Dez anos é tempo suficiente para mudar muita coisa no mundo. Dez anos atrás, Chico Ludermir fez os primeiros movimentos na construção do que viria a se tornar O livro incompleto das deusas, seu primeiro longa-metragem, que acabou de ser exibido no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, em noite de pré-estreia com debate. O filme ainda não tem data para entrar em cartaz, mas, enquanto isso, disponibilizamos, com exclusividade, o link da obra, que fica em exibição em nosso canal do Youtube por uma semana [acesse no final do texto].
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O projeto de Chico nasceu em um momento de efervescência política, mas de pouca luz sobre a realidade subalterna que os corpos trans viviam à época – o que hoje, com o avanço do debate, já se discute como corpos abjetos, periféricos, dissidentes e contra-hegemônicos. Houve um amadurecimento das pautas e lutas identitárias ao longo da última década e contar a trajetória desses anos é também contar a trajetória do mundo nesse período.
Meu primeiro contato com a obra de Chico aconteceu em 2015, há quase sete anos. A exposição Mulheres – o nascer é comprido, que ocupou a Fundação Joaquim Nabuco, no Derby, na época em que o prédio passava por uma reforma interna, foi resultado de uma série de entrevistas, anos antes, com algumas travestis pernambucanas. A temática fazia parte da pesquisa de Chico, que já dialogava com narrativas periféricas nos movimentos Ocupe Estelita e Coque Resiste. As fotografias impressas em azulejo de mulheres que eu viria a conhecer somente no ano seguinte estavam expostas no edifício quase em ruínas. As obras, que revestiam as paredes do prédio, eram composições de fotos atuais e antigas de 10 travestis, algumas dessas imagens modificadas por elas mesmas nos azulejos. A exposição se apresentou como um diálogo com o próprio cenário que, assim como aquelas mulheres, estava em transformação.
Imagens de Brenda Bazante na exposição Mulheres – o nascer é comprido, no prédio da Fundação Joaquim Nabuco, em 2015. Foto: Marília Sobral/Divulgação
Foi em 2016, após a exposição, que veio ao mundo A história incompleta de Brenda e outras mulheres. O livro é um marco fundamental para a criação do filme, são relatos de vida a partir das memórias daquelas mesmas travestis que Chico havia entrevistado anos antes, num formato de “contos de não-ficção”, como o autor define. Não porque as histórias contadas sejam inventadas, mas porque o artista entende a memória enquanto esse processo de fabulação de si, de ficcionalização da própria narrativa que muda com o passar do tempo.
O livro se lançou no Memorial da Medicina de Pernambuco e a presença daquelas mulheres me atravessou. Eu, que ainda engatinhava na minha transição, tive meu primeiro contato com uma realidade que ainda não era minha, mas, numa dose prematura de hormônio, desejava que fosse. Me tocou, sobretudo, porque naquele momento, ainda mais do que hoje, não haviam referências travestis, eu me encontrava desterritorializada no próprio corpo. Brenda – aquela que dá nome ao título do livro – me ensinou, muito educadamente, que não tem idade pros hormônios, a primeira injeção de progesterona dela foi aos 22. Eu, em toda minha altivez, no auge dos 20, só pensava em não perder tempo.
Aquilo que Chico absorve das histórias delas e escreve no livro é confrontado e registrado em filme dois anos depois. Esse hiato é fundamental para um novo olhar delas mesmas sobre suas memórias. “Aquilo que eu tinha fagocitado das histórias delas, digerido e recontado nesse lugar um pouco de conto, de literatura, já não condizia muito com as suas histórias atuais. Não só no sentido factual, porque as histórias mudam e a vida continua, mas porque esse projeto, de uma maneira mais ampla, está debatendo como a memória e o passado estão mais vinculados com o presente do que com qualquer outra coisa”, completa Chico.
Luciana Veroneze compartilha memórias da ditadura militar no filme O livro incompleto das deusas. Imagem: Chico Ludermir/Divulgação
No filme O livro incompleto das deusas, é interessante perceber os dispositivos utilizados na contação das histórias. Em um palco vazio e com apenas o livro em mãos, vemos uma teatralização e um flerte com o psicodrama, onde elas interpretam, a seu modo, as próprias narrativas que haviam sido publicadas no livro. Tal recurso parece uma menção direta ao diretor Eduardo Coutinho, no filme Jogo de cena.
Em um dos momentos mais tocantes, por exemplo, Christiane Falcão, uma das personagens, relata uma gravidez psicológica: “A barriga começou a inchar, começou a tomar forma. Meu peito começou a sair leite, ficar duro. [..] Com as terapias, eu fui entendendo que aquilo não passava de um desejo meu, de uma coisa que eu tanto queria”.
Pode-se dizer que dentro de um lugar mais filosófico do trabalho, evidencia-se a investigação de se criar narrativas nessas histórias, é o processo de ficcionalização de si. Nossas histórias são obras em aberto que podem, sim, ser modificadas. Mudamos o passado na medida em que vivemos o presente. Em cena, quando escutamos cada uma das meninas falarem de suas memórias e se relacionarem com os relatos do livro, torna-se mais interessante o gesto de criação de si, uma vez que essa narrativa dialoga também com o empoderamento de cada uma. É a possibilidade de olhar para a própria vida e contá-la, perceber que sua história tem uma potência e importância dignas de serem representadas e postas em um filme.
Registro de Wanessa Sampaio. Foto: Chico Ludermir/Divulgação
É recorrente alguns temas, como os conflitos familiares, a solidão descortinada de uma infância de desamparo, a violência na ditadura militar e o excesso dos hormônios, mas há uma generosidade em olhar esse filme não como um filme sobre mulheres trans e travestis, mas entendendo também como um filme sobre processos de memória, sobre amor, sobre relações parentais, desigualdade de classe e sobre representação.
Esses 10 anos comprovam que a construção dessa obra aconteceu dentro de um percurso em que o nível do debate e o que era possível e ético na época eram diferentes. Hoje é importante que esse corpo político, em disputa por espaço e sobrevivência, não esteja só na frente da câmera. A equipe técnica composta por mulheres e homens trans, travestis e pessoas não binárias cresceu. Desde o prefácio do livro com Maria Clara Araújo, passando por Ayomí Araújo na montagem do filme, até a identidade visual do projeto com Dante Olivier. O filme foi finalizado em 2020, mas, por conta da pandemia do coronavírus, só vem à luz agora.
A incompletude que o nome da obra sugere talvez venha desse contexto. Essa história está incompleta, pois ainda há muito para ser contado. É a lembrança constante de que somos donas de nossas narrativas e outras histórias ainda serão criadas, escritas e filmadas. Não mais por um processo de estigmatização e de preconceito, não mais pelo viés da violência, da pobreza, da carência e da falta de afeto. O livro incompleto das deusas propõe construir possibilidades outras de falar sobre esses pontos. E só o fato de estar aqui, contando parte da minha história e fazendo parte das delas, também é uma nova possibilidade de existir para outras iguais a nós, é sobre se opor e confrontar as narrativas hegemônicas estigmatizadoras.
Celebro – ainda que com um avanço de um conservadorismo perverso, num país em que a expectativa de vida das travestis é 35 anos –, dentre outras coisas, o fato de todas elas estarem vivas. Celebro como Christiane, na cena em que faz o lipsync visceral da canção italiana Cercami. Celebro Brenda Bazante, Christiane Falcão, Deuza Romero, Francine Correia, Luana Rodrigues, Luciana Veroneze, Maria Clara Sena, Mariana Silva e Rayanne Romannelly e todas as outras que não entraram no filme. Porque todas elas têm nome e sobrenome.
TANIT RODRIGUES é atriz, jornalista em formação pela Unicap e repórter estagiária da Continente.