Ficção

Quando todos descobrem que nada irá à frente

TEXTO Frederico Klumb

26 de Novembro de 2019

Ilustração Eduardo Azerêdo

[conteúdo exclusivo Continente Online]

para Victor Heringer

De todos os presentes na sala, que haviam de fato descoberto que nada iria à frente, apenas Salai resolveu ficar quieto e não demonstrar qualquer tipo de reação ou muxoxo. Não porque quisesse que fosse assim, contudo. O rapaz não tinha mesmo nada para dizer, então resolveu se poupar do esforço de forjar desapontamento. Forjar qualquer emoção é sempre uma tarefa exaustiva, ele pensava. Essa é a razão que explica o fato de os atores parecerem ter sempre tanta energia e aparecerem continuamente alegres nas entrevistas de TV. São atletas da emoção, têm os músculos das faces muito mais fortes do que os de qualquer outra pessoa. Qualquer outra pessoa geralmente é triste.

Numa parede quase nua, à exceção de um relógio desses bem comuns, que nos fazem esquecer das horas por não terem nada de especial chamando os olhos, o ponteiro indicava as 23:25. Já quase arredondavam quatro dias de greve.

Ninguém sabia explicar de maneira precisa o que havia movido todos os presentes para aquele espaço, uma casa de quatro quartos no município de São João Nepomuceno, zona da mata mineira, Minas Gerais. Alguns diziam que a coisa toda começara na internet, em uma das redes sociais povoadas por jovens compartilhando informações, quase nunca muito úteis, a respeito de quase tudo o que se possa pensar, ver ou ouvir.

Alguém teria começado o movimento dizendo estar exausto de não fazer o que queria fazer e exausto de fazer o que não queria fazer. Outros jovens teriam visto a postagem e replicado a postagem, como é comum e característico mesmo do engenho da internet. Alguns teriam respondido com gracejos, pensando a postagem original como mais uma piada, praticamente imperceptível em meio ao turbilhão de informação diária passando vertical na barra de rolagem. Mas haveria alguns, por fim, que teriam levado ou recebido a estrutura mais fundo dentro da cabeça, de forma que ficasse ecoando durante o dia como algumas músicas de que nem gostamos, mas que insistem em voltar aos nossos ouvidos em silêncio, pela parte de dentro do crânio.

A palavra escolhida não é gratuita. “Estrutura” foi como os jovens na casa passaram a chamar a organização total de seu movimento. Era o título do manifesto do grupo, o vocábulo que designava sua hierarquia própria e, ao mesmo tempo, uma espécie de piada que os lembrava da estrutura frasal original que detonara a greve e que, no fim das contas, não deixava as coisas tão organizadas assim, já que os próprios jovens confundiam-se por vezes ao usar a palavra, não sabendo a que exatamente estavam se referindo.

Como na internet as coisas se espalham imitando um vírus, em poucos dias já havia um grupo em outro domínio virtual dedicado a todos aqueles que também estivessem exaustos de não fazer o que queriam e exaustos de fazer o que não queriam. Outra vez, por mais que para a maior parte dos integrantes da comunidade aquilo não passasse de uma piada, com algumas semanas, para outros, a ideia foi fermentando e tornando-se um pão maior que, pensavam, um dia, quem sabe, poderia alimentar tantas cabeças tristes.

Foi em julho que alguém deu a ideia de reunirem-se presencialmente para discutir a greve imaginária. O evento contemplaria – e apenas aceitaria – aqueles que estivessem realmente – e profundamente – comprometidos com o movimento, que a partir dali começava a tomar supostos contornos de seriedade.

É comum que, na cabeça dos jovens, muitas ideias tomem grau de fermentação e agitação durante a metade do ano do calendário gregoriano, também conhecido como calendário ocidental. Talvez, para os jovens brasileiros, isso aconteça ainda mais, pela simples (e nunca simples) existência da festa de Carnaval no país. Tomar consciência da distância que estavam, quando se chega a julho, do evento maior de suas liberdades, era o barril de pólvora para uma explosão de repulsa ao tédio em suas cabeças. É claro que, pensando assim, acabamos desconsiderando uma boa parte de jovens no mundo, uma vez que a China segue outro calendário, apesar de seguir também o calendário gregoriano. De todo jeito, esta história, que aconteceu mesmo, por mais infactível que possa parecer, teve lugar no Brasil, e por isso não faz mal pensar que o referido calendário tenha sido uma das razões ou agravantes de sua ocorrência.

Na História humana, costuma acontecer um fenômeno que muito bem poderíamos chamar de humanidade: quase sempre que há um grupo de pessoas querendo alguma coisa, surge uma pessoa dizendo querer muito mesmo aquela coisa. Essa pessoa muitas vezes assume um lugar de liderança na hierarquia do grupo e acaba delineando as diretrizes de pensamento, nomeação e ação que o conjunto deve seguir.

Na greve imaginária não foi diferente. E como é preciso que rolem cabeças para que uma boa revolução seja uma boa revolução, o integrante que surgiu ocupando esse lugar começou a tomar providências e a apontar os primeiros caminhos para a paz de todos.

Ele se chamava Fernanda Araújo e sua primeira decisão foi banir do sítio virtual a maior parte de seus membros. Somente aqueles que não mostravam interesse suficiente pelos caminhos da grande greve, ela dizia pelos teclados. Foi a fase jacobina. A exemplo do que aconteceu no caso da prima francesa, na revolução da grande greve imaginária não seria preciso sujar as mãos do carrasco com sangue.

Feito o massacre necessário, sobraram no grupo cerca de 30 membros. Foi decidido que não usariam mais seus nomes reais a partir dali, muito embora quase todos já tivessem visto os nomes reais de quase todos, por estarem à mostra durante a fase inicial.

Cada um dos membros criou então perfis falsos no site. Deveriam ser identificados com a função que gostariam de estar realizando caso não estivessem exaustos de fazer o que não queriam e exaustos de não fazer o que queriam. No mesmo dia, pipocaram no site admissões de astronautas, pintores, alienígenas, escritores, cachorros, atletas olímpicos, médicos e até de um viajante do tempo e de Deus.

Como se vê, o jovem tem mania de grandeza e é um perdedor nato, mas é aí mesmo que está a sua beleza.

O pintor sugeriu o sítio dos pais em Minas para o encontro e Fernanda/Pole Dancer aprovou a ideia. Ironicamente, para a comunidade jovem não era Deus quem mandava, mas isso não é novidade para ninguém faz tempo.

O encontro foi marcado para um feriado em outubro. Era preciso ter certeza de que o interesse de todos passaria de fogo de palha, mantendo um incêndio que fosse, se não romano ou biblicamente babilônico, ao menos constante e quente o suficiente para continuar vivo por alguns meses. Parece também bastante irônico que o início de uma greve fosse marcado para o dia de um feriado e, por mais que Pole Dancer discordasse enfaticamente, expondo o que julgava enfraquecer a intenção e o manifesto do movimento, o tópico foi votado por todos e o feriado ganhou.

No dia 13 de outubro, às 10:30 da manhã, os membros da comunidade reuniram-se em carne, osso e sonho no lugar escolhido, a pequena cidade de São João Nepomuceno, zona da mata mineira, Minas Gerais.

Alguns observaram que o sítio era um pouco grande demais, e que isso criava uma contradição, em si, para um movimento que se dizia revolucionário, mas todos estavam tão felizes com o encontro, que ninguém teve muito ânimo para fazer mais do que observar.

Foi decidida uma rotina para os companheiros. A partir daquele dia, teriam tarefas a cumprir a fim de prepararem-se para o momento de expansão final. Começaria a educação comum dos membros, seriam divididas as atividades laborais de manutenção e limpeza do espaço e haveria sempre reuniões e assembleias em horas definidas.

O primeiro dia correu na paz de Cristo antes e depois da cruz.

O segundo dia correu um pouco menos na paz de Cristo antes e depois da cruz.

No terceiro dia ninguém aguentava mais.

E, no quarto, eram os próprios jovens que imaginavam-se olhando a desgraça humana lá do alto da cruz, rezando por algum tipo de mudança divina caída dos céus ou alguma forma de ressurreição, indolor e o mais veloz quanto fosse possível, claro.

O quarto dia também pode ser descrito como o momento em que todos os presentes descobrem que nada irá à frente.

Mais acostumados com bem menos trabalho do que era necessário para sustentar uma greve e colocar em curso uma revolução, os jovens sentiam-se agora igualmente exaustos de fazer o que não queriam e não fazer o que queriam para que pudessem deixar de ficar exaustos de fazer o que não queriam e não fazer o que queriam.

As atividades livres, que na realidade não eram tão livres assim, pois cada um tinha obrigatoriamente a função de praticar aquilo que estava exausto de não poder fazer antes, tinham horários muito estanques, na opinião de alguns.

E, como as funções laborais e de educação para o bem da revolução e a liberdade futura de todos, preenchiam a maior parte do dia, pintores queriam mais tempo para pintar, astronautas queriam explorar novos planetas, cachorros só queriam dormir e correr atrás do próprio rabo e atores queriam atuar outros papéis.

Salai não sabia o que queria, talvez por ter escolhido uma função bastante difícil e irrealizável. Salai queria ser Salai, amante e modelo de Leonardo da Vinci, mas ali não aparecera ninguém querendo ser Leonardo da Vinci. Se acostumou, portanto, a não fazer nada do que queria inicialmente e, quando todos os presentes descobriram que nada iria mesmo à frente, para o rapaz tanto fez tanto faz.

Naquele dia estavam um tanto cabisbaixos à exceção de Fernanda, que logo descobrira que o que queria fazer era muito mais liderar um grupo do que ser Pole Dancer. Ficou em silêncio, obviamente.

Na hora da assembleia, todos reuniram-se para reclamar. O movimento perdera o sentido e assim perdia a força centrípeta que os concentrara naquele lugar há dias.

“Nós nos enganamos e é preciso admitir os erros para alcançarmos o estágio em que poderemos fazer o que queremos fazer”, disse a atriz de musical, com a dicção de meio canto típica dos musicais.

“Abaixo a ditadura da revolução”, gritou o bilionário lá de trás, enquanto o cachorro latia.

O fotógrafo batia fotografias sem parar, agora ignorando o decoro combinado para as assembleias. Dançarinas moviam piruetas pela sala, finalmente sentindo-se totalmente livres. Alguém que havia escolhido ser Feliz sorria abobalhado como se não entendesse mais nada e ao mesmo tempo entendesse tudo, chegara ao Nirvana. A cantora de ópera ensaiou um agudo. E dois circenses pré-adolescentes – que haviam chegado ali sem a autorização das mães não se sabe como – rolavam cambalhotas pelo chão e treinavam contorcionismo. Fernanda gritava ordens vazias e desconexas.

Em dado momento, os dois pré-adolescentes correram para a varanda. A varanda ficava no alto de uma pequena colina, bem de frente para a casa, como manda a arquitetura. Abaixo da colina havia uma piscina e os dois decidiram que artistas circenses dão saltos ornamentais. A arquiteta observava tudo e gritou correndo que

“Não tem altura!”

Mas apesar de mais ninguém ver, já era tarde.

Em um dos banheiros, Salai e o Rockstar da casa se enroscavam num beijo e outros carinhos.

Alguns minutos depois, o mesmo Rockstar morreria de overdose dentro da banheira. Salai choraria muito. Havia descoberto que a única coisa que realmente queria era o amor, como todo mundo.

A vida voltou ao seu rumo normal. Era um favor que fazia a todos os presentes dizer que nada iria nunca à frente exatamente como queriam.

FREDERICO KLUMB é poeta, prosador e cineasta brasileiro. Publicou, entre outros, Bichos contra vontade (7letras).

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