Inédito

Me enganou o dicionário

TEXTO Guilherme Gontijo Flores

21 de Março de 2020

Ilustração Liberdade Maquiavélica

[conteúdo exclusivo Continente Online]

1.
Foi bem depois de ter crescido esta cidade,
então sem nome há tempos pela conjunção
voraz de outra cidade e cidade e cidade,
indefinidamente até tornar-se tudo
a coisa-só, inominável entre guerras
de bairros, becos, bocas, todos bem seguros
de nunca concederem-se deter um nome
alheio, de uma rua logo além, ou longa 
e longe, foi já quando, assim crescida, mais
ninguém sabia nomes, tudo condomínios
de tantos nomes muitos, nunca saberíamos,
não fosse a formação do Arquivo Respeitoso
Quando a União Inquire Válido Onomástico,
doravante chamado ARQUIVO, onde constavam
os inúmeros nomes.

2. 
Bem depois decidimos
formar Comunidade Hippie-Cibernética,
chamada CHiC, e construir um condomínio
mais que devidamente encerrado, impedido 
de entradas e saídas vitalícias: CHiC
seria o nosso nome, sendo já ciborgues
a venerar a Natureza da Maconha
Sintética. 

3.
Com nome dado, tudo errado:
no ARQUIVO havia um outro CHiC cadastrado.
Descobrimos o horror. Os nomes todos desta 
língua arquivados se encontravam na cidade
sem nome, assim sem nome todos restaríamos 
trancados vitalícios junto ao condomínio.
Nomes buscamos outros, combinando certo,
segundo a advertência dos melhores designers
onomásticos: duas, no máximo três
palavras nos garantem bom sucesso e vida
longa do nome em nosso ARQUIVO; a triste sina
foi descobrir que todos os conjuntos quase
de duas, três palavras já constavam sempre
dados a outros condomínios mais antigos.
Tentamos “Autarquias da Sinésia”, “Cabos
Mouriscos da Calábria”, “Nós de Quase Reta”,
tentamos até mesmo “O Cu da Baratinha”,
tudo era vão: nomes de bandas underground
de longa data já serviam, “Jerimum
Coisado”, “Quadros Cômicos de Berimbau”
etcétera. 

4.
Perdemos tudo.

5.
Sugeriram
“Endereçados Contra Pindamonhangaba”
em homenagem à cidade dos avós
ou bisavós de ideadores da comuna,
acreditando que o tamanho desmedido
e a desmesura do non-sense deslumbrado
seriam garantia. 

6.
Nós perdemos tudo.

7.
Entre disputas de assembleias, nos descansos,
muitos buscávamos ter paz fazendo caça,
pra desanuviar os dias sem sucesso
nos entrepostos da cidade, quase-mato,
quase-asfalto, em contornos semissinuosos
de uma modesta selva esculpida em madeira 
e amianto. Corria livre ali a caça 
com suas crias, coisas refeitas de carne
áspera e dura — o doce som daqueles guinchos 
na fuga dos motocachorros; os filhotes,
um deles sempre cai pra trás (dizem que tinham
todos eles um nome, coisa do passado,
antes do exílio interno contra peçonhentos)
e chora um pouco. Os bichos são assim. Podemos
fazer o tiro certo. Alguns por vezes comem,
porém são magros, pele grossa, já sem gosto:
perderam toda a polpa, e nem sabemos mais
o seu sustento. 

8.
Os horizontes foram bem
realinhados, tudo em traço firme: assim
sabemos bem os riscos entre céu e terra.
Tudo tem seu limite claro e arquivado,
como dentes que adentram num tecido fino.

9.
Nas derradeiras assembleias, quando
disputas mais encarniçadas ocupavam
todo o debate e violência já virava
apelo costumeiro, dezoito condôminos
— a bem dizer, dezoito dezenove avos
desta comunidade nossa, agora arcaica —
encetaram aos punhos mordidas e lascas
de fios e carne se soltaram junto a sangue
com óleo automotivo, tudo aditivado;
olhos e fibras, tudo se disseminava
feito sementes sobre o chão de silicone
onde plantamos grama iluminada e flores
de pétalas de pluma. Nós perdemos tudo.
Eles diziam, nó perdemos tudo, nós
que fundamos o chão de válvulas e cabos,
eu enquadrava um dente puro de nióbio
sobre a nuca de plástico mais frágil, nós
perdemos tudo, os dedos, sim, perdemos tudo,
o céu de verde intenso, a lata da canela
eu pego pelo pé que sobra, nós perdemos
tudo, este nome nunca tido, tudo nós
perdemos, era um nome, alguém diria, tudo
perdemos neste arquivo, os belos rios de brasa,
as bordas mornas do oceano sulfurítico,
perdemos, eis o nome, Nós Perdemos Tudo,
devidamente registrado e arquivado
por quem pôde sair em tempo e confirmar
um nome inteiro, pleno, embora não pudesse
jamais entrar no condomínio bem cercado,
amurado, vazio, entregue vitalício.

GUILHERME GONTIJO FLORES é poeta, tradutor, ensaísta e professor de Letras da Universidade Federal do Paraná.

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