de Walter Cronkite, Connie Converse nunca fez shows, tampouco gravou discos, e nem foi gravada por terceiros. A cena folk do Village começou, ela se mudava para Ann Arbor, Michigan. A sua obra foi preservada nas suas gravações caseiras, ou quando cantava em reuniões com amigos, que cuidaram de ligar um gravador. Não se sabe bem como surgiu o interesse pela música de Connie Converse, provavelmente por seu misterioso desaparecimento. O certo é que dois caras, Dan Dzula e David Herman, souberam de sua história e conseguiram autorização para montar a coletânea How sad how lovely, com 18 faixas, lançada em 2009. Parte é do arquivo da artista, parte de pessoas que a conheceram.

Em agosto de 2023, foi lançado um segundo disco com músicas suas, intitulado Musicks, exatamente como ela o concebeu, inclusive na ordem das faixas, e na capa, em que, com sua caligrafia, dedica o disco ao irmão e à cunhada. As gravações, de 1956, estavam com seu irmão, em cuja casa ela morava quando saiu em seu fusca para um paradeiro que permanece um enigma. Connie Converse percorreu gravadoras em Nova York, mostrando sua música, mas não se sabia onde encaixá-la. Foi recusada por todas as gravadoras. Escutando seus discos é fácil entender. Connie, cuja voz lembra um pouco a de Marianne Faithfull, não tinha influências do folk americano, tampouco do blues, e nada do rock que dominava o mercado na década de 1950. Suas canções são sofisticadas, e não se parecem com nada que era feito no seu tempo. Pairam acima dele.

Também em agosto, chegou às livrarias a biografia To anyone who ever asks – The life, music and mistery of Connie Reverse, grosso modo, “Para qualquer um que possa perguntar – A vida, música e mistério de Connie Reverse (Peguin Random House), de Howard Fishman, que passou 12 anos pesquisando sobre a biografada. Descobriu que, entre outras, idiossincrasias, Connie vez por outra, alugava um carro e saia sem destino, chegando a ir até o México. Voltava das viagens de ônibus. Algo que não era nem um pouco habitual no final dos anos 1940, muito menos para uma mulher ainda na casa dos vinte anos. Não por acaso, no álbum How sad how lovely tem uma canção chamada When go travelling, ou “Quando viajo”.

O interesse do autor veio também pela curiosidade de descobrir os motivos que levaram a arte de Connie Converse ser ignorada, e alude a quanto artistas existem, existiram, ou existirão, com o mesmo destino. Faz comparações entre ela e o inglês Nick Drake, que foi além do status de cult em 1990, quando uma canção sua foi trilha de um comercial de automóvel, ou mesmo o recém-falecido americano Sixto Rodriguez, que se tornou famoso nos EUA, graças ao documentário, ganhador de um Oscar, Searching for Sugar Man (2012, de Malik Bendjelloul). Connie Converse ganhou também um doc, We lived alone: The Connie Converse documentary (2014, de Andrea Kannes).

Em entrevista sobre a biografia, Howard Fishman comenta sobre Connie Converse: “De certa forma, ela é um fantasma. É como se em sua inteira existência tenha vivido como uma mulher invisível, que foi capaz de ver o futuro nos dando estas oferendas, pensando, escrevendo e compondo em formatos que são tão empregados hoje, mas que não eram nada usuais nos anos 1950. Então, aos 50 anos, decidiu que o mundo não a queria, nem ela o queria. E optou por ir embora. Não sabemos o que lhe aconteceu. Seu corpo nunca foi encontrado. Seu carro nunca foi achado.

Os álbuns How sad how lovely e Musicks estão disponíveis nas plataformas de músicas digitais.

JOSÉ TELES, jornalista, crítico musical e escritor.

 

 

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