CONTINENTE Iran, como você vê a agroecologia e as novas formas de viver a partir do contexto local?
IRAN XUKURU Uma coisa interessante de a gente pontuar é com relação ao termo agroecologia. Um movimento que faço parte, no interior da Terra Indígena Xukuru, é o Jupago Krekrá, um coletivo de agricultura ancestral, tradicional. A gente tem essa compreensão de qual a importância que essa agricultura tem para o plano de vida do povo xukuru. A agroecologia está aí posta enquanto ciência, ciência no sentido de identificar, sistematizar e, através de metodologias, socializar, fazer com que esse conhecimento circule. E ela também se coloca, e vemos isso como uma evolução, enquanto movimento social e político. Ela sai do campo da ciência e se movimenta. Mas aqui, internamente, a gente defende muito essa pegada da agricultura, que é a materialização do viver de muitos dos princípios e dos conceitos que a agroecologia traz. Só que a nossa fala vai ser nessa agricultura modo de vida, na qual também estaremos juntos aí nessa caminhada, de forma solidária, com relação aos movimentos agroecológicos.
A outra coisa é dizer que o que nós estamos fazendo é velho, muito velho. Eu costumo dizer que é tão velho, que passou a ser novo. Então, essas novas formas de vida são muito velhas e é importante a gente pontuar. Quando a gente traz para o mundo contemporâneo, tem algumas especificidades com relação ao tempo, mas o princípio, essa base filosófica, é velha. No nosso caso, a gente está falando de algo ancestral.
CONTINENTE Você pode falar um pouco mais sobre o coletivo? O que significa Jupago Krekrá?
IRAN XUKURU Bom, krekrá pode ser entendido como “cabeça que pensa”. E jupago é um instrumento que marca o ritmo, a pisada do toré, é uma espécie de cacete, como se fosse uma borduna. Então, a gente tem o jupago, como um instrumento de defesa de luta e ritual, e o krekrá, a “cabeça-pensamento”. É aquela coisa: a gente tem que se ligar, se orientar e pensar diferente, como os mais velhos pensavam. Traduzindo, a gente coloca como se fosse “boas ideias na cabeça para o bem-viver”. Dentro desse coletivo, estamos à frente dessa pegada de agricultura tradicional, que, para nós, vai muito além do plantar, do colher e do comer. Então, é uma agricultura que trabalha também as práticas rituais desse plantar, colher e comer, as práticas da solidariedade, o sistema tradicional de cura e a própria inserção na natureza enquanto natureza. Não é só além, é anterior ao plantar, colher e comer porque, uma vez tendo uma conexão tão forte, tão íntima com a natureza, a gente dialoga com ela para saber o tempo de plantar, o tempo de colher, o tempo de comer, o tempo de compartilhar, mas também tem o tempo de curar e de adoecer. E a gente costuma dizer que o tempo de adoecer começa quando a gente come mal, se alimenta mal e já estamos num processo de adoecimento. Quando a gente traz esse sistema tradicional de cura como disse, na realidade, a gente está falando da medicina sagrada, da medicina ancestral, que promove o equilíbrio e a busca por esse equilíbrio, de corpo, mente, espírito. Essa agricultura observa a natureza como algo sagrado, inclusive nós, e é promotora da cultura do encantamento. Essa é a concepção-chave dela. Ela nos possibilita, sendo natureza e se descobrindo enquanto natureza, promover um viver na Terra sem comprometer o viver da própria Terra.
CONTINENTE Como se dá esse processo de encantamento?
IRAN XUKURU Quando a gente fala no viver da própria Terra, não fala só da vida biológica, mas, principalmente e essencialmente, da vida espiritual. Nós somos movidos por uma crença de um mundo espiritual, que é o mundo dos encantados. Acreditamos que esse mundo encantado precisa da natureza matéria, aquilo que tem massa e ocupa lugar no espaço é morada desses reinados encantados. Então, uma agricultura que entra na natureza ela estando degrada tem que se colocar numa situação de restauradora, para que produza floresta, água, nos colocando como protetores, como cuidadores desses recursos naturais. Mas por quê? Para produzir alimentos sadios, sem agrotóxicos, para produzir medicina – não só com planta que cura, mas com reza, diálogo com os encantados –, para produzir gastronomia. Nesse diálogo também com o mundo dos encantados, nós preservamos, protegemos e, às vezes, construímos os espaços físicos e materiais que são morada dos encantados. Qual a essência do ser xukuru? É o espírito! Se o homem e a mulher xukuru não têm crença no mundo dos encantados, ele não é xukuru. Ele pode se afirmar enquanto um indivíduo xukuru, mas se ele não vive e não está incluído num plano de vida que tem como meta proteger, dialogar e viver uma vida baseada na orientação dos encantados. Muitas pessoas que conversam comigo têm até aquela tristeza, porque espera aquele estereótipo, aquele padrão de índio do Xingu, índio com cara de boliviano e tal, e eu sempre digo ao pessoal: “Quem está aqui é Iran que é espírito e é matéria, o que vocês estão vendo é a casa do espírito”. As religiões acreditam na essência desse espírito, nós não somos diferentes, só que a gente tem outra cosmologia, que é formada por outras cosmovisões. Então, quem está no movimento da agricultura modo de vida tem suas cosmovisões, de viver e materializar essa cultura de encantamento através dessa agricultura.
Após a luta territorial, nós herdamos uma terra degradada. Então, muitos espíritos não têm local de morada, ou têm local de morada degradada. Então, o que acontece? Os espíritos que moram na água só vão permanecer morando na água, se a água tiver cuidada, zelada, preservada, protegida. Só vão morar na mata, se tiver árvores protegidas; só vão morar na pedra, se a pedra tiver protegida, então o fundamental nessa cosmovisão, nessa cosmologia, é a gente ter árvores, porque elas funcionam, para nós, como uma base de sustentação. Os reinados das águas só vão ter vida espiritual se tiverem árvore, porque é ela quem limpa a água; água sem árvore é uma água suja. E, às vezes, deixa até de ser local de água, então não tem reinado. E aí qual a função desses reinados? Os reinados, os espíritos orientam o plano de vida do povo xukuru. Se a gente vai trabalhar com o sistema tradicional de cura, tem o reinado que orienta. Se a gente vai plantar, tem o reinado que é protetor das sementes, tem o reinado que representa a fertilidade, tem o reinado que representa a fortaleza. Por exemplo, o reinado que representa a força do povo xukuru está nas pedras, nos lajedos. Se a gente está fraco e quer se fortalecer para a luta, essa força vai vir do reino das pedras. Se a gente quer clareza, transparência, tem que recorrer às águas. Se a gente quer sabedoria, tem que dialogar com folhas secas. Porque o saber está no manto da natureza, que não é o manto verde, é um manto cinza, um manto marrom, a folha seca que representa a ciência, o saber acumulado. Então, a gente tem toda uma cosmologia que depende da mata e que também brota, rebrota, produz e se reproduz através dos cultivos agrícolas, em plantas cultivadas, mas também o cultivo do natural.
CONTINENTE Quais são as plantas cultivadas?
IRAN XUKURU Nós produzimos primeiro para produzir e reproduzir conhecimento, a gente faz essa oferta aos encantados, nos alimentamos, mas mantendo o nosso movimento. Nossa pegada é produzir alimentos para manter o movimento. Existe uma produção muito forte e muito diversa. O forte daqui dessa agricultura encantada é a fava, vários tipos de fava, nós temos milhos, muitos tipos de milho, feijão, jerimum e outras culturas, como maxixe do Pará, que são cabaças comestíveis, a macaxeira, a mandioca. E tem uma coisa interessante que elas são associadas com as fruteiras que a gente chama de frutas de época. Manga, jaca, graviola, acerola. Então, são esses arranjos de policultivo e isso é muito marcante, só que é muito forte do ponto de vista comercial o gado. Tem também monocultivos de hortaliças, tipo cenoura, com um hectare.
CONTINENTE Mas não no coletivo?
IRAN XUKURU Não, no coletivo são policultivos de arranjos diversos. Esses dias estamos conversando aqui para criar um plano de gestão ambiental e territorial que nos permita cultivar a natureza, cultivar árvores e, se colocando nessa função de restauradores da natureza, ajudar esses ciclos naturais que existem. Isso tem que ser posto assim: uma roça de milho e de feijão para o consumo, autoconsumo ou simplesmente comércio não pode ser mais importante do que alguém ou grupos que se colocam, como no caso da Jupago, como cultivadores do natural. Ou seja, a gente está aqui para produzir floresta. Às vezes, o pessoal pergunta: “Mas num tem as árvores que a gente não se alimenta?”. Mas qual é o alimento? A verdadeira alimentação não é só atingir as necessidades nutricionais, eu tenho que nutrir o meu pensamento, meu espírito, o espírito guerreiro. O guerreiro não é aquele que vai para a guerra, mas aquele que ergue fortaleza. Na guerra, você vence ou perde, não tem empate. Agora se você não quer perder, ou seja, quer manter a invencibilidade, você tem que residir na fortaleza.
CONTINENTE Como se dá a prática de retomada dessa agricultura sagrada?
IRAN XUKURU Hoje nós estamos ocupando um espaço que chamamos de Centro de Agricultura Xukuru de Ororubá, o Caxo. Fica onde os antigos antes chamavam de Boa Vista. Esse espaço é um centro de formação, onde nós temos um grande espaço chamado Casa das Sementes. Aí, o terreiro de ritual passou à centralidade de um sistema, ele segura tudo: os sistemas agrícolas, agroalimentares, os sistemas agrícolas que são agroflorestais, que são medicinais, os sistemas agrícolas que são só para os encantados. A partir dele, eu multiplico a floresta, eu preservo a floresta e eu multiplico os vários manejos agrícolas relacionados à mata. Porque, se o modelo agrícola não está relacionado à mata, é um modelo que vai se exterminar, vai acabar. Então, eu tenho uma nucleação que não é simplesmente técnica, metodológica, ela é sagrada, é uma cosmo-nucleação. Então, a partir do meu ponto de força, eu planto. Porque o que nós começamos a fazer? A pensar em quais são os pontos mágicos. Qual é o ponto de força que me conecta com o mundo encantado? O principal elemento é a jurema sagrada, que é a base do mundo Xukuru. É a jurema que tem o portão real, que dá acesso ao mundo encantado. Ela não é só mãe, ela não é guardiã, ela é o mundo Xukuru. Mas só que tem outras matérias que possibilitam também essa conectividade e que nós chamamos de pontos de força. O terreiro de ritual é um ponto de força. Uma pedra é um ponto de força. Uma árvore pode ser um ponto de força, até um formigueiro pode ser um ponto de força, um local de água. E esse ponto de força é um local que nos conecta com o mundo encantado. Tem gente que coloca, para dar um exemplo, um local de reza em casa, com uma bíblia. Traduzindo para nós, ali é um ponto de força. Aquela pessoa se conecta com o seu encantamento, com a sua espiritualidade. Esse ponto de força delimita uma área, ou seja, a topografia daquele espaço, o conjunto de matérias, de árvores, de pedras, dá uma especificidade local, que nós chamamos de local de poder. Então, um local de poder, que é um espaço maior, é formado por vários pontos de força, só que um ponto de força assume uma centralidade. Estou dizendo isso porque a topografia dentro dessa agricultura, a topografia onde estamos inseridos, é uma topografia sagrada, com vários pontos de força, formados por vários espaços de poder, que isso permite a materialização e o viver do encantamento. Então, a Casa das Sementes, por exemplo, é um ponto de força que centraliza um local de poder. E cada local de poder tem um reinado que orienta.
Iran Xukuru no terreiro de ritual. Foto: Acervo pessoal
Outro ensinamento: “Vá no rastro das sementes ancestrais”. E sabe o que você vai encontrar? A gente vai se encontrar, vai encontrar encantamento. A semente associa saber, conhecimento, encantamento. Eu não só procuro sementes de fava. Eu procuro as sementes que produz e reproduz luta, resistência, conhecimento, medicina, sabedoria, eu sou semente, você é semente. Nós xukurus, nos denominamos também, a partir dessa pegada da agricultura encantada, como povo-semente. Não tem aquela história de guardiões das sementes? Nós nos colocamos como sementes-guardiãs. Nós somos sementes de Mandaru, de Xicão Xukuru. E aí tem uma coisa dentro dessa alimentação corpo, mente, espírito, dentro dessa medicina de relação com zelo, proteção e decência com a natureza, de que nós somos sementes que estamos de passagem. Como falei, a semente Iran é casa do meu espírito. E o que é que vai acontecer quando eu for para outro plano e o meu espírito for para o encantamento? Minha semente vai ser plantada. Ou seja, meu corpo não vai ser sepultado, vai ser plantado. E esse plantio vai alimentar a terra, meu corpo é alimento da terra. Então, presta atenção, como a gente diz aqui, “caboco” e “cabôca”. Presta atenção em qual é o alimento que você vai fornecer à terra, cuide do seu corpo, porque ele não é seu, ele é morada do espírito e ele vai ser alimento da terra. Então, se você come mal, vive mal, prepara: a dívida lá em cima, ou lá embaixo, eu não sei qual é a direção, ou do lado, mas quando você chegar lá, você vai chegar com uma grande dívida. Você traiu o mundo encantado, essa relação de encantamento com os espíritos foi traída. Essa pegada da agricultura, então, é manter a relação de fidelidade com esse mundo.
Eu sempre falo para o pessoal que a Terra sem males, ou o paraíso, para algumas religiões, tem que ser essa, ela é o espelho do paraíso. Então, se ele tá mal, o paraíso tá mal, o encantamento, o reinado tá mal. Se ele tá bem, eles também estão bem. A cultura do encantamento nos leva a isso. Quando a gente não se alimenta do espírito, ou não alimentamos nosso espírito, ele vai morrer e vai sair e a gente vira... Imagina uma árvore sem raiz? Ela vai tombar. Agora imagina um tronco sem raiz, sem caule, sem folhas? Não vai produzir nada. A gente tem que ser uma árvore por completo e se preocupar com a raiz. Quanto mais profunda, mais fiel ao mundo encantado e quanto mais robusta, mais vai produzir e mais vai se manter em encantamento, então a gente tem que se encantar em vida. Viva essa plenitude, essa vida mágica dos encantados e eles existem, eles estão aí, nos orientam e a gente tem que acreditar nisso. A crença não é só dos xukurus, mas de outros povos, é que eu estou aqui, eu sou espírito, eu vou morrer, mas a luta não para, porque outros virão. Aquela história do Tupinambá guerreiro, que nunca vai morrer, pode matar todos que eles vão surgir em outro ponto.
CONTINENTE Nessa perspectiva, Iran, a Terra não teria um fim, não é?
IRAN XUKURU Não, o que pode acontecer é essa humanidade ter um fim e outras surgirem. É isso que a gente acredita. Quando eu digo que a sociedade é suicida, ela coloca num nível de padrão em que esse padrão simplifica e padroniza sistemas de vida. Então imagina só você viver se alimentando com alimentos que, na essência, não são alimentos, são commodities, são mercadoria. O Davi Yanomami, ele traz muito essa concepção em A queda do céu do “povo da mercadoria”; tudo é mercadoria, tudo tem valor. Então, imagina uma sociedade se alimentando de uma tecnologia que causa morte, que foi gerada para a guerra. Os venenos colocados como defensivos, que não defendem nada, foi uma tecnologia de guerra. As máquinas e implementos que estão no campo trabalhando a terra, ou seja, destruindo a terra, são tecnologias de guerra. Então essa sociedade vive, padroniza os sistemas de produção de alimentos com tecnologias de guerra. Ou seja, eu quero me manter vivo através de algo que produz morte. É suicídio. Tem algumas culturas que nós plantamos que a gente não colhe. E o pessoal diz: “Poxa, vocês estão ficando doidos, né? Vocês plantaram fava, um trabalho danado e não tão colhendo a fava”. “Não, a fava é para os encantados”, digo. Isso é loucura, é encantamento. E se for loucura, a gente ainda fica tranquilo, porque ser colocado como louco significa dizer que a gente não é normal, não é padrão dessa sociedade, porque o normal é um padrão doentio.
CONTINENTE Quando você fala em humanidade, você fala de todos os seres humanos ou de alguns que seguem um determinado padrão de existência mais maléfico?
IRAN XUKURU É aquela coisa: o efeito maléfico de uns atrapalha quem está... Por exemplo, a gente sente a dor, às vezes a gente tem uma dor de cabeça, se sente fraco, então a gente sente espiritualmente tudo isso que está acontecendo. Uma vez choveu aqui numa cidade vizinha a Pesqueira, Sanharó, caiu quase 200 mm em menos de 10 horas, foi um dilúvio. E as pessoas ficaram desabrigadas, sem casa, desalojadas, tudo mais, aquela comoção local. É claro que a gente se sensibilizou com aquilo ali, mas eu fiquei pensando: isso que está acontecendo com nós humanos acontece com os encantados. E aí quando a floresta está pegando fogo e esse desgoverno incentiva a mineração, a destruição da Floresta Amazônica e as pessoas se comovem com o oxigênio que vai acabar, as árvores... Mas e aqueles encantados que estavam ali? Como vai ficar a situação deles, daqueles espíritos? Isso comove a gente. Porque nós somos isso, acreditamos nisso. Então, quando eu falo dessa humanidade, estou falando de uma humanidade desencantada, porque tem uma sociedade que está desencantada. Essa sociedade do desencantamento alimenta o sistema suicida. Elege pessoas feito Bolsonaro, que é contra a vida e a essência da vida. Alguém que está em processo de desencantamento não é porque “nós somos maus”, mas porque está desencantado. O sistema mundo projetou tudo isso. A educação escolar é pautada numa pedagogia que desencanta. Não existe aquela pedagogia com a Terra, de conectividade com a Terra. Você pode estar na cidade e perguntar: “Cadê a natureza?”. “Oxente, ó eu aqui!” Posso ser um ponto de força e, a partir de mim, nuclear movimentos sociais como o da agroecologia.
CONTINENTE A agroecologia é uma forma de nos reencantarmos, sobretudo nós brancos, distantes dessa cosmologia xukuru?
IRAN XUKURU Ela tem que ser. É uma coisa complexa, muita coisa está sendo feita e a gente tem que potencializar essas falas, experiências, vozes que defendem essa diversidade. Uma novidade seria trazer esse velho que está lá adormecido. Essa pegada da agroecologia nos centros, nas universidades, tem sim encantamento, que não necessariamente é o encantamento do encantado do xukuru ou pankararu, mas não deixa de ser uma espiritualidade, porque quem está defendendo, de certa forma, tem essa conectividade com uma visão mais mística, vamos dizer assim, e está insistindo na contramão, na rota de colisão com esse processo de desencantamento. Muitas experiências legais estão acontecendo e a agroecologia deve funcionar para servir como vitrine, promovendo também quem faz ciência, incluindo essas outras ciências, que são negadas. É claro que pode haver algum desencantamento, o povo xukuru às vezes se desencanta no processo! Quando um ente xukuru vai botar fogo na mata ou veneno na terra, está desencantado o camarada. Agora, não existe uma regra, um padrão, existe movimento, pessoas que se complementam, se identificam com algumas especificidades. Nós estamos diante de artes, artes específicas. Isso tem que ser colocado como artes, com essa sutileza. Fazer pequenos núcleos de floresta ou agrofloresta na cidade é arte e tem que ser compreendido como tal. No período eleitoral, eu mostrei que a agroecologia tinha um plano para dialogar com os candidatos. Você não pode só promover práticas do bem-viver no território delimitado e quando vier para cidade, ser outra coisa. Tem que ser a mesma coisa.
Iran é integrante do coletivo Jupago Krekrá. Foto: Acervo pessoal
CONTINENTE Como você analisa a importância da diversidade, a sua razão de existir?
IRAN XUKURU Essa é a essência que mantém a vida. Cada organismo que está ali, cada ser, cada matéria, tem uma função. A pedra está ali porque tem uma função, o pássaro está ali porque tem uma função. “Ah, eu vou pegar aquele pássaro e botar na gaiola porque ele canta bonito”. Aí a gente pergunta: “Qual foi o crime que ele cometeu?”. A função dele não é estar na gaiola. Deus criou ele com asas para voar. Então, essa diversidade são funções mútuas que se complementam, que se ajudam e que mantêm a teia da vida. Às vezes, a gente fala do bem-viver como se fosse uma brincadeira de criança, aquela coisa perfeita, um desenho animado perfeito. Mas o pássaro que está ali vai ser devorado pela cobra ou por outro animal, porque esse é o ciclo, essa é a função. E qual a nossa função aqui na Terra, falando dessa diversidade? A nossa função é proteger a imagem de Deus, essa é a nossa função. Bem, eu escuto muito das pessoas a passagem bíblica, de dizer que “Deus fez o homem à sua imagem e semelhança”. É muita arrogância do homem, não é? Você escrever e defender isso. Eu, o homem, né? Machismo. E aí Deus, nós acreditamos sim que ele fez o mundo, nós chamamos do grande espírito, ou de Tupã. E o que foi que ele fez? A natureza à sua imagem e semelhança. Aí eu digo ao pessoal: “Sabe como é Deus? Olha aqui pra essa mata, olha aqui pra essa árvore, pra essa pedra. Deus é isso, é o reino de Deus”. E aí, quando a gente se coloca enquanto natureza, agora sim, eu também sou imagem e semelhança de Deus, mas não é porque eu sou humano, é porque sou natureza humana, eu faço parte, entendeu? Então Deus é a natureza e a natureza é o quê? Diversa. Você entra numa mata, vários verdes, várias cores, vários pássaros, vários animais, ou seja, a diversidade é que mantém aquele sistema. E aí o pessoal, numa discussão muito ecológica diz: “Olhe, preste atenção, humanidade, a natureza vive muito bem sem a gente, mas nós não vivemos sem ela”. Tem verdade, uma relativa verdade, mas presta atenção: a natureza não vive bem sem nós, é um grande equívoco. Por que qual é a nossa função? Nós, povos indígenas? É viver nesta terra sendo cuidadores desta terra. A gente aqui, enquanto matéria, exerce uma função importante para a natureza encantada, isso na cosmologia xukuru. É ritualizar o processo para que os encantados venham festejar com a gente. Então, para a vida do espírito, eles dependem dessa descida para esse plano, essa vida material, para festejar. A essência dessa diversidade está aí.
O grande crime da humanidade é padronizar a vida, simplificar a vida, a forma de comer, plantar, colher. Aí a turma quer padronizar o estilo de música, o corte de cabelo, a sociedade se padroniza, simplifica, quer padronizar até a forma de rezar. A colonização, a história nos trazem isso. Não aceitou o diferente, então vamos destruir, porque é o diferente. Uma coisa interessante que falo ao pessoal é que é a diversidade em todos os sentidos, é em tudo mesmo. É de amar, se relacionar, é de todos os sentidos. Por que acontece essa diversidade? O que está acontecendo agora com o coronavírus? Ele não tem padrão, porque se ficar padronizado, ele vai morrer, vai acabar. É uma essência da própria natureza. Essa mutação é a própria diversidade. Isso é essencial, então vamos comer diferente, vamos plantar diferente.
CONTINENTE Você fala também na agricultura sagrada como cura, medicina, e do papel dos sábios. Como é isso?
IRAN XUKURU Essa agricultura sagrada tem uma base epistemológica que a gente traduz como a ciência dos invisíveis e esses invisíveis são não só os seres espirituais, mas também as matérias, os seres humanos que, para o sistema, são invisíveis. A curandeira é invisível ao sistema, a pessoa que faz uso e manipulação de plantas, de rezas, enfim, que acredita nessa cosmologia, nessas práticas, nesse manejo do natural e vive sua vida, sua prática cotidiana baseadas nisso, é invisível. Enquanto movimento, a gente precisa que haja esse diálogo de saberes: que de um lado, se escutem essas vozes e respeitem, que não se preocupem em comprovar através de método científico, até porque parte da ciência não foi criada para isso, mas incentivada a desqualificar esse outro lado. Então, os sábios e as sábias que detêm os conhecimentos de tradições são colocados como feiticeiros, como se isso fosse algo do mal, como algo que é negado. Então, tem aquela coisa: até onde nós podemos ir? Quando a gente traz a medicina tradicional dessa agricultura, a gente está colocando que tem doença não é nossa função social curar. Tem doença que um homem ou uma mulher de bata branca tem que curar, agora tem doenças que não tem sentido a medicina convencional curar, e sim essa medicina ancestral sagrada curar. E tem doenças que os dois podem agir mutuamente, respeitando seus métodos, suas concepções, suas filosofias, sua base, sua essência e curar conjuntamente.
Tem uma coisa interessante para comparar com a medicina mais convencional, ocidental. A gente sabe que na teoria não é assim, mas, na prática, o foco (da medicina ocidental) é o corpo doente, que ela procura para curar. Fala-se muito pouco em prevenção e é uma medicina voltada para o humano. E quando a gente coloca essa medicina ancestral sagrada, não é o foco dela curar corpos humanos, mas também curar outros corpos. A árvore precisa de cura, o rio precisa de cura, a fauna, a flora, o próprio solo, então essa cura vai além do corpo humano. Observa a natureza também como um corpo, um ser vivo que precisa de cura. E esse equilíbrio corpo, mente, espírito só é atingido quando a gente tem uma relação de respeito, proteção, zelo, moral e decência com a natureza. Essa medicina sagrada busca esse equilíbrio por total. Uma vez colocado que eu sou natureza, você é natureza, nós somos natureza, a gente entra num processo de encantamento, inclusive quebrando aquela visão pregada pelo cristianismo, de que Deus fez a natureza para o homem; o homem é o centro de tudo.
Baseados nessa íntima relação com a natureza, a gente procura espaços de força e de diálogos com orientação, dos mais velhos, de pessoas sábias e aí vem outro ensinamento dessa cosmologia, que é: a sabedoria não está no tempo de vida acumulado, a sabedoria está em saber aprender, em saber saber. “Poxa, nós temos um sábio que sabe muito, mas passa pouco.” A tradução é: não é saber, é egoísmo. Aí tem uma criança, um jovem, um adulto que sabe pouco, mas tudo que sabe passa, ou procura o saber. Então, esse diálogo com a natureza nos leva a essa cultura de encantamento que, para chegar até ela, a gente precisa também de uma cultura de sutileza, dessa sensibilidade. Tem um ditado que nossos mais velhos falam que diz: “Em terra alheia, pise devagar”. E aí vem o ensinamento do reino da sutileza, a gente tem que pairar no ar feito gavião, o gavião peneira fica ali na natureza, pairando. Então, o poder da sutileza reside no reino alado, que a gente fala, dos pássaros, principalmente no gavião.
A gente sempre dialogando com o pessoal, a gente diz: “Olha, nossos sábios aqui, muitos deles não sabem ler livros, mas eles olham para uma planta e tão lendo uma florada num ipê, por exemplo, a florada da barriguda, da mucunã”. Eles estão lendo o comportamento dos pássaros, a posição do ninho, a altura do ninho na árvore, a posição, se está voltada para o Sul, o Norte, o comportamento das formigas... Eles leem, eles interpretam, eles dão a previsão. Não só de plantar, mas de festejar, de adoecer, de curar, de ritualizar, então é uma forma de vida baseada nesses ciclos naturais. E aí tem outro ensinamento dessa cultura do encantamento que traz para nós essa concepção de que a natureza não é só aquilo que a gente vê, que a gente toca, escuta, mas aquilo que a gente sente. Tem determinadas situações que são intuitivas, é pura conectividade, sensibilidade e energia. E a gente coloca isso também como algo que não vou dizer que é racionalidade, mas algo que é inteligência. Existe uma inteligência espiritual, existe uma inteligência verde, existe uma inteligência dos animais. Quando a gente diz que nossa mata tem ciência, e tem um toante xucuru que diz “Se quiser ver a ciência, vá na mata procurar”, nós não estamos nos relacionando a um conhecimento, a uma ciência ocidental, de metodologias científicas, mas a essa ciência integrativa, harmonizada com vários elementos, vários seres, que resolve problemas e que passa ensinamentos. A ciência dos encantados, a ciência das árvores, dos animais, do solo, das águas, tudo isso é conhecimento.
CONTINENTE O que a Agronomia ajudou em sua vida?
IRAN XUKURU Eu fiz Agronomia por incentivo do meu avô. Ele dizia uma coisa: “Olhe, meu filho, vá estudar, agora para ser igual a mim. Estude e venha me ajudar”.
CONTINENTE Interessante, porque é o oposto do que muitos dos pais agricultores dizem aos filhos, não é? Que vá estudar para não ser igual a mim, ter uma vida sofrida, pegar a enxada.
IRAN XUKURU Exato. Ele tinha uma ideia que era o seguinte: “Eu tenho um conhecimento aqui e tal, mas você pode aprender isso e esse outro lado, lá dos estudos”. E uma coisa interessante que ele me dizia, quando eu começava a dialogar com ele, era: “Olhe, você sabe muita coisa, mas, ao mesmo tempo, você não sabe de nada, porque, para você saber tudo isso, você tem que aprender também isso que eu sei”. Ele dizia: “Você vai ser doutor da terra”, ele usava esse termo. Aí eu fui fazer técnico agrícola por causa dele e fiz Agronomia por essa fala dele. Como eu gostava muito do meu avô e quando eu fui fazer Agronomia, ele já estava muito doente, eu fiquei com essa dívida...
Minha experiência (com a agricultura sagrada, o coletivo) começou tentando achar a semente que meu avô cultivava. Ele tinha perdido. Eu fui fazer Agronomia e fiquei com aquela coisa na cabeça, e não via em canto nenhum, e na Agronomia é que eu não ia ver mesmo. Quando eu perguntava, no território: “Cadê a semente galo de campina, feijão de corda?”. Diziam: “Oxe, isso não existe mais não, acabou”. Ao procurar as sementes, encontrei as sementes guardiãs, várias sementes. Semente do bisavô de alguém eu mostrava para o pajé, que dizia que só tinha visto muito novo e tal. Ou seja, a gente reavivou uma memória coletiva. Eu pegava a semente, plantava, multiplicava e passava. Só que quando eu fazia isso, identificava pessoas que estavam fazendo a mesma coisa com os seus, existia uma rede invisível de trocas de sementes. E existe uma rede invisível que faz gastronomia tradicional, medicina tradicional... Então o que nós percebemos? Que não estávamos sozinhos, mas ilhados.
CONTINENTE Como era o nome dele, Iran?
IRAN XUKURU João de Aprígio. Aí, quando eu fui para a Agronomia, no início eu estudava para ser agrônomo e voltar para casa, mas quando chegou no meio do curso para o final, eu conheci um curso lá chamado Licenciatura em Ciências Agrárias, aí entrei nesse curso. E quando entrei nesse curso, encontrei um bocado de doido lá. Jorge Tavares e Marco Figueiredo eram os dois doidos principais. A maneira de eles darem aula, de discutir. Encontrei Paulo Freire e eu disse: “Poxa, é isso”. É aquilo que meu avô falava, só que de outro jeito, mas é a mesma coisa. Numa época, ainda no início da luta, que ninguém dizia que era índio, tinha medo de morrer mesmo. Quando eu cheguei aqui na aldeia, vi meus amigos, jogavam bola comigo, amigos de infância. E eles diziam: “Oxente, Iran, tu tás fazendo o que aqui?”. E aqueles meus amigos de infância que não diziam que era índio... Eu tinha, o que, 18, 19 anos, tavam lá dizendo que era índio. E eu: “Oxente, minha avó é índia, meu avô é índio, meus amigos, da mesma terra, são índios, então também sou”. Aí eu comecei a conversar com essa professora, Carmita (Antropologia aplicada às ciências agrárias). Aí ela começou a explicar direitinho e tal, e, a partir dali, em 1997, eu já tinha essa consciência.
CONTINENTE Mas o galo de campina você nunca encontrou?
IRAN XUKURU Não, eu encontrei uma semente, só que ela estava muito velha e não vingou. Mas eu acho que a riqueza todinha desse processo foi procurar e estar procurando ainda. É aquela coisa: eu tenho que me motivar para encontrar essa semente e eu tenho a consciência de que, além trazer a memória do meu avô, que para mim é sagrado, eu encontro saberes e conhecimento. Isso que me motiva. Aquela coisa, o pessoal diz: “Mas vocês inventam muito”. Eu digo: “É claro, a humanidade inventou tudo, tudo é inventado”. O que é tradicional hoje, com a orientação do encantado, um dia foi inventado.
CONTINENTE Isso, a criatividade, é Deus também, né?
IRAN XUKURU Exato. O que você chama de invenção, eu chamo de criação. O que você chama de resgate, eu chamo às vezes de ressignificação. Porque não está perdido, está adormecido. Agora mesmo a gente inventou, criou, ressignificou uma dinâmica que nós chamamos de ciência da mata. Quanto mais próximo eu estiver desses processos que levam ao encantamento, isso é o bem-viver. Quando eu paro e não estou nessa busca, estou desconectado, não estou vivendo essa cultura. E o bem-viver, para nós, se traduz como o lymolaygo toype. Toype é terra, lymolaygo é ancestral. Ou seja, terra ancestral, terra velha. Mas não é a terra velha cronologicamente, que ficou há 100, 200, 500, 1 mil anos. Ela é agora, ela é aqui, inclusive eles estão aqui, comigo, com a gente, conversando. Inclusive, é ela quem traz o mundo velho, orienta o presente, para que a gente continue em processo de encantamento no futuro. Acho que o futuro é, não é que vai ser; o futuro é agora, é como a gente vive. O futuro é pensar nele. E o presente vai ser esse futuro que foi planejado dentro dessa filosofia. Isso é o que nos movimenta.
Foto: Roberta Guimarães
OLÍVIA MINDÊLO é jornalista e natureza, como você. Autora da reportagem especial Vidas em transição, da edição de junho (#246).