Especial

Um golpe contra a arte [depoimentos]

Após a censura à mostra Queermuseu, 21 profissionais ligados ao pensamento crítico e à cultura expõem à Continente suas análises sobre o significado do episódio para o Brasil hoje

TEXTO Luciana Veras

14 de Setembro de 2017

Tela de Fernando Baril, que faz uma fusão entre as imagens de Cristo e do deus Shiva

Tela de Fernando Baril, que faz uma fusão entre as imagens de Cristo e do deus Shiva

FOTO Divulgação

KATARINA RIBEIRO PEIXOTO

Doutora (UFRGS) e pós-doutoranda em filosofia (UERJ)

Como analisa o ocorrido?
O que ocorreu e ainda está ocorrendo, enquanto o banco e os demais censores não se retratarem perante a sociedade, é, até agora, o episódio mais sombrio de censura em décadas. É importante deixar claro em que consiste a gravidade dessa medida e por que não se trata de episódio menor. Temos, nós, os que se julgam bem-pensantes e liberais, com consciência democrática cultivada, uma percepção distorcida e, por vezes, a partir de nosso universo estético, tendemos a desprezar o ridículo constitutivo de todo autoritarismo. A história não para de nos dar a ver que proceder assim é imprudente, mas seguimos cometendo esse erro. E, não raro, quando nos damos conta, deparamo-nos com filisteus perseguindo professores e invadindo museus, filmando obras de arte agarrados em códigos penais, a acusar crimes inexistentes e a vociferarem palavras de ordem de um astrólogo que “combate” Galileu e Newton. Há anos que rimos desses indigentes intelectuais e seguimos tratando-os como indefesos, pela absoluta carência de razoabilidade. E, também por uma questão de perspectiva, resistimos a tomar partido diante da sanha moralista, essa coisa tão sedutora às classes médias crentes do que diz a televisão e que resistem a estudar História e a tratar as empregadas domésticas como cidadãs, no Brasil. Assim, direitos fundamentais dos escravos recentemente alforriados são diariamente violados e o país apresenta números de homicídios e feminicídios estarrecedores, mas isso não nos perturba, senão em medidas privadas de segurança de nossos imóveis e bens materiais móveis. Mas esse episódio “avançou algumas casas” treva adentro.
O país agora vive um outro momento. Desde que se instaurou a cultura da justiça do inimigo, as violações dos direitos fundamentais passaram a ser cometidas contra os representantes dos desvalidos. E estes são os inimigos dos censores, por excelência. Assim, uma vez mais, a classe média foi, majoritariamente, conduzida a acreditar em uma limpeza nacional, levada a cabo por servidores públicos superassalariados, subletrados e eles mesmos reféns da maior cortina de ferro comunicativa do planeta: o sistema midiático-familiar, ultraconcentrado, brasileiro. Sem uma cultura de espaço público comunicativo de debates e sem a exigência de justificação racional por parte dos representantes políticos – bastavam e ainda bastam entrevistas às grandes redes, artigos nos jornais familiares paulistas ou outros expedientes evasivos da justificação da ação prática-política –, o breve intervalo democrático do país foi brutalmente atacado, sobretudo, pelas medidas antirracistas dos últimos anos. Não há mistério, embora soe desagradável o que vou dizer. Mas Norbert Elias já apontou um caminho de leitura há muito tempo, a respeito do que está implicado na chegada dos outsiders ao universo dos estabelecidos. E uma sociedade herdeira da escravidão e que jamais condenou a tortura, ao longo de sua história, preserva não somente uma profunda desigualdade, como os resíduos mais medonhos dela: o racismo, a intolerância, o preconceito e o horror aos alforriados.
Alforriados com poder, nesse caminho, são o que há de mais ameaçador. Isso vai de líderes políticos democráticos, de dirigentes indígenas e de campesinos que vem sendo chacinados semanalmente, no último ano, no campo brasileiro, aos gays e a outras minorias ou maioria oprimida, como é o caso das mulheres. A reação à democracia não se restringe a um mero dinamismo eleitoral, a um deslocamento de preferências políticas. O mecanismo do ressentimento é muito mais insidioso e duradouro e prescinde da legitimação política. Aliás, o ataque e a desmoralização da democracia abriram o caminho da permissividade para violações inimagináveis há alguns anos, no Brasil. É preciso ter alguma clareza sobre como se chegou a esse ponto. A censura, o fechamento das expressões democráticas, a perseguição às minorias e o ódio político não acontecem de repente. São construções que levam anos e, eventualmente, gerações de transmissões de preconceitos, hostilidades e medo, para se consolidarem. É preciso um certo tempo para se chegar ao ponto de ter militantes do autointitulado Movimento Brasil Livre (MBL) e neopentescostais fazendo bullying em exposição de artes, com acusações de blasfêmia e outras coisas estranhas ao mais elementar bom senso letrado. Em uma sociedade democrática, sejam quais forem os seus representantes, agredir obras de arte é, por si só, um delito e um malfeito. E não conseguimos ter a figuração de tamanha barbárie sendo acolhida por um banco e pela direita católica, nos anos 1980, 1990 ou 2000, passados. Porque era impossível. Porque vivíamos em um país menos tenso e dinâmico, socialmente. Estou convencida de que houve uma imensa negligência, por parte das esquerdas brasileiras, sobre esse tema que Elias tratou com muita força: a democracia tem custos sociais que não são mensuráveis economicamente, apenas. Podemos e devemos reconhecer, nos levantes moralistas que eclodiram em 2013 e na agressiva campanha da direita, em 2014, ressentimentos de classe e criminalização autoritária de adversários. Mas, como diz Jeffrey Goldfarb (no magistral The politics of small things), quem se preocupa com a democracia sabe e deve saber que a verdade está nos detalhes, nas pequenas coisas, no que se discute e conversa na mesa da cozinha, nas salas de estar, nos almoços de família e nas repartições de trabalho. Em vez de meras reproduções de uma ideológica coextensão entre verdade e poder, de traço foucaultiano, Goldfarb enxerga, nessas trocas nas esferas da vida em sociedade, a possibilidade se criar poder e refazer campos políticos mais fecundos e persistentes que meras escolhas eleitorais e políticas. E, embora Goldfarb priorize a potência solar dessa dimensão, há um dado sombrio aí, tanto como a reprodução ideológica, que Foucault reconhece, na sua Microfísica, como de disseminação de afetos familiares a estamentos e a classes, como Elias capturou.
A democracia foi derrotada em 2016, mas, na sociedade, ela vem sendo derrotada muito antes e esse fracasso foi condição fundamental para a deposição ilegal da última presidenta eleita. Foi preciso que muito tivesse se perdido, no leito da sociedade, para que o golpe final tenha se tornado possível. E não reconhecer isso custa, está custando e custará ainda muito caro a quem se julga democrático. Onde se começou a perder? Por quê? Quais as forças que minaram a democracia como valor da sociabilidade? Por que não foram levados a sério os custos sociais, simbólicos e ambientais da inclusão de milhões no universo de direitos, oportunidades e instituições públicas? O que ficou para ser regulado e o que foi menosprezado nos acordos e no pragmatismo do jogo diário da administração dos conflitos democráticos cotidianos? Essas são questões que devemos nos fazer a todos, e a cada um de nós.
Assim como não basta acreditar que novas eleições vão resolver tudo, não basta defender a liberdade de expressão, sem levar em conta o que a protege e garante, que é uma sociedade democrática. Não se garante democracia a balas e bombas. Essas coisas são usadas para defender o ódio, a intolerância e poderes sem legitimidade. Que pessoas achem que o episódio da perseguição e censura ao Queermuseu seja isolado não pode ser outra coisa que um sintoma da desagregação perceptiva acarretada pela degeneração da democracia, no país. Não tem essa de que se depõe uma presidenta, sem crime cometido, e fica tudo bem. O que se está vivendo no país no último ano é um recrudescimento da brutalidade inexplicável por medidas estritamente econômicas, cujo alcance não se esgota nas calamidades de uma equipe financeira alheia ao que significa Estado, representação e direitos. O poder político representativo exige, para a sua legitimação, uma separabilidade do jogo político em relação às demandas da moralidade, da religião, da sexualidade e das crenças de natureza subjetiva. Esse é o fundamento do estado laico, porque é aí que se justifica a neutralidade do Estado, esse ideal regulador que aparece já em Kantorowicz, quando trata do que chama de “perpetuidade do corpo político”, isto é, de uma estrutura de poder que independe inclusive do indivíduo que usa uma coroa por alguns anos. A violação dessa ordem da política, por meio da desmoralização e do ataque de natureza moral aos dirigentes políticos, acarretou uma profunda instabilidade e, afinal, a violação do princípio de que o “rei nunca morre”, quer dizer, de que a constituição, o equivalente moderno desse poder tratado por Kantorowicz, não pode morrer em função do caráter perecível de mandatários e mesmo da moralidade deles.
O crime contra o arcabouço constitucional-democrático brasileiro consistiu, socialmente, nisto: ao se deslegitimar o campo político e a dignidade da luta política, separável das entranhas morais, deu-se espaço a uma desenfreada demanda moralizadora (que já estava em ação, mas era mais organizada, pela mídia e por seus dirigentes no congresso, que agora lhes deram as costas), degenerada em um moralismo de desesperados. Pessoas que foram iludidas pela promessa de limpeza moral de um país, supostamente sujo pelas forças democráticas, tendem a sentir mais raiva e mais desamparo, e a buscar, nas demandas morais, a última garantia de significação para o sofrimento em que estão mergulhadas. É esse caldo que serve às organizações neopentescostais, à direita católica e ao sistema financeiro, cuja agenda é defendida como saída da crise econômica, nas televisões familiares, como se as classes médias e baixas fossem os rentistas beneficiados pelas medidas de Meirelles e outros funcionários.
O episódio do Queermuseu é gravíssimo porque condensa, para além da metáfora, a força da destruição em curso no Brasil. É a censura, operada pelo banco a serviço de camisas pretas (arregimentados pela desestabilização e pagos pelos dirigentes da usurpação em curso), pela direita católica e pelo neopentecostalismo, a uma expressão artística do universo da diversidade de orientação sexual. Não é um ataque, mais, à esquerda e aos seus dirigentes. É um ataque a quem se pensar e a se expressar como alforriado. É algo, portanto, muito mais grave, exatamente pelo seu caráter moralista e ecumênico. Não é segmentado politicamente: é espalhado em organizações sociais intrinsecamente autoritárias, que se sentiram autorizadas a sobrepor a sua agenda e demanda moralizadora sobre minorias e sobre o restante da sociedade. E foi acolhido por um dos maiores bancos privados em atividade do país. Isso não tem precedentes, porque foi cometido no seio da sociedade, antes dos tanques e outros horrores fardados entrarem em ação.
A neutralidade do Estado e a sua laicidade foram brutalmente feridas. O que garante essas prerrogativas do Estado constitucional moderno é, exatamente, a sua limitação pela vigência de direitos fundamentais reconhecidos na carta constitucional, que não autoriza aos poderes de Estado e aos cidadãos violarem a esfera sagrada da liberdade individual e de expressão. Na medida em que se arregimentou princípios e garantias fundamentais a fim de perseguir adversários políticos com lastro representativos e, pior, com mandatos em exercício, o que era uma prática comum contra os desvalidos migrou para uma parte da sociedade que se define por suas crenças e modo de vida. O ataque a gays é, em qualquer contexto autoritário, paradigmático e, em larga medida, uma consequência lógica do fechamento democrático. Porque não tem essa de que gênero é uma questão moral. Gênero é um entrelaçamento de possibilidades subjetivas que só se expressa onde a categoria gênero é reconhecida. Ora, como reconhecer tal coisa, quando se precisou construir na sociedade a degradação da capacidade da mulher e a desmoralização de sua legitimidade como dirigente máxima da nação?
Não se enganem. Não temos uma relação estrita de causa e efeito, mas uma relação multifacetada de permissões e silenciamentos, transmitidos e reconhecidos em práticas sociais. Para violar regras derivadas e limitadas por direitos da pessoa, como o são os direitos fundamentais, é preciso fechar e limitar as expressões das subjetividades. Não tem essa de regimes autoritários conviverem bem com gays e respeitarem o direito das mulheres. Podemos ter regimes democráticos que convivem com intolerância e com violência de gênero. Mas jamais houve nem há sentido em haver regimes autoritários que tolerem e reconheçam e respeitem as expressões de gênero. A transposição da violação de direitos fundamentais dos desvalidos para adversários políticos, que passaram à condição de inimigos, é, no entanto, sutil. Ela se dá e se deu, no caso brasileiro, mediante espasmos de agressividade inconteste, e se dá a despeito do que ocorre no congresso e nos tribunais, mesmo que seja, na sociedade, o sustentáculo moral e social que permitiu a violação de 2016.
Foi preciso que se tornasse o ódio uma categoria política, no Brasil. Aliás, uma categoria política transportada do domínio mais opressor da sociedade, que, ressentido com a democracia, reagiu e vem reagindo com o uso do ódio como vetor de sua peculiar legitimação. É assim que se entende que ninguém elegeu o atual governo federal, mas, como esse governo federal não pressupõe qualquer legitimação, as forças que o sustentam tampouco estão preocupadas com legitimidade, justificação racional, respeito aos valores democráticos. É um comensalismo macabro, que não dá sinais de recuo.

Quais as implicações de um episódio como esse?
As implicações de um episódio dessa dimensão são variadas e indeterminadas, o que nem sempre é uma coisa boa. Em primeiro lugar, abre-se um precedente que segue permitindo a violação da neutralidade do Estado, em relação à esfera inviolável de direito dos cidadãos, dentre as quais a liberdade de expressão. Em segundo lugar, há uma tendência ao acirramento nas ruas e redes, e isso não é bom, porque interdita o que é requerido para barrar o autoritarismo, que é esclarecimento e justificação racional das posições políticas. Em terceiro lugar, e dado o atual desrespeito à representação política, é de se esperar mais pancadaria da polícia contra os seus recentemente tomados como inimigos do regime e da sua ordem: ativistas, ativistas gays e militantes de direitos humanos. Em quarto lugar, haverá muita piada e bom humor e desvelamento do ridículo daqueles que sustentam o atual pesadelo brasileiro, embora seu alcance seja limitado. E, por fim, há uma sombria possibilidade, que não sai de um horizonte cada vez mais aproximado, de que quem cometeu essa atrocidade não somente não vai recuar, como resistirá às críticas e às manifestações, como a Arquidiocese de Porto Alegre fez, ontem à noite, de maneira aparentemente ociosa, mas politicamente consistente com o grupo político que a comanda, para a desgraça da imagem da igreja e do catolicismo.

De que maneira a arte, a cultura e o pensamento crítico do país devem se posicionar perante tudo isso? Como resistir?
Bom, a arte, a cultura e o pensamento sempre triunfam e triunfarão sobre a barbárie e o obscurantismo. Mesmo os anos mais sombrios de fascismo não foram capazes de silenciar por completo a expressão artística. Em regra, a perseguição a expressões artísticas e subjetivas, de que a censura pública e institucional é exemplar, também neste caso, explicita grande tibieza institucional, social e ignorância. Essas coisas não duram muito, porque não têm elementos para resistir, senão pela força. A única maneira da censura triunfar é pela força, o que, por definição, é o atestado do fracasso político e moral do regime. As pessoas que fazem arte, que trabalham com cultura e que são cidadãs e cidadãos conscientes da gravidade dessa violação precisam se organizar, socialmente, para resistir. Mesmo que a questão seja de natureza política, a resistência deve partir das relações sociais mais privadas e afetivas.
De novo, recorro ao Goldfarb. Ele enxerga na interação entre grupos de afinidades, vizinhos, colegas e amigos o cenário privilegiado para a criação de poder. A partir das lições de Vaclav Havel, sobre “viver em verdade”, Goldfarb defende uma síntese, como diz, entre o compromisso com a separação refletida entre a verdade e o poder (com base nas lições de Arendt sobre a distinção de ordem entre ambas as coisas) por um lado, e a aposta de olhar para essas relações como Ervin Goffman o fez, com a experiência das representações do eu, da subjetividade, nas e pelas interações sociais. Precisamos retraçar o vínculo imaginativo que foi dilacerado no processo de desestabilização e violação da ordem democrática e isso não se faz sem o pensamento e sem arte. Viver em verdade, não ceder, não sucumbir ao cinismo. Não há mais espaço algum para o cinismo. A besta autoritária está solta, e hoje há um poder usurpador nacional, uma cortina de ferro midiático familiar e organizações religiosas dispostas a sabotarem e inviabilizarem não somente a democracia, mas suas condições de formação para a justificação e a legitimação: a mídia livre, a universidade, a pesquisa, a ciência e a arte. Ninguém precisa de alinhamento político específico para resistir ao horror.
Do ponto de vista prático e institucional, as organizações e representações democráticas precisam começar a falar seriamente sobre a censura e o lawfare como modo de repressão, que se alastrou no país. É preciso, por isso, dar à lei e à legalidade o respeito que merecem e pelo qual tantos pereceram. Por isso, caso o Banco Santander não honre com seus compromissos verbalizados de ressarcimento ao erário, deve-se representar ao Ministério Público Federal, para o que o faça, visto que a instituição deixou de recolher para fazer a exposição. Essa exigência é fundamental para quem defende a liberdade de expressão e combate as trevas. Também é importante que se comece a dar o nome aos expedientes de censura que estão ocorrendo em repartições públicas, aos professores perseguidos e denunciados por delirantes acusações de “doutrinação marxista”, a servidores públicos que respondem a inquéritos abertos com base na disseminação de paranoia e medo. Essas coisas estão acontecendo e é por isso que temos filisteus com o Código Penal dentro de exposição, buscando tipificar obras de arte, como se ambas as coisas fossem em alguma medida relacionadas, em um ambiente minimamente esclarecido. O preço pela desmoralização da política é alto e todos pagam, mas o custo da destruição dos marcos legais dos direitos fundamentais é irreparável e costuma ser devastador, não apenas para as suas vítimas. Os gays sabem disso, os fascistas que os perseguem, também. É preciso criar poder, na resistência, e não recuar. Não ceder ao cinismo, nem à paranoia. Não transigir com a covardia, nem com a ilegalidade. Chega de desprezar a indigência intelectual como se o ridículo não ameaçasse a vida.

LÍLIA SIMÕES
Psicanalista e professora universitária

Como analisa o ocorrido?
Não é a primeira vez que esse tipo de censura acontece com relação a obras de arte. Mas esse episódio em particular tem a ver com nosso contexto atual de polarização e superficialidade de debates. O que o MBL fez foi usar os meios de comunicação, no caso a internet, como dispositivo para ressignificar um discurso no intuito de convencer, a partir de denúncias vazias, as pessoas sobre suas ideias. Essa é uma tática muito usada por ideologias responsáveis por sistemas autoritários ao longo de nossa história. No caso específico, retiram uma obra de Adriana Varejão do contexto de criação e do diálogo crítico da peça e acusam-na de apologia a zoofilia. Adriana é uma das principais artistas brasileiras, com obras espalhadas pelos principais museus do mundo; seu trabalho é uma espécie de crítica aos costumes coloniais do interior do país, entre outras coisas a imagem do caipira fazendo sexo com o cabrito.

Quais as implicações de um episódio como esse?
São imensas. Passam pela nossa produção cultural, pelo empobrecimento das diversidades e dos debates que constroem de fato uma democracia.

De que modo podemos perceber o cancelamento da exposição no contexto atual do Brasil?
Podemos perceber tudo a partir do crescimento de uma onda conservadora no país, que tenta encolher nossa democracia, e da questão do uso do dinheiro público com fins de propaganda e projetos culturais de bancos privados.

De que maneira a arte, a cultura e o pensamento crítico do país devem se posicionar perante tudo isso?
Acho que é importante levantar debates de uma forma que eles ultrapassem a bolha virtual em que vivemos. A luta mais importante é a luta contra a ignorância. Não existe nada mais empobrecedor e perigoso para uma democracia do que um povo que não sabe, um povo que não pensa…

Como resistir?
Acho que ainda estamos procurando por essa resposta… As pessoas com pensamento menos conservador parecem ainda viver uma grande letargia durante esses vários sucessivos golpes.

Obra de Adriana Varejão foi acusada de "incentivo à zoofilia"

 

LOURIVAL CUQUINHA
Artista visual

O pior é que não é só o banco não.
Foi lei de incentivo, foi isenção fiscal, foi dinheiro público financiando uma atividade cultural que foi censurada por uma milícia conservadora.
Acho o negócio mais sério do que se o banco gosta ou não de arte e blá-blá-blá…
Acho que foi uma merda, pois ter um projeto financiado por uma lei de incentivo como foi o da exposição é ter acesso a um orçamento público para a cultura, como os movimentos sociais têm para construção de casas (MTST) ou para produzir arroz orgânico (MST).
É uma ideia que está sendo financiada por grana pública que, por lei, é destinada à cultura.
É uma censura foda o que o Santander fez por pressão da milícia reaça do MBL.
O movimento nazista na Alemanha fez assim também.
O banco se posicionou da pior forma possível, ainda mais porque a mostra era financiada por dinheiro público.
Acho que devemos conseguir reabrir a exposição em outro lugar.
Acho que o banco deve devolver o dinheiro com multa.
Resistir contra o fascismo sempre.

MARIANA LACERDA
Cineasta e jornalista

O cineasta Eduardo Coutinho disse certa vez, a partir do contexto de seus filmes, que toda entrevista é erótica. Eu expandiria essa ideia para falar de encontro. Todo encontro positivo com o outro é erótico. O outro, aquele que é diferente de nós, mas aquele que, ao tocarmos, acende algo que está em nós e faz, de nós mesmo, já um outro.
Imbecil é aquele que não enxerga, não reconhece o quão a multiplicidade e suas incontáveis possibilidades de mundos só nos fazem melhores.

MÁRIO MAGALHÃES
Jornalista e escritor, autor da biografia Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras)

O crítico de arte Mário Pedrosa, um pernambucano do tamanho do mundo, proclamava que “a arte é um exercício experimental da liberdade”. Quando a arte é asfixiada, asfixia-se a liberdade. É o que fez o Santander Cultural ao cancelar a exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira. Uma das alegações dos liberticidas é blasfêmia. Pretexto idêntico foi empregado pelo governo José Sarney para proibir a exibição do filme Je vous salue, Marie, do cineasta francês Jean-Luc Godard. Corria o ano de 1986, e alunos da Escola de Comunicação da UFRJ não aceitaram a censura. Nós obtivemos uma cópia com o pai de uma colega, hoje editora de livros, nos trancamos na escola e, mesmo com policiais nos intimidando pelo lado de fora, assistimos ao filme. A melhor resposta ao obscurantismo do Santander Cultural e seus gurus seria remontar a mostra, celebrando o “exercício experimental da liberdade”.

MICHELINY VERUNSCHK
Escritora

Anos atrás, muito antes da instauração da crise política no país, eu comentava com amigos sobre um processo de “caretização” que percebia como crescente na sociedade brasileira. Não acho que seja à toa que esse processo venha a reboque do crescimento das igrejas evangélicas e de sua ideia do deus atrelado ao capitalismo e suas noções de prosperidade ligadas, especialmente, ao consumo além de um discurso ideológico moralizante. Apostou-se alto na ignorância e no controle dos corpos (e da mente). É o que ocorre nos fundamentalismos. E, vejam só, a ideologia evangélica não se restringe aos evangélicos. O buraco é mais embaixo. Ela se embasa nos princípios da meritocracia, que não escolhe religião. É o famoso “foi Deus que me deu”. Nessa lógica, se Deus não deu ao outro, o outro é apartado da graça. E aí se estabelece toda uma cartilha de exclusões. Foi esse princípio fundamentalista, que é de partida misógino, racista, preconceituoso, que ganhou força para minar a democracia no país. Todo o resto é efeito colateral: do crescente número de feminicídios ao aumento da popularidade de políticos declaradamente fascistas, do genocídio pela PM dos jovens negros a atos de censura como o ocorrido no Santander Cultural, da deslaicização escandalosa do Estado aos ataques aos grupos indígenas.
Tudo isso porque o fundamentalismo não suporta a diferença, a alteridade, a ideia barroca da multiplicidade. O fundamentalismo é binário e não aguenta a diversidade, a multiculturalidade, a democracia. Estamos a passos largos na construção desse fundamentalismo evangelista à brasileira, e a arte, a cultura sempre serão os espaços de guerrilha, de reação à estupidez. O que parecia uma distopia, bate à nossa porta e não é possível se isentar dessa frente de batalha. Pode parecer pouco, mas só arte e cultura e uma educação política que prime pelo ser humano, pela natureza e pela desconstrução dos valores do capitalismo podem servir de contraponto à pulsão de morte representada pelo fundamentalismo.

RICARDO LÍSIAS
Escritor

Como analisa o ocorrido?
Em primeiro lugar, é preciso ficar claro que práticas de patrulha e de censura não são comuns apenas em grupos conservadores. Muita gente que se considera progressista, ou mais propriamente de esquerda, patrulham arte e propõem censura com a mesma desfaçatez que os grupos de direita. O que parece ter havido é uma contaminação da arte por mecanismos de patrocínio e promoção muito frágeis. Bancos se preocupam apenas com seus lucros. Notando isso, pessoas autoritárias e com bastante desconhecimento do funcionamento da arte manifestaram-se de forma destrambelhada, pressionando o banco. Como banco só quer dinheiro, e para isso usa de todo tipo de artifício, formou-se o terreno propício para a patrulha e a censura por parte do Santander.

Quais as implicações de um episódio como esse?
Inúmeras. As mais óbvias estão sendo faladas: repetição de atos de censura e espalhamento da burrice e do baixo nível intelectual. Convenhamos que o Brasil não precisava de mais gente tosca gritando… Mas há uma consequência lateral talvez ainda mais grave: por se tratar de uma exposição queer, grupos homofóbicos se sentem mais fortes para praticarem todo tipo de violência.

De que modo podemos perceber o cancelamento da exposição no contexto atual do Brasil?
Como eu disse, a simplicidade intelectual tomou conta do país. Em primeiro lugar, a burrice fez mais um ponto. Depois, a violência que é todo ato de patrulha acaba se fortalecendo. O comportamento fiscalista se fortalece. O mundo inteiro está em uma fase regressiva lamentável. E dá para dizer que o Brasil está na vanguarda.

De que maneira a arte, a cultura e o pensamento crítico do país devem se posicionar perante tudo isso?
É preciso, por exemplo, não se autocensurar. Enfrentar com a força que for possível qualquer tipo de patrulha ou tentativa de censura, vinda de onde vier. Praticar o alto nível, com elegância e profundidade.

Como resistir?
Não ser tão ou mais estúpidos que eles é um bom começo.

RICARDO TERTO
Escritor

1.
Para mim, a questão do cancelamento da exposição Queermuseu expõe mais uma vez a fragilidade do marketing de causa quando os discursos apropriados não representam verdadeiramente o valor das marcas. A L'Oréal demitiu recentemente uma modelo trans preta que, diante dos eventos em Charllotesville declarou em uma rede social que todos os brancos são racistas. Da mesma forma como aconteceu no Brasil, a declaração da modelo repercutiu sob forma de pressão de determinados grupos da sociedade, e o que culminou no fim do contrato com a trans. É claro que se uma determinada expressão artística é provocativa, surgirão opositores. Faz tempo que a arte entra em conflito com valores conservadores, isso é bem comum. O Santander ceder a pressão de grupos como o MBL prova o ponto de que a questão da diversidade não estava devidamente incorporada, mas apenas anexada ao seu discurso.

2.
Eu não vejo que tal episódio representa um marco da censura no Brasil, na verdade, o que o evento expõe é que estamos perfeitamente confortáveis com a prática da censura. Inclusive, há muitas formas de se censurar determinado discurso. Não é raro ver proponentes tomando cuidado com os temas e abordagens de um projeto em determinado edital pois dependendo do assunto por maior que seja seu mérito artístico e contemporâneo, ele teria poucas chances de ser aprovado. Se você controla o filtro, o gargalo da acessibilidade, você tem o poder de dizer o que pode financiado ou não, então você tem o poder de censurar.
Vejo com preocupação as formas de defesa do discurso que foram elaboradas a partir desse cancelamento. O acesso ao conteúdo e ensino artístico é absolutamente precário para uma boa parte dos brasileiros e ver que uma parte que teve acesso a privilégios apontar e ironizar o desconhecimento da população sobre o teor representativo da arte é desanimador.
É muito difícil cobrar capacidade de abstração conceitual quando a maioria dos museus atua na manutenção da teoria elitista da arte. Na ponta disso tudo, sim, as pessoas vão ver determinadas obras e ficarão confusas, e não vamos fingir que promovemos todas as condições para que pudéssemos cobrar algo diferente agora.

3.
Eu acredito que a arte, a cultura e várias outras áreas que estão sofrendo ataques no Brasil não precisam de defesa, precisam de cuidado. Cuidado é um protocolo diário e amplo. Defesa é episódica. Cuidado é consistente. E especialmente quando falamos de grupos historicamente marginalizados.
A reconstrução de um cenário favorável para resistência de formas de viver e se expressar no Brasil será lenta e gradual, mas precisa existir para além dos incêndios semanais de discussão.

Obra de Felipe Scandelari traz referências da pintura do século 16 e da cultura de massa


RONALDO CORREIA DE BRITO
Escritor

Os diabos estão soltos novamente

“Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.”
A frase da nota divulgada pelo Banco Santander, em que tenta justificar o fechamento da exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira, é uma falácia. Esse nunca foi o propósito da arte, nem sua função, em nenhum tempo.
O Centro Cultural do Santander, com bom currículo de serviços prestados à cultura brasileira, fecha as portas e suspende a exposição temendo perder clientes e, consequentemente, mais lucro. Ao capital, interessa apenas mais capital.
O Santander é um banco. Os bancos, o agronegócio, a indústria, a imprensa corrompida, parte do judiciário e dos políticos – e a CIA comandando por trás – acabam de executar o golpe mais bem- orquestrado da história do nosso país, disfarçado em legalidade. E o golpe fortaleceu o conservadorismo, a direita, a ultradireita, as igrejas evangélicas etc., etc.
Um artista nunca recua diante dos protestos que a sua arte provoca. Stravinsky não recuou. Rimbaud não recuou. Van Gogh não recuou. O Santander não é um artista e fala a asneira de que a arte tem por função elevar a condição humana. A arte, segundo Kafka, existe para causar transtorno. Isso que provocava a exposição Queermuseu.
O banco Santander deseja apenas ganhar mais dinheiro. O centro cultural não pode colocá-lo no risco de perder clientes, causando transtornos. Diante dos gritos da turba, ele recua. Os artistas que… O banco não. Se a exposição garantisse mais lucro, o banco não se importaria de expor qualquer tipo de extravagância disfarçada em arte, nem causar escândalos.
O Movimento Brasil Livre e outras excrescências geradas no pré-golpe, durante o golpe e na era Temer divulgaram que o “Santander Cultural promove pornografia e até pedofilia com base na Lei de Incentivo à Cultura”. Tentam, o que se tornou um bordão, invalidar a Lei Rouanet. Preconizam a censura. No futuro, exigirão que os projetos encaminhados ao MinC sejam pré-avaliados por uma comissão de censores, como havia na ditadura militar.
Saem em defesa dos símbolos da Igreja Católica conservadora – não falo da Igreja da Teologia da Libertação, a que luta pelo povo –, como se não fosse no seio desta Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana que se perpetrassem os maiores abusos, os grandes crimes de pedofilia. Meu Jesus! Quanta iniquidade cometida em teu nome!
E os políticos, vez por outra envolvidos em grandes escândalos de prostituição e pedofilia?
O fechamento da Queermuseu brasileira expõe a onda de conservadorismo que nos ameaça. E nos deixa assustados, sobretudo os que trabalham com a criação. Temerosos ao perceber que os mecenas, aqueles que têm o dinheiro para uso na cultura, respondem covardemente aos gritos de uma turba de ignorantes.

VIRGINIA DE MEDEIROS
Artista visual

Como analisa o ocorrido?
A arte tem o potencial de provocar o debate e a crítica reflexiva. Polêmica e escândalos sempre fizeram parte do universo das artes. Ao longo da história, grandes exposições foram atacadas, como Salão dos recusados, no século XIX, que marcava o início do movimento impressionista. A mais famosa tela de Eduard Manet estava exposta nesse salão – O almoço na relva (1863) – e ela incomodou os críticos pela nudez de uma mulher almoçando na relva na companhia de dois homens vestidos. O Frei Savonarola sentiu profundamente a perda de valores trazidos pelo ideário do Renascimento e assim muitas obras de arte foram consideradas de natureza imoral e queimadas na “fogueira das vaidades”, como pinturas de Botticelli baseadas na mitologia clássica.
Vivemos um momento de transição. Uma grande mudança se opera em todo o mundo, cada um pode sentir isso com maior ou menos intensidade, mas é certo que os valores baseados na lógica binária, dicotômica, antagônica, de opostos, de contrários, se esgotaram. As dissidências sexuais chegaram ao século XXI mais visíveis; as ações que movem as lutas do corpo reviram e revigoram o mundo.
A exposição Queermuseu – cartografia da diferença na arte brasileira é uma prova real da conquista de espaço pela comunidade LGBTQ+. Mas é importante destacarmos que vivemos na era da “pós-verdade”, na qual fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais que circulam nas redes sociais.

Quais as implicações de um episódio como esse?
É importante percebermos que a onda de retrocesso se levantou, porque novos valores estão surgindo, com potencial de força revolucionária, abalado as estruturas tradicionais. Vivemos num regime que faz gerir o medo, a insegurança e a falta de confiança generalizada como uma prática de governo. É preciso ficarmos atentos e não deixar que este episódio nos separe de nossas forças, incutindo a sensação de impotência. Porque, a meu ver, ele revela exatamente o contrário.

De que modo podemos perceber o cancelamento da exposição no contexto atual do Brasil?
Questão de sexualidade é o pano de fundo de questões religiosas. As religiões neutralizam as possibilidades identitárias, protocolizam normativos de conduta e procuram espiritualizar a pulsão sexual. A bancada evangélica cresce no Brasil misturando mídia, política, religião e ameaçando os direitos humanos. A temática sexual sempre foi e sempre será relevante na esfera artística, porque a pulsão sexual não responde a nenhuma finalidade exterior, e, sim, a sua própria satisfação. A pulsão sexual não se cala jamais.

De que maneira a arte, a cultura e o pensamento crítico do país devem se posicionar perante tudo isso?
A arte, a cultura e o pensamento crítico precisam desafiar e questionar as tradicionais e conhecidas mediações entre nós e o mundo, recompondo-se com outros corpos e conhecendo outras pulsações que potencializam uma visão coletiva de pertencimento. As alianças afetivas contribuem para uma nova prática política, rearticulam normas e desconstroem discursos opressores. É necessário considerar nossos laços afetivos como elementos dotados de significado vital para a história da arte contemporânea. Esses envolvimentos disparam mudanças na forma de produzir e interpretar a arte e a cultura. É o conjunto dos afetos criadores que nos liga à vida.

Como resistir?
Precisamos desafiar e questionar as tradicionais e conhecidas mediações entre nós e o mundo, precisamos nos recompor com outros corpos e conhecer outras pulsações. Ao nos despreendermos de nós como sujeito e do mundo como objeto, entraremos no movimento da vida e não mais nas formas como o pensamos para fazê-lo fixo e permanente. Dessa maneira, acredito estar resistindo e expandindo a potências  de viver.

(Com colaboração de Sofia Lucchesi)

Foto: Silvia Giordani

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