Especial

É frevo meu bem: capoeiras e torcidas organizadas

TEXTO José Teles

03 de Março de 2025

Ilustração Kosmos

As sucessivas badernas violentas das tais torcidas organizadas dos times de futebol na capital pernambucana, guardadas as devidas proporções, assemelham-se às refregas entre os capoeiras pelas ruas do Recife, em parte do século 19 e início do século 20. Nos anos 10 do século passado, os capoeiras foram até mais violentos, pois alguns andavam armados com pistolas, além de porretes de pau de quiri, peixeiras e navalhas. A peixeira tornara-se tão comum no estado que no Sudeste era conhecida como “Pernambuco”.

 Comungavam ambos de outras semelhanças. Enquanto as organizadas têm um time de sua predileção, os capoeiras torciam por determinadas bandas de música, seguiam à frente delas, em cortejos que terminavam, quase que inevitavelmente, em confusões, com ferimentos e mortes. Assim como acontece nos tempos atuais, a população, o comercio, fechavam as portas quando viam aproximando uma banda tendo à frente a malta de capoeiras. Exemplifica bem as balbúrdias dos desordeiros uma carta enviada à redação do Jornal Pequeno, em 1900, publicada com o título de Denúncia/apelo de cidadão:

“A polícia precisa cuidar seriamente da extinção dos capoeiras de frente de música (n- como também se chamavam as bandas). Ultimamente eles estão de uma afoiteza condenável, registrando a imprensa sempre espancamentos, agressões por eles feitos aos que têm a infelicidade de andar nas ruas onde passa alguma música.

Não se limitam a esbordoar os do partido contrário. Vão além, atacam as pessoas que chegam às portas, ou que transitam. Ainda ontem, na Rua da Imperatriz, um dos tais, sem nenhum motivo, perversamente, espancou a uma criança que ali se encontrara. Para evitarem-se estas e outras barbaridades é que lembramos à polícia cuidar seriamente do assunto”.

Imagina­m-se os capoeiras de forma estereotipada. De calças folgadas, sem cobrir inteiramente as canelas, camisas rotas sem mangas, pretos e pardos. Pelos desenhos, e poucas fotos da época, não eram assim. Parte deles até correspondia aos estereótipos, porém os mais destacados vestiam-se bem, embora com adereços que denunciavam sua condição. Uma desses, o chapéu de aba cobrindo a testa, sombreando os olhos. Mario Sette, minucioso memorialista do Recife dos primórdios do século 20, ratifica que havia os brabos da classe alta, e os “do plano inferior”, que vestia calças largas, sem coletes, chapéu de banda, sapatos brancos e porrete

No Rio, onde se dividiam entre duas tribos, ou maltas, nagôs e guaiamuns, se trajavam com uma espécie de farda, com cores próprias para cada uma delas. Na capital do país, não foram devidamente combatidas durante a monarquia pelo status social de que desfrutavam, conforme atesta matéria no jornal carioca O Dia, de maio de 1901:

“O certo, porém, é que a arte da capoeiragem, tornando-se um dos nossos usos mais característicos, não contava os seus cultores apenas nas classes baixas, personagens ilustres, e entre eles até homens políticos que ocupavam posição notável no parlamento, ou no conselho da coroa, eram apontados, como exímios no gênero”.

Mal foi proclamada a República, ainda no governo provisório, o marechal Deodoro da Fonseca convocou o ministro da Justiça, Campo Salles, e o chefe da polícia Sampaio Ferraz, e os incumbiu da missão de extermínio da capoeiragem. O chefe da polícia recebeu carta branca para prender e enviar para Fernando de Noronha, então um temido presídio, todos e qualquer capoeira, independente de ser militar, civil, rico ou político.  O que provocaria uma crise no governo.

Por esta época, a capoeira engatinhava como luta marcial brasileira, mas já a aprendiam pessoas da elite do Rio. Em abril de 890, o fidalgo português Elysio Reis, da sociedade carioca, conhecido por Juca Reis, praticava capoeira. Foi devidamente enquadrado, pela polícia, preso e condenado a cumprir pena em Fernando Noronha. Ele era irmão do conde Matosinho, dono do influente jornal O País, íntimo de Quintino Bocaiúva, ministro do Exterior da recém-nascida República. Este prometeu ao conde que pediria a Campos Salles a libertação de Juca Reis. O marechal alagoano foi peremptório. Não libertaria nenhum capoeira.

Entre o pedido de exoneração do ministro, e a permanência do chefe da polícia, optou pela segunda opção. O conde Matosinho vendeu o jornal e voltou para Portugal. O irmão foi levado para cumprir pena em Fernando de Noronha. Meses mais tarde, foi libertado e também retornou a Portugal. Quintino Bocaiúva permaneceu no governo por mais um ano, quando reassumiu sua cadeira no senado.

RECIFE

O exemplo vindo do presidente Deodoro, levou a que se recrudescesse o combate aos capoeiras também em Pernambuco.  Uma das táticas era o elemento surpresa, como se lê no A Província em julho de 1900: “Tendo ido ontem fazer exercícios no campo do Bodé, o 1º Corpo de Polícia, sob o comando do tenente coronel Leôncio Pinto Ribeiro, o dr. Rego Barros, delegado do 1º distrito, aproveitou a ocasião para cercar a Rua das Flores, na volta do batalhão, e dar caça aos capoeiras que, ultimamente estão reaparecendo nesta capital. Não perdeu seu trabalho a autoridade, que conseguiu capturar 41 dos tais desordeiros”.

Claro. Ação da polícia no início do século 20 seria denunciada como arbitrária. Sem que cometessem crime contra terceiros, apenas por exercitar manobras, os capoeiras eram pegos pelo praças e trancafiados no presídio, conforme noticia o Jornal Pequeno em 1903: “Às 9 horas da noite da noite de ontem, na Rua Barão da Vitória, um indivíduo, cujo nome ignoramos, fazia exercício de capoeira armado de compasso. A polícia, comparecendo prendeu capoeira e enviou-o à casa de detenção, recomendando-o ao coronel Santos Silva”.

Por volta de 1907, quase não se viam na imprensa notícias sobre desordens provocadas por capoeiras. Eles se adaptaram a outro modo de vida. Sentaram praça na polícia ingressaram na marinha, trabalharam na estiva, mesmo assim continuassem a torcer por sua “música”. Os que se destacaram pela valentia liderança passaram a guarda-costas, ou homem de confiança de políticos ou de partidos. O mais lendário dos brabos do Recife, Nascimento Grande, quase dois metros de altura, força hercúlea era protegido do parlamentar e abolicionista José Mariano, mas nem jogava capoeira, nem negro, era natural de São José do Egito, no sertã do Pajeú.

Curiosamente, no primeiro lustro do século, quando se formatavam o frevo e o passo, são muito poucas as notícias de capoeiras à frente de agremiações carnavalescas. Infernizavam pastoris de ponta de rua, bumbas meu boi, sambas e maracatus.

Em 1904, o Tome Farofa naquele mesmo ano, fez um ensaio e em seguida saiu em desfile pelas ruas do São José, protegido por quatro policiais, disponibilizados pelo subdelegado do bairro. Por algum motivo, o Tome Farofa sai no noticiário policial, por confrontos com desordeiros que acompanhavam os préstitos da troça. Em 1905, passava pela Praça Maciel Pinheiro, quando o baliza desfechou uma violenta traulitada num adolescente, que estava com um grupo de mascarados perturbando o desfile. O rapaz, que chegou a desmaiar com o golpe, foi levado à casa de sua família, e o integrante do Tome Farofa à cadeia. Ironicamente, chamava-se ele Antonio da Paz.  

Os clubes de pedestres também frequentavam as colunas policiais, mas quando se envolviam em refregas com clubes rivais. Em 1907, ano oficializado como o do nascimento do frevo, Vassourinhas e Lenhadores partiram para a batalha campal. O chefe da polícia não permitia que que os dois clubes voltassem à rua no dia seguinte. Para que não tornassem a se confrontar, não podiam desfilar no mesmo dia. 

É provável que, pela dureza como eram combatidos pela polícia, seguiam a agremiações no meio dos foliões, já que os clubes de pedestres formados pelo lúmpen, moradores dos arrabaldes da capital, e dos bairros de São José, Santo e Boa Vista, que abrigavam boa parte das sedes dos clubes de pedestres, e cujos integrantes não tinham necessariamente ligações com a capoeiragem. Do que se deduz que capoeiras devem ter influenciado os passos, mas que a dança do frevo não é obra estritamente deles, mas do poviléo do Recife enquanto acompanhava a agremiação de sua predileção.

No final da década de 10, a capoeiragem começava a ser absorvida pela sociedade, deixava de ser briga para se tornar luta marcial. Contribuiu para tal, um capoeira chamado Cyríaco da Silva, conhecido por Macaco. Em junho de 1909, chegou ao Rio, o japonês Sada-Miako, que circulava pelos continentes difundindo o jiu-jitsu, desafiando lutadores do país que visitava. Cyríaco ofereceu-se para enfrentá-lo. Desferindo meia dúzia de golpes, o capoeira derrotou o japonês, e contou aos jornalistas: “Calculei a altura da meia da perna, isquei com a mão para espantar. O camarada tremeu. Risquei por baixo, e dei o passo da limpeza geral. Ele tremeu, mas não caiu. Dei-lhe então com o rabo de arraia, e foi como poeira”

 Voltando às torcidas organizadas, assim como os capoeiras optavam por uma banda de música, como pretexto para lutas desfechar golpes, facas e tiros não apenas nos desafetos, mas em quem estivesse nas proximidades, os da organizada agrupam-se em dias de jogo dos seus clubes não para ir ao estádio, mas para tocar o terror é provável que entre eles haja tetranetos, trinetos dos capoeiras do velho recife.

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