Maria Joanna encantou e sumiu
Trajetória da artista pernambucana ainda é envolta em mistério
TEXTO José Teles
27 de Março de 2025
Ilustração Greg
“A preta Maria Joanna.” Assim ela era citada na imprensa do Recife nos anos 1930. É um mistério do canto feminino, em Pernambuco e no Brasil. Sabe-se como foi descoberta, e nada sobre sua saída de cena. O “preta” enfatizando-lhe não apenas a cor, mas a origem. As irmãs do conceituado maestro Nelson Ferreira, Lady e Linda, que cantavam na Rádio Clube, não recebiam adjetivos antes dos nomes. O próprio Nelson Ferreira, mulato de pele escura, ganhou um clareamento no epíteto com que o tratavam na cidade: “O Moreno Bom”. Maria Joanna sempre recebia o “preta” quando a ela se referiam.
Em 1932, Carmen Miranda, Almirante, o violonista Josué de Barros e seu filho Alberto de Barros, também violonista, vieram ao Recife para a primeira e única apresentação na cidade. Carmem e Almirante foram convidados para um almoço no Engenho Martinica, de Renato Carneiro da Cunha. Um engenho moderno, com algo incomum, nos congêneres, uma quadra de tênis. Foram convidadas pessoas da sociedade da capital, inclusive o interventor Carlos de Lima Cavalcanti. Aliás, o último a chegar, deixando os convivas famintos, mas loquazes. Almirante, um showman, falou mais do que todos, contou causos e piadas. O senhor do engenho também era bom contador de anedotas. Quando esgotaram o repertório, Carmen Miranda passou a tocar seus próprios discos, encontrados na discoteca do dono da casa.
Finalmente chegou o doutor Lima Cavalcanti, e foi servida a buchada, que os artistas provaram pela primeira vez (não se tem registro do que acharam do prato exótico). Findo o repasto, foram ao alpendre, e começou um sarau, primeiro com Josué de Barros e o filho tocando peças populares ao violão. Almirante improvisou versos humorísticos sobre os presentes, inclusive sobre uma convidada carioca de beleza exaltada por todos, Ida, o nome, que estava de passagem pelo Recife, e prestes a pegar o Zeppelin para ir à Europa. Carmen Miranda cantou alguns dos seus sucessos.
Eis que surgiu a preta Maria Joanna, chamada ao alpendre pelo senhor do engenho. Não se sabe qual sua função na propriedade. Talvez só cantora? A voz, sem dúvida, concordaram as testemunhas, era agradável. Uma espécie de fiel depositária das canções aprendidas da mãe ou avó africana. O maestro e compositor Heckel Tavares (1896/1969) visitou o Engenho Martinica e recolheu várias canções com Maria Joanna, depois publicadas no Rio de Janeiro. Um diamante bruto. Tocava violão, cantava um repertório que aprendeu com os seus, e canções autorais. “Ela derrama todo seu sentimentalismo pela voz clara e melodiosa, cuja modulações jorram torrentes de tristezas na alma da gente.” Durante mais de meia hora, aquela negra simples e humilde trouxe o ambiente emocionado pela sua arte encantadora (do jornalista Pinto Filho, do Diário de Notícias, do Rio, que acompanhou a turnê).
NA RÁDIO CLUBE
Maria Joanna, certamente pelos elogios de Carmem Miranda e Almirante, foi convidada pelo maestro Nelson Ferreira para integrar o cast da Rádio Clube de Pernambuco, e participar dos eventos musicais públicos. Na festa da Associação da Imprensa, a programação incluía os nomes mais populares da capital, Os Suassuna (Saulo e João, irmãos mais velhos de Ariano), o futuro indigenista Noel Nütels, que já fazia o que se chama hoje de stand-up comedy, a cantora Leda Baltar, bailarinas, Nelson Ferreira, e um conjunto regional, no fim da matéria sobre o show (publicado no Diário da Manhã): “A preta Maria Joanna figurará com números de folk-lore”, definido na época como “cantos regionais originais, onomatopaicos”.
Não se encontra o nome de Maria Joanna fora dos eventos musicais. Um enigma sua vida no Recife, se era neta de escravos ou filha. Não se sabe sua idade quando foi descoberta. Mas é indiscutível o talento. Ela voltou para o engenho, ou caiu no mundo, em 1938. O compositor e jornalista recifense Fernando Lobo (que anos mais tarde seria conhecido como pai de Edu Lobo), escreveu uma bela crônica sobre a saída de cena da “preta Maria Joanna”, em abril de 1938, publicado no Diário da Manhã, com ilustração do artista plástico Percy Lau:
“Bem longe do mundo civilizado, num canto escondido de um pedaço de serra, bem distante deste barulho irritante de máquinas complicadas, começou a viver essa preta Maria Joanna.” Nasceu embalada ao sussurro dos pássaros, sob um céu muito azul, que ela contemplava, com os olhos cheios de interrogação. Maria Joanna tinha um riso continuado para aquela natureza diferente que vivia em seu redor. Maria Joanna namorava os pássaros de todas as cores que habitavam o seu pequeno mundo, e aprendia sem querer a sua linguagem romântica. E quando novamente aquele azul fazia brilhar a sua lua companheira, clareando com toda força o terreiro da casa-grande, ela a recebia soltando ao ar uma canção bonita que plagiara das cantigas dos seus namorados.
Depois a lua sumia de novo, desaparecia de repente, sem que a negra do terreiro compreendesse (...) então ela cantava baixinho, bem baixinho, pra ela somente ouvir: “Meu amô tão bom/meu amô tão bom que está/meu amô tão bom, tão bom/tão bom, tão bom/meu amô vem cá”.
Ela trocou os chinelos que arrastava ao terreiro pelos sapatos civilizados da cidade. Aqui cantou com mais amor porque era com o coração cheio de saudades de sua terra distante. E os aplausos encheram suas mãos vazias. E os olhos de todos paravam de admiração por essa criatura tostada que trazia consigo uma música bruta, selvagem, mas bem verde-amarela. Isto tudo ela juntou pacientemente em sua terra distribuiu sem egoísmo, sinceramente aos que poderiam melhor compreender seu valor. Compositores célebres copiaram os seus motivos, dedos de artistas harmonizaram os seus acordes, vozes educadas repetiram as suas melodias.
Maria Joanna deu o seu melhor presente para a música nacional. Agora sumiu-se de novo para dentro de suas cantigas. Renovou o namoro com os passarinhos abandonados (...). Bem longe do mundo civilizado que ela deixou, vem uma canção que quebra o silêncio do seu pequeno mundo: “Na casa-grande do engenho/preta véia tá cantando/pra sinhozinho dormir”.
JOSÉ TELES, jornalista e escritor.