Ficção

Areia

TEXTO André Capilé

02 de Fevereiro de 2020

Ilustração em bordado Isabella Alves

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Cariá, travesso
Fiz o que fiz e não foi por desespero. Se passei chispa de vespa, vesgo acertava o olho e dizia: “Foi  que veio”. Era perna no mundo com desejo muito de contar, mas de jeito, que a boca é minha e faço dela o que bem entendo. É de duvidar o caminho que nos trouxe até aqui, se é que chegamos. Tem muito eu, mas há também os outros dois, e há também os outros todos. Não sei se quero ponto cantado pra eles, não. Arrisco um dizer, de riso frouxo, da mãe que não volta, do pai que não vai. Enquanto o sol botar castigo, nem que vou fazer é nada. A vista é de mirada longa e as cabeças que encontrem a própria faca. Mas não vou perder o fio, agora não. Vou te dizer mais, sim? É torta, como a vida, cada passada de espera. O meu serviço era o primeiro, não deram. Então toma, da travessia, um travesso que conta dos pedaços a falta que come o tintim por tintim.

todo mundo comeu
na mais funda gamela

mas ninguém não me deu
raspa dessa panela

eu pedi pra beber
mas ninguém me ouviu

eu pedi pra passar
passarinho dormiu

nada mais vai prestar
no giz da encruzilhada

mudo minha cancela
eu que fico de guarda

a vida por um fio
no agudo da faca

Os preceitos por cumprir
O sol em mais um giro, na pele das mãos que se dizem por cardar idades, instala de volta o incêndio das esperas. Cada casa um cais, onde os preceitos são cumpridos à risca na cara escamada dos silêncios que, por força do hábito, afiam por sussurro a lâmina da língua. O peito abre cantiga no chamado das crianças na hora da fome. Se falta um, ninguém come. Foi Mazá que ensinou, na última volta da lua. E desde lá ainda se espera por ela.

É de muita miçanga nos fios que se contam as manhãs. Se se soubesse a mão que escava a fundo cada trança, sabia que nascer doía mais era nos filhos — diz a palavra de um pai que só se conhece a punho, pois que me sabe pouco, sabe ainda menos deles, e nunca pressentiu meus cardumes, meus enxames. Se estão soltos, foi porque deixei que vissem do mundo o que fazer com ele. Cada cabaça que conte quanta água de moringa se perdeu. Das mães aceitarei oferta na partilha da conferência do dia que começa. Pelo comércio da vida, o endereço do mar chega antes na areia.

De muito preparo é que se faz a próxima noite. Andam pelo chão móvel das marés, arrolando as peças de embarque, também a isca dos monstros. Se de lá precipita o balanço da ira, pipa de empino se lê sudoeste, as redes de arrasto se agitam firmes e os braços se vigiam vigas flexíveis no manejo. O corpo chega de passo pronto. Um de cada sabe do ofício, e do ofício de cada um, sabem-se um ao outro, e então sincronizam. Os remos contam nove ondas por respiro. As guelras darão conta da navegação.

O monstro do papo amarelo
Havia menino enluarado de brilho macio e passada suave. Dava com os pés na via como quem dança por assobio. Mexia-se olho perdido fazendo caça de nuvem e arrepio. E se queria todo de achar a palma da mão coisa pouca na medida do mundo. Sua coisa não era do sal das marinhas, mas de encontrar sombra fora da orla. Tinha muito do cheiro armado do charme. Enredava conversa mole de não acabar, não que vivesse do rebote. Embora distraído tinha paciência, mas não vacina. Era , o carne fresca, que , na ponta do papo, chegou mais junto de saber fiado. Falou no ouvido de escuta, mundos & fundos, como quem lança feitiço de olho amarelo.

bebe aqui, bebe comigo
na beira da curcurana
vou te mostrar, meu amigo
os pelos da taturana

você vai, não vai sair
nem que azul fique a suã
eu cantei pra te pedir

tua lua de arco
até de manhã

tua lua de arco
até de manhã

Sumiram no meio da feira, ninguém mais viu o menino perdido da mãe que não chega.

O dia de esperar, desperta
Compromisso empenhado, peixe miúdo, nós, as portadoras das ovas, cultivamos os filhotes aos berros. Já não cabem mais à resolução que nos emprega os que maré-me-leva-maré-me-traz. Os homens daqui já não sabem mais rezar os pratos, tampouco guardar da guerra os seus sexos. As bandeiras já estão na beira d’água e dizem que, sim, vai dar mareiro. Eles contam por remo, nós pela pisada. Hoje a quietude vai quebrar a sotaque solto o baque da onda. Dançaremos sete véus de espuma. Se a faminta encrespar, corra da mancheia das correntes de Mama Maza ia Mungo.

Eia que chego mais já, aldeia. Tenho ouvido o que cantam. Se já sabia de medida o faro do suplício, agora é que não cedo à presa dos presentes. Quando um homem inimiga a comunidade, fazendo cessão de seu quinhão de porto, é por amor o peito desabar o desastre. Não há azeite branco que amanse, que tire o azedo do óleo no mar. Não há mel que adoce o salobro da boca, não há. Eia que chego mais já, aldeia. Já perdi filho, lua-lá, tenho ouvido o que cantam. A oração da velha senhora do rio verde, ensino de novo como termina: kuenda kudila.

Um filho quando vem de ser pelo certo, nem a curva dos bambus no vendaval são de abalo. A instrução pelo trabalho, como o tempo conforma, dá de esperar o pio da bica no ferro fundido. Quando aparece, sabem todos, é ferramenta. A mãe pede, filho obedece. Mas quando o fígado adoece, sabem todos, dá de ser só o fel que corta o focinho dos cachorros.  era de correr pela gira da terra, mas hoje ficou. Criado distante das barras rendadas do amor, sonhava longe os modos de calçar as botas da luta. Bordou uma saca pra colher os pescoços dos homens mínimos. Ele pouco nada falava. Ferramenta afiada, sua respiração.

Hoje não vou fechar a porta, cá te espero. Fico de riso quando, na tua chegada, me promete uma noite de enxames. Se eu soubesse cantar, abrandava. A língua que me falta diz teu nome. Falo com pausa pra durar um pouco mais. Não é que vá adiantar de muito. A vila toda foi pra beira d’água. Sinto mais uma vez o balanço dos barcos. A vida deles não se esquece do comércio. Se você vier, resistirão eles à artilharia dos espelhos?

Canta que a noite vai
Lá vão. Ninguém arreda. O tempo é deles. Quem de cantar, que cante. Quem de dançar, que dance. Quem de beber, não perca o tino. Em cada olhar de arpão arremedar o que tinir no ritmo. Se ouvia de lá a cantoria de sete-cabrinhas, curva não dava, menos ainda pesponto no chamado.

vem mais logo pra areia brincar
eu vim aqui pra te ver

tem fazenda bordada de prata
tem brinquedo batido na lata
essa casa só tem alegria, mãinha
e tem peixe cozido em dendê

ô mãe, se tu vens de longe
vem mais logo pra areia brincar

não me deixa perder a coragem
nem me deixa perdida no mar

O tempo assanhava o compasso da roda. Um olhava no outro, mas ninguém se dizia. Era nota de desafio o ponto riscado com pé na areia. Se elas davam demanda, a contra demanda chegava no chicote da arraia.

bate daqui, bate de lá
é travessia, sapateiro

bate daqui, bate de lá
tamanco não é travesseiro

se teu canto atravessar
vai virar um pardieiro

O azougue pelo triz
O olho amarelo do feitiço via de esgueira cada acontecido e mantinha o enluarado na coleira. O bicho tenso de galho, olho perdido no caminho, todo acuado e ninguém tinha o que fazer, não. Pouco formado de todo, mas também não era menino. Jacaré, bicho homem, tinha muita boca, muito dente, odor de veneno. Um sujeito de viver sem bença, provocava. O outro era só mais um feito de carne abatida. O fundo dos olhos de Xitu gritava a mãe.

A roubada se armava no centro da praça sem que ninguém visse. O olho coagulado, vidro sem transparência, da fera que vinha a pulso de segurar tão fixo, estilado, a faca fundida a tétano. Contornava a feira, fedendo à cana, com canela russa do barro pisado. Quem vê um irmão à deriva, sofre não ser vela firme a cuidado santo. Vai pegar de ódio pelo gogó. Toma de missão o sibilo de mal feito do travesso que entregou fofoca, das que se diz, como se sabe, nem nada se tem com isso, só sei foi que vi, de ser assim. Atravessou a areia toda e, no olho cruzado, a vida encruzilha. E foi que foi Pocó dar viés ao papo cheio do bicho papão Jacaré. Corre mãe, corre menino, corre que ventou no tempo que vira. Tumulto que dava, remoinho.  viu, Pombo voou, Pombo arrevesou caminho do faca escudando o rastejante. Foi que lá todo branco ficou sangue. Esparramou. Caiu o pai, caiu o filho e o enluarado desceu. E o mar então se mexeu antes da primeira barca no sal.

Elas vieram todas, mãe ficou
Vinha de lá, vinha de lá ventania da mais forte, cheia de questão. As bandeiras mudaram norte e toda lona foi de avesso. Montada na cabeça da procela, carregava a procissão de seus mortos na crista da espada e seu chifre de espaventos. Se um vai fora de hora, leva a mais. A mão da tempestade não alivia a respiração da forja, alimenta a fogo toda a paixão das vísceras. A culpa dos homens, engalfinhados a sempre confundir os barretes na barra vermelha do vendaval. Mas voz chegou de serenar quizila, cantando pra ximba acabar.

senhora da pluma pesada
vou pedir mais uma vez
que a brisa de sua morada
perdoe o que o filho fez

quando abana as sementes
a terra se abre em flor
vou pedir que então aceite
a morte deste senhor

quando vir a calmaria
que a senhora oferecer
vou viver aqui na areia
pra ensinar homem nascer

na terra serei teu porto
malembê, malembê

Eia que eu disse que chegava, minhas meninas, minhas filhas, minhas irmãs. Vocês chamaram, eu vim. Era muito de longe, vastidão. Alimentar, alimentei. Achava que bastasse, mas não. Larguei filho no mundo pra ver se aprendia. Perdi pra lua, perdi pra luta, perdi o que nunca fora achado. Vou plantar peixe miúdo na terra. Vou aprender comunidade. O lado de lá da areia tem seus abismos, mas os de cá, ai os de cá, são abissos no dentro das gentes. Vê no teu rosto, menina, que a brisa chega no vagar. Os homens, que pouco sabem, precisam cuidado pra partir. Se vou ensinar? Eles que apascentem o barro antes da colheita, o mar antes da arribação. Vou cuidar que vocês, minhas escamas, não espumem na quebra. Eu, que sou cada gota suada de mãe, ficarei. A reza dos dias agora começa a ser fiada. Encerra a procissão, derruba o andor. A vida é mais quando o peixe esquece do mar.

ANDRÉ CAPILÉ, professor e poeta. Feito de santo, é Tata Kambondo de Kavungo confirmado pra Kongobila.

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